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Bento Prado leitor de Rousseau


Thomaz Kawauche*

Resumo: Exponho neste artigo a leitura que Bento Prado Jr. (1937-2007) faz da obra de Rousseau mostrando que, no itinerário de pesquisa do filósofo brasileiro, não há incompatibilidade entre sua preferência por autores contemporâneos e a escolha desse pensador do século XVIII como objeto de estudo.

Palavras-chave: Rousseau, Retórica, Linguagem, Filosofia, Literatura.


il n’y a rien de beau que ce qui n’est pas
(Rousseau, La Nouvelle Héloïse, VI, 8)

     Todos sabem que, no percurso do professor Bento Prado Jr., o período histórico privilegiado para os trabalhos de pesquisa é o da filosofia contemporânea. Dois dos mais notáveis autores de seu interesse são Bergson e Wittgenstein: estes, enquanto objetos de estudo, aparecem respectivamente nos livros Presença e campo transcendental, que corresponde à tese de livre-docência escrita em 1964, e Erro, ilusão, loucura, com textos de conferências que datam de 1994 a 1996. Não preciso dizer que desconsidero aqui as leituras obrigatórias da história da filosofia, e que me refiro apenas às escolhas pessoais de Bento: Deleuze, Foucault, Freud, Heiddeger, Horkheimer, Lebrun, Merleau-Ponty, Nietzsche, Rorty, Ryle, Sartre... Isso para nos restringirmos à filosofia; senão, teríamos que mencionar autores das neurociências e da psicologia, passando pela antropologia, além, é claro, de nomes de peso da literatura, com lugar especial para a poesia, e também da crítica literária – desmistificada ou não – do século XX.
     Contudo, em meio a tanta contemporaneidade de pensamento, há um período, entre 1969 e 1974, quando nosso professor retrocede na história da filosofia até o século XVIII, para estudar Rousseau. Foi quando esteve no CNRS em Paris. Na verdade, como lembra Franklin de Mattos, o período de interesse de Bento pelo genebrino é mais longo, indo de 1968 a 1977: durante esses quase dez anos, “quase todos os seus trabalhos foram consagrados a Rousseau” (MATTOS, 2008, p. 9). Ora, não se trata de uma escolha qualquer, pois, afinal, são quase dez anos de leitura e escrita sobre Rousseau! Tampouco se trata de um retorno protocolar, pois o que era de praxe em história da filosofia segundo o modelo francês adotado na Universidade de São Paulo passava por outros autores considerados obrigatórios na modernidade: Descartes, do século XVII, e Kant, do XVIII. Rousseau era lido nos cursos de ciência política e de literatura, mas não cabia nos programas de um departamento que marcava seu lugar na história paulistana sob a bandeira do método dito “estrutural”, mais adequado a destrinchar os sistemas filosóficos do que a esclarecer paradoxos entre existência e discursos de ocasião. Tanto é assim que o genebrino não é sequer mencionado nas memórias da Rua Maria Antônia, onde Bento relata seus anos de formação no Departamento (PRADO JR., 1988b). A dúvida surge portanto da constatação mesma do trajeto intelectual do filósofo brasileiro “franco-uspiano” e dessa aparente anomalia de percurso: a questão que devemos, pois, nos colocar é por que Bento Prado elegeu Rousseau como objeto tão destacado em sua pesquisa acadêmica?
     Não pretendo aqui apresentar uma resposta definitiva. Meu interesse é mais o de aproximar algumas declarações de Bento encontradas sobretudo em entrevistas e certas análises que ele faz de Rousseau. O que não significa, é claro, ausência de intenções. Nesse jogo de fragmentos que se iluminam quando agrupados, quero mostrar não apenas a coerência de um itinerário investigativo, mas também uma atitude perante os homens – os letrados em especial – que, mutatis mutandis, parece-me similar à atitude do próprio Rousseau. E se eu estiver sendo vítima de uma dupla ilusão retrospectiva, espero que o artigo valha ao menos pela seleção de textos dos dois clássicos que comento. Antes porém de passar para o registro dos discursos de Bento, inicio com um apontamento tão esclarecedor quanto provocativo de seu colega Paulo Arantes. Refiro-me ao ensaio “Bento Prado Jr. e a filosofia uspiana da literatura nos anos 60”, que compõe a narrativa das origens históricas do Departamento de Filosofia da USP no livro Um departamento francês de ultramar. Diante da questão por que Rousseau?, a seguinte passagem serve de mote para começarmos a montar as peças desse quebra-cabeça:
“É possível que tenha pesado algum acaso de livraria, a sugestão de um amigo, o pressentimento de uma mudança de gosto na metrópole (como logo se verificaria que era o caso) etc. Seja como for, mal iniciada a leitura deu-se o reconhecimento à primeira vista da paisagem familiar. Simplesmente encontrara um sucedâneo para Sartre, inviabilizado nesse meio tempo. Como resistir a uma outra fusão de raciocínio filosófico, estilo e destino pessoal?” (ARANTES, 1994, pp. 205-206)
     Sobre a “mudança de gosto na metrópole”, não tenho como saber se Bento Prado havia pressentido isso ou não. Mas o fato é que houve, não uma, mas duas grandes mudanças de gosto na filosofia francesa que reabilitaram Rousseau: a moda da filosofia da existência e a moda do estruturalismo. A primeira tem como referências os livros de Pierre Burgelin (1952) e Jean Starobinski (1958), que exploravam na década de 1950 aquilo que Rousseau chama de “sentimento de existência”, quer de um ponto de vista psicanalítico e literário, quer numa perspectiva fenomenológica. A segunda moda, que convencionou-se chamar de “estruturalista”, é emblematizada, como sabemos, pelo célebre artigo “Jean-Jacques Rousseau fundador das ciências do homem”, de Claude Lévi-Strauss (1962), cuja tese é “Rousseau inventor da etnologia”. Para Lévi-Strauss, o segundo Discurso é “o primeiro tratado geral de etnologia” porque apresenta uma crítica à sociedade e às verdades absolutas da Filosofia que, tendo por mérito conseguir escapar das armadilhas da metafísica, abre caminho para o desenvolvimento das ciências do homem no século XIX. Não é o caso de nos aprofundarmos aqui nessas leituras nem no problema da recepção da obra Rousseau. Deixo de lado as questões concernentes ao rousseauísmo e aos rousseauístas a fim de passar diretamente ao coração da tese de Bento.
     Em A retórica de Rousseau, livro resultante de pesquisa no CNRS, Bento fala dessas mudanças de interpretação chamando-as de “metamorfoses da obra” (PRADO JR., 2008, p. 35). Não se trata, porém, de fazer um mero inventário das leituras com o intuito de melhor evidenciar uma nova: para além do “estado da arte” que se esperava de qualquer projeto acadêmico, o capítulo introdutório do livro, “Leitura de Rousseau”, incorpora tais leituras – incluindo a do próprio autor – numa interpretação mais geral. O que chama a atenção na proposta de Bento é a maneira sui generis pela qual ele se insere no debate especializado em torno da obra de Rousseau: buscando conciliar, de um lado, sua formação “franco-uspiana” moldada pelo método estrutural em história da filosofia e, de outro lado, seu gosto pela expressão literária do próprio pensamento. O estilo ensaístico de A retórica de Rousseau não é mero capricho estético: o profissional da filosofia logo observa que as afirmações ali são sempre fundamentadas em rigorosa análise dos movimentos internos dos escritos do genebrino; contudo, a exegese rigorosa e árida não se encerra em si mesma, e é justamente a forma literária impressa por Bento em sua escrita que induz o leitor a descolar-se da economia interna do texto a fim de refletir sobre problemas análogos encontrados no mundo real da experiência vivida. Voltarei a este ponto mais adiante.
     Em relação às interpretações da obra de Rousseau, Bento opera uma espécie de síntese newtoniana dos dados que observa na multiplicidade de leituras de sua experiência, e isso, tanto no domínio da literatura quanto no da filosofia. Nessa analogia, que não é exagerada, a “impossível teoria” (PRADO JR., 2008, p. 68) – ou possível, se a teoria for considerada numa perspectiva crítica em relação à racionalidade do discurso – corresponderia ao seu vértice excêntrico de gravitação: um “centro retórico” (PRADO JR., 2008, p. 74). Fiel aos ensinamentos da cartilha estruturalista de Guéroult e Goldschmidt, mas sempre atento aos limites desse tipo de trabalho com o texto, Bento se alinha a toda uma tradição de intérpretes que afirmam a coerência dos escritos de Rousseau, porém, não para buscar, como todos eles, a unidade da obra, mas uma unidade que lhe chamava mais a atenção e que era dada por um fio condutor bem peculiar: o da relação entre filosofia e literatura. Eis aí o quadro contextual em que permito-me aproximar Bento Prado de Rousseau. Se Rousseau era o “sucedâneo para Sartre” ou não, isso pouco me importa: noto apenas que Rousseau era um objeto de trabalho oportuno, seja pelo fato de Bento simpatizar com a escrita de seu autor, a uma só vez literária e filosófica, ou seja porque, através de Rousseau, Bento conseguia refletir sobre o significado histórico do ambiente de “tecnicismo” e da ideologia de “ascetismo teórico” do Departamento de Filosofia da USP, do qual fazia parte (PRADO JR., 1988b, pp. 69-70), num país onde, de acordo com Antonio Candido, o essencial da vida do espírito girava originalmente em torno da literatura (ARANTES, 1994, p. 171).
     Em entrevista publicada no livro Conversas com filósofos brasileiros, Bento explica sua intenção: “A minha proposta, então, era sem perder as riquezas de cada uma dessas redescobertas, fazer uma interpretação unitária de Rousseau, restituindo a unidade de seu pensamento e procurando mostrá-la onde é mais difícil de ser mostrada” (NOBRE & REGO, 2000, p. 209). Eis aí o fio de Ariadne que nos conduzirá pelo labirinto das metamorfoses da interpretação. A pergunta que nós, leitores de Bento, devemos fazer agora é: onde, afinal, a unidade do pensamento de Rousseau era mais difícil de ser mostrada? A resposta não deixa de surpreender: num escrito póstumo e inacabado, considerado lateral no corpus da obra de Rousseau (juízo que se manteve até o início da década de 1970), que tinha o estatuto de mero esboço de um trecho do Discurso sobre a origem da desigualdade (um escrito não publicável, portanto), e cuja datação até hoje é matéria de polêmica entre os especialistas. O texto em questão é o Ensaio sobre a origem das línguas. Eis aí o lugar inóspito e cheio de emboscadas onde Bento se mete para nos conduzir pela trilha por ele aberta. Sem entrar nos detalhes desse escrito de Rousseau, apresento a seguir um resumo bastante superficial do caminho esquadrinhado por nosso professor:
     Rousseau problematiza, no Ensaio, a relação entre verdade e sociedade; considera para isso que, se a palavra é a primeira instituição social, seria então possível comparar o progresso – e, por conseguinte, o declínio – da sociedade e da linguagem. A tese de Rousseau, explicitada por Bento à luz do problema da ipseidade, porém sem uso abusivo do jargão fenomenológico, pode ser assim formulada: na trama da intersubjetividade que constitui o mundo humano, a verdade entra pela via da linguagem; com efeito, é na medida em que os homens se comunicam uns com os outros que os laços sociais, perpassados pela dita verdade, se estabelecem e se consolidam. Não é o caso de comentar aqui o processo de corrupção da ordem civil que vai de par com os progressos do espírito humano (esse é o lugar-comum de qualquer estudo do Discurso sobre a origem da desigualdade); limito-me a observar que, na teoria da linguagem do Ensaio, a novidade é precisamente a crítica à metafísica implicada na própria teoria: a referida trama dos sujeitos vê a linguagem operar não segundo o paradigma da representação pictórica do real, baseado na figuração e no critério racionalista da evidência, mas segundo o paradigma da imitação musical, que torna inteligível “a ação indireta de uma alma sobre outra” sem que essa inteligibilidade tenha que passar pelo crivo cartesiano da clareza e da distinção. A conclusão extemporânea, porém não anacrônica, que Bento tira dessa formulação da tese é que o estatuto da linguagem tal como aparece no Ensaio permitiria ao leitor futuro – em particular o da filosofia francesa de meados do século XX – salvar as ideias de sujeito e de intersubjetividade da demolição dos grandes sistemas de conhecimento que tinham por vigas-mestras a lógica, a gramática e a ideia de representação; dessa maneira, a linguística de Rousseau não seria incompatível com uma certa antropologia (a do Discurso sobre a desigualdade, segundo a qual as determinações fundamentais do homem dizem respeito às paixões, e não à razão), o que deslocaria a obra do genebrino tanto em relação às filosofias da existência que admitiam na representação do ser a sua “presença imediata”, quanto em relação aos debates das filosofias da linguagem que negavam o lugar do sujeito no problema da enunciação da verdade. É nessa senda descoberta entre duas grandes “modas filosóficas” que devemos contextualizar a máxima em tom nietzschiano que Bento Prado faz acerca do “uso retórico da linguagem” em Rousseau: “o sentido é a força” (PRADO JR., 2008, p. 171). Eis aí, em linhas gerais, a nova abordagem de um antigo problema que permite a Rousseau (ou melhor, ao Rousseau de Bento) restituir a relação entre natureza humana e sociabilidade nos termos de sua própria filosofia, tendo por pressuposto que, enquanto instituição primeira, a língua foi inventada para comover o outro, e não para comunicar ideias.
     Ora, tal percurso expositivo se adequaria perfeitamente a um estudo de gênese e estrutura do segundo Discurso; não duvido que Bento poderia redigir comentários sobre a economia interna do Ensaio tratando do momento da digressão das línguas, de modo a produzir um subcapítulo do monumental Anthropologie et politique: les principes du système de Rousseau, de Victor Goldschmidt (1974). Porém, o que nosso professor realiza é mais do que análises genéticas ou estruturalistas: ao final de seu percurso expositivo, o que ele apresenta é uma teoria dos auditórios (PRADO JR., 2008, p. 91); teoria esta que não apenas esquematiza o arcabouço lógico-conceitual do discurso e descreve o problema da linguagem no Ensaio, mas que também evidencia a própria relação entre o Rousseau autor e seu auditório de leitores, quer os de seu tempo, quer os leitores futuros.
     A teoria dos auditórios de que fala Bento tem em vista a relação entre Rousseau e seus leitores. No concernente à retórica, essa relação explica a diversidade dos gêneros literários pelos quais os escritos de Rousseau transitam: das ciências à autobiografia, passando pelo romance, pela filosofia, pelo direito, com lugar ainda para o teatro e para a música. O romance, em particular, adquire um espaço significativo na exposição de Bento na medida em que, para Rousseau, a eloquência romanesca se assemelha à eloquência política: os capítulos V e VI de A retórica atestam essa afirmação. A teoria dos auditórios perfaz assim uma espécie de abordagem historicista da linguagem sem contudo desenraizar-se por completo do registro da sincronia.
“A importância da ideia de auditório particular também é visível nas consequências que desencadeia no âmbito da concepção dos gêneros literários. O reconhecimento do caráter local de todo discurso destrói a ideia de que os diferentes gêneros correspondam a essências imutáveis e fixas num céu qualquer: os gêneros devem ser compreendidos sobre o fundo de uma historicidade que libera sua possibilidade ou que os torna inviáveis, expulsando-os para o mundo exterior do sem sentido. É o que podemos perceber ao comparar os textos em que Rousseau fala da eloquência política e do romance. Não se trata propriamente de dois gêneros diferentes: são antes as formas de discursos que são possíveis para o cidadão em situações históricas diferentes.” (PRADO JR., 2008, p. 94)
     Não é à toa, pois, que a intenção original de Bento ao projetar seu livro sobre Rousseau era de chegar ao discurso político, coisa que se verifica no subtítulo da tese: “O Discurso Político e as Belas-Letras”. Quanto ao trecho citado, salta-me aos olhos a relação entre verdade e retórica, pois ela diz respeito a uma outra relação, mais geral, que Bento sempre vislumbra: entre filosofia e literatura. Mais adiante, em A retórica, Bento escreve como conclusão de seu percurso no Ensaio das línguas que, no quadro da tradição metafísica, a novidade de Rousseau está em ter colocado a linguagem no lugar reservado a Deus:
“[...] já livre da dominação da representação, o discurso pode ainda manter, no mesmo campo, unificados por uma mesma verdade, o Discurso Político e as Belas-Letras. Este Deus não é mais o de Leibniz e a linguagem universal já foi afastada, mas a linguagem ainda não explodiu num pluralismo de verdades diferentes. Um fio ainda une a Nova Heloísa ao Contrato social, um fio que procuraríamos em vão entre a teoria política e a literatura, entre a escrita (por exemplo) de Marx e a de Mallarmé. É este fio e esta continuidade, a unidade retórica em Rousseau entre o discurso político e as belas-letras, a chave para melhor compreender a obra do genebrino em sua totalidade.” (PRADO JR., 2008, p. 186)
     Note-se aí a ponte que Bento Prado constrói entre a teoria e a literatura a partir do trabalho de análise sobre a linguagem em Rousseau à luz do modelo da retórica. Mas deixemos de lado o que há para além da travessia e examinemos mais de perto a estrutura mesma dessa ponte. Basicamente, trata-se de uma teoria que se desdobra em outras três. Em entrevista a Ricardo Musse publicada na Folha, Bento Prado se explica: “O trabalho trata da teoria da linguagem, da teoria do romance e da teoria do teatro em Rousseau” (PRADO JR., 2000). O resultado do estudo – a teoria dos auditórios – consiste, portanto, numa tríade explicativa: (1) teoria da linguagem, que contrapõe os paradigmas pictórico e musical no problema da verdade; (2) teoria do romance, que analisa na Nova Heloísa o uso retórico da narrativa de ficção para dar ao leitor uma via de acesso ao real; (3) teoria do teatro, que discute, a partir da Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, o lugar da linguagem teatral na sociedade, tendo-se em vista o ordenamento das paixões. Todas essas teorias – não há dúvida quanto a isso – encontram-se correlacionadas pelo modelo da retórica. É no seio dessa tríade teórica que, na leitura de Bento, encontra-se a unidade do pensamento de Rousseau.[1]
     Todavia, estaríamos equivocados se pensássemos que a teoria dos auditórios de Bento serve apenas para justificar a coerência das ideias de Rousseau. Não podemos nos esquecer que o resgate do genebrino acontece no âmbito de um itinerário filosófico que busca compreender o mundo presente da experiência vivida. Com efeito, se notarmos bem, o problema das “metamorfoses da obra” em A retórica de Rousseau não deixa de ser, no universo de interesses filosóficos mais largos de Bento, um correlato do problema da subjetividade. Explico-me.
      A variedade de leituras da obra de Rousseau é uma constatação que nos induz a conjecturar sobre algum tipo de síntese. Numa perspectiva idealista, a unidade poderia ser determinada pelo enunciado de uma lei da obra perante a qual as interpretações diversas pudessem ser subsumidas. Todavia, Bento em sua leitura não trata de buscar uma teoria geral que ligasse todos os escritos de Rousseau e todas as leituras dos comentadores, pois uma tal estratégia, ainda que realizável na prática, seria contraditória, pois consistiria em tentar afirmar justamente aquilo que o seu Rousseau nega: o conhecimento da verdade por meio da representação. Donde se compreende o porquê de nosso professor esquivar-se de representar, quer uma obra para a qual convergiriam os vários temas, quer um indivíduo histórico cuja unidade estaria em sua identidade pessoal. Ou seja, nem coerência de assuntos, nem personalidade autoral; o que interessa a Bento Prado é refletir sobre a “unidade de pensamento”, isto é, a unidade de teoria. Como salienta Bento, a unidade do pensamento é diferente da unidade da obra (PRADO JR., 2008, p. 75): a unidade da obra se afirma “na medida em que exprime uma mesma existência, na medida em que nos livros, teóricos ou não, encontramos os mesmos temas e as mesmas obsessões”, ou seja, uma “convergência temática”; já a unidade do pensamento diz respeito fundamentalmente à “coerência teórica”, o que em última instância significa buscar as condições de possibilidade, ainda que não condições a priori, dos escritos de ocasião produzidos ao longo da vida de Rousseau.
     Preciosismo terminológico? De modo algum! O esforço de Bento revela sua preocupação em esboçar um modelo de subjetividade que, por levar em conta a crítica que Rousseau faz à representação, não poderia ser nem o da identidade pessoal amarrada pela memória, e nem o da estrutura constituída pela unidade sintética de percepções. Como explica Vladimir Safatle (2007, p. 8), Bento está a procura de uma subjetividade que possa ser pensada negativamente, como “espaço no interior do qual o pré-individual é confrontado constantemente com modos de síntese”. Tais palavras são condizentes com o que ocorre n’A retórica de Rousseau, mas insisto em observar que Safatle se refere à totalidade da obra de Bento. No fundo, trata-se do velho tema do sujeito que se reconhece na relação com o outro, porém, com a novidade de tirar da jogada a substância do cogito; a exigência que Rousseau impõe às ciências do homem por meio de sua crítica à metafísica é a de pensar o problema da alteridade (ou, para Bento, da ipseidade) sem o essencialismo da identidade pessoal. É nesse sentido que Safatle fala no “pré-individual” da subjetividade; fala ainda, como mostra a citação abaixo, na “alteridade anônima”:
“[...] desde sua tese sobre Bergson, ficava claro que a verdadeira preocupação de Bento Prado consistia em perguntar-se sobre o que pode ser uma subjetividade capaz de descobrir o impessoal e o irredutivelmente Outro como seu solo gerador. Ou seja, contrariando uma longa tradição moderna, tratava-se de desvincular sujeito e locus da identidade, isto através de uma reflexão sobre a alteridade anônima que precede toda constituição da individualidade, mas com a qual ela deve sempre se defrontar.” (SAFATLE, 2007, p. 8)
     Trocando em miúdos, Bento encontra em Rousseau a chance de repensar o lugar do sujeito na linguagem prescindindo da representação de uma identidade essencial, quer à maneira racionalista com o cogito, quer à maneira kantiana com a apercepção transcendental. E isso – o que muito impressiona – no interior do quadro conceitual da filosofia moderna. Tudo se passa como se, através da recusa à metafísica tal qual vemos no Ensaio, Bento vislumbrasse nas relações intersubjetivas um não-lugar propício para se conceber o eu pela via do negativo, escapando assim de essencialismos precoces. O trecho seguinte traz o esquema que organiza a leitura d’A retórica e mereceria ser levado muito a sério se quisermos compreender a tal “unidade do pensamento” do Rousseau de Bento:
“À utopia da Gramática – quer dizer, a uma concepção da linguagem que ignora todo lugar, geográfico ou histórico, norte e sul, antiguidade e modernidade, em sua vontade de universalidade –, a linguística de Rousseau opõe uma topologia que procura sobretudo as diferenças de lugar, no espaço e no tempo, mas também no interior de uma mesma sociedade [...]. À lógica que atravessa a linguagem em direção à universalidade do entendimento, Rousseau opõe uma espécie de estilística que enquadra a verdade da linguagem no sistema das diferenças locais e históricas, num pluralismo de linguagens qualitativamente diferentes.” (PRADO JR., 2008, p. 178)
     O lugar do sujeito não está no reino utópico da gramática, e sim numa topologia, ou, como Bento mesmo define esse saber (aqui entendido de modo muito particular como um ramo da ciência do discurso), “uma tipologia dos sujeitos discursivos” (PRADO JR, 2008, p. 358, nota).[2] A “estilística” de Rousseau diz respeito justamente aos topoi discursivos, ou seja, às situações ou posições do sujeito falante: “formas diferentes de situação do sujeito na trama do discurso” (PRADO JR., 1977, p. 39). E ao contrário da gramática, que visa o convencimento, o estilo visa a persuasão, isto é, a adesão voluntária, o que assegura espaço de sobra para se falar em liberdade na trama dos sujeitos.[3] Se bem entendo o que Safatle diz, os diversos “modos de síntese” corresponderiam à “estilística” que Bento alegoriza na imagem da série de discursos que giram em torno do “eixo retórico”. Exemplo de subjetividade topológica está na declaração de Rousseau ao Arcebispo Christophe de Beaumont quando da condenação do Emílio: “Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre segundo os mesmos princípios [...]. Quanto a mim, permaneci sempre o mesmo” (ROUSSEAU, 1969, p. 928).
     Em suma, a leitura de Bento, tomando como ponto de partida a distinção entre unidade da obra e unidade do pensamento, termina por inscrever Rousseau numa tradição filosófica de crítica à metafísica sem fazer dele um precursor dos pós-estruturalistas que proclamam a morte do sujeito. Embora seja elaborada com os mesmos elementos utilizados nas sistematizações dos grandes comentadores da obra de Rousseau que tratavam do tema da linguagem, essa abordagem não chegou a ser sequer cogitada por nenhum deles. Nem Starobinski (1961, 1970), nem Derrida (1967), que investigaram a obra do ponto de vista dos não-ditos e da escrita; nem Jean Lecercle (1969), nem Robert Mauzi (1960), que examinaram as questões ligadas à literatura; nem Foucault (1962), que trabalhou com o obscuro Rousseau juiz de Jean-Jacques: Diálogos, tratando da linguagem, da verdade, da voz, etc.; nem mesmo os leitores de Rousseau na área da psicanálise – Alain Grosrichard (1967), por exemplo –; nenhum destes imaginou nada que se assemelhasse à tese de Bento Prado.
Estudar “o lugar do sujeito, ou melhor, o problema da ipseidade e de suas formas de expressão” (PRADO JR., 2004, p. 11): eis o que realmente interessava nosso professor de um ponto de vista geral. Por isso posso dizer com segurança: na Retórica de Rousseau, trata-se menos de refletir acerca da tal “unidade do pensamento” em si mesma do que na questão prática de elaborar com a linguagem uma sequência de topoi (lugares) nos quais um sujeito hipotético, e não hipostasiado, pode ser tomado como objeto de discurso. É o que parece ficar sugerido nas palavras de Bento em entrevista a Nobre e Rego (2000, p. 214): “mostrar o lugar da subjetividade na linguagem e, mais do que na linguagem, no discurso”. Como realizar isso? A resposta é: comparando. Quando comparamos o quase-animal que é o homem em estado de natureza do segundo Discurso e os homens cheios de vícios que são os cidadãos poloneses do século XVIII, podemos apreender, com algum trabalho de abstração, um sistema de diferenças e semelhanças de algumas qualidades (por exemplo, a paixão do amor de si mesmo e sua versão social que é o amor-próprio), de modo a tirar dessa análise topológica certos traços de subjetividade que determinariam indivíduos em relação, sem que, no entanto, tal constatação implicasse em qualquer exigência para se atrelar um conteúdo essencial a essas formas de sujeito ou à trama da intersubjetividade. Numa entrevista publicada na Ilustríssima!, Bento declara em tom pragmático que seu interesse por Rousseau passava pelo estudo de uma “concepção de linguagem não como representação, mas como práxis e como horizonte de intersubjetividade” (PRADO JR., 2003). Vale lembrar aqui que, no segundo Discurso, a trama da intersubjetividade é tecida em linguagem científica (o estilo é o dos discursos de físicos e naturalistas) a partir de um modelo antropológico dessubstancializado ao extremo, que prescinde da faculdade racional e até mesmo da inclinação à vida em comum: “não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo ao invés de fazê-lo um homem” (ROUSSEAU, 1964, p. 126). Vale lembrar também que, no capítulo VIII do Ensaio, Rousseau deixa claro que é a topologia que condiciona a antropologia e, por conseguinte, a trama de intersubjetividade: “Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de si; mas para estudar o homem é preciso aprender a lançar a vista ao longe; é preciso, inicialmente, observar as diferenças, para descobrir as propriedades” (ROUSSEAU, 1995, p. 394).
     Ora, veja-se nesse procedimento de apreensão “estrutural” e “estilística” da subjetividade uma quase coincidência entre os saberes relativos ao homem e à linguagem. Digo então que tanto Bento Prado quanto Rousseau podem ser considerados pensadores que faziam da realidade humana presente – podemos chamar isso de “cultura” – o tema de suas reflexões e de seus discursos. Valho-me de um artigo do professor Bento Prado Neto, que corrobora essa minha hipótese ao nos dar mais alguns elementos para compreender o porquê da escolha de Rousseau por parte de Bento Prado Jr. De acordo com Prado Neto, o interesse de Prado Júnior seria duplo: por um lado, um exercício historiográfico para dialogar com a filosofia francesa contemporânea, mais especificamente, com Althusser e Derrida, e por outro lado, encontrar a atualidade da crítica que Rousseau faz à civilização. Ou seja, ao escolher Rousseau, Bento Prado Jr. estava, como sempre, buscando a contemporaneidade do pensamento; a despeito do desvio de olhar para o século das Luzes, ele não perdia de vista a “cultura” do século XX. Cito Bento Prado Neto:
“O que interessava Bento em sua leitura de Rousseau era uma certa crítica da cultura – cujo verdadeiro sentido se via encoberto pelas variadas leituras, de cunho retrospectivo, da época –, o modo específico pelo qual Rousseau propunha um ‘nouveau partage théorique et pratique à la culture de son temps’ [uma nova demarcação teórica e prática para a cultura de seu tempo].” (PRADO NETO, 2007, p. 51)
     Notemos que o texto em francês na citação acima é tirado do célebre ensaio “Gênese e estrutura dos espetáculos” (PRADO JR., 2008, p. 305), onde Bento Prado examina o discurso de Rousseau na Carta a d’Alembert sobre os espetáculos (1758) tendo em vista os efeitos da implantação de uma companhia de teatro sobre a trama de intersubjetividade na Genebra do século XVIII. O “estilo” em questão aqui é, aos olhos de Bento, o daquele sujeito que hoje chamaríamos de crítico da cultura; seu discurso é povoado por sujeitos-tipo que o lugar da Carta evoca: o ator (e as atrizes), o espectador (bom ou mau), os personagens das peças (Alceste e Filinto são emblemáticos!), todos girando em torno dos “montagnons” da pequena cidade hipotética nas cercanias de Neuchâtel. Não é difícil perceber que Bento infere o sistema das diferenças em dois níveis: na comparação interna dos tipos individuais da própria Carta, e na comparação “estilística” de uma série de topoi (p. ex., confrontando o “montagnon” no topos da estética teatral com o homem em estado de natureza do científico Discurso sobre a desigualdade). Não haveria espaço para me aprofundar aqui no exame que Bento faz da Carta a d’Alembert, mas não posso deixar de mencionar o ensaio “Cena teatral e amor-próprio”, assinado por Franklin de Mattos; a passagem que reproduzo a seguir joga bastante luz sobre a aproximação que tento fazer entre o filósofo brasileiro e o fundador da etnologia:
“[...] a Carta é um exame da função social e política dos espetáculos, cuja originalidade, entretanto, só aparece no interior da antropologia e filosofia da história rousseaunianas. Esta antropologia e filosofia denunciam o procedimento metodológico dos filósofos ilustrados, cujo etnocentrismo, no caso, pretende resolver a questão do teatro sem passar pelo ‘inventário das diferenças’ que suas formas assumem ao longo da história. Tal inventário mostra, entretanto, que a posição da cena em cada cidade jamais é a mesma, que esta posição varia segundo o caráter, os costumes e o temperamento de cada povo, ou seja, de acordo com o tempo e o espaço. Mas isto não quer dizer que Rousseau oponha ao etnocentrismo das Luzes os tradicionais argumentos do ceticismo, pois, se a posição da cena varia, sua função é sempre idêntica: espelhar justamente o caráter, o temperamento e os costumes do povo para o qual é feita. Aquilo que Rousseau toma emprestado a Platão ou aos escritores jansenistas é secundário. O que há de novo em sua argumentação, conforme Bento Prado, ‘é o uso que se dá a essa proposição, como preparação de uma genealogia dos valores: ela torna possível a hierarquização das diferentes formas de espetáculo mediante um diagnóstico da qualidade do público’. A desqualificação do teatro clássico francês implica, portanto, a do público para o qual ele é feito.” (MATTOS, 2001, p. 84-85)
     Na estilística de Rousseau, o crítico da cultura da Carta é comparável ao crítico da representação do Ensaio pela convergência de dois “modos de síntese” da subjetividade: do ponto de vista da moral, identifica-se um topos discursivo no diagnóstico da qualidade dos laços sociais constitutivos de um determinado povo histórico; e do ponto de vista da história da filosofia, temos um Rousseau, definido no topos do iconoclasta das Luzes que inspirará Kant quanto ao uso reflexivo da razão. Esse estilo crítico da subjetividade que figura (ou desfigura) o real, sobretudo no que diz respeito ao olhar do etnológo sobre a cultura, fica ainda mais evidente quando Bento Prado Neto comenta que seu pai “desfaz uma cartografia apressada ou interessada”, acrescentando ainda que Wittgenstein também se propunha buscar “uma nova cartografia e prática para a cultura de seu tempo”, o que mostra a total coerência da passagem de Rousseau para Wittgenstein no percurso de Bento Prado Jr. Não é à toa que, em 2006, num colóquio sobre as Cartas da montanha na PUC-SP, do qual sou testemunha, Bento disse em sua conferência que queria aproximar Rousseau do segundo Wittgenstein. Ora, considerada a análise que acabo de expor, a passagem da Carta a d’Alembert para as Investigações filosóficas não parece absurda. Seria uma mudança de estilo no interior da mesma série topológica, ou então, uma mudança de série na mesma sequência de séries.
     A partir dessa possibilidade de deslocamento estilístico, penso que Bento via a cultura como um horizonte de linguagem para se falar em subjetividade e – por que não? – em existência. Buscar uma “antropologia na poética da existência”, entendendo-se aí o sentido aristotélico de poiesis, ou seja, produção ou obra de arte. É com essas palavras que Franklin Leopoldo e Silva, numa resenha em homenagem ao Bento publicada no Estadão em 2008, resume muito do que apresentei neste artigo. Eu apenas acrescentaria: uma poética cuja expressão se efetiva de diversos modos. Segundo Franklin Leopoldo, não se trata de ecletismo no caso da obra de Rousseau, pois Bento Prado mostra que a pluralidade de gêneros e a diversidade dos meios de expressão são presididas por uma articulação profunda de categorias fundamentais do pensamento. Num comentário de finesse geométrica, Franklin Leopoldo fala de Rousseau para falar, indiretamente, de todo um projeto de investigação filosófica de Bento (estamos aqui a uma distância imensa dos medíocres protocolos da filosofia tecnicista):
“Não se trata apenas de esclarecer correspondências cognitivas e relações morais; trata-se de entender como tudo isso responde ao interesse humano na constituição de uma história em que se mesclam ilusões, veleidades e contradições que constituem o enredo da civilização. Empresa em que o cuidado na construção da posição subjetiva da crítica filosófica é tão importante quanto a escolha dos procedimentos que permitirão apreender uma verdade que muitas vezes está escondida ou sepultada sob o próprio peso do valor que lhe foi atribuído.” (LEOPOLDO E SILVA, 2008)
     Pego carona na verve de Franklin Leopoldo e detenho-me na ideia de uma história de ilusões e veleidades que faz o enredo da civilização. A relação entre filosofia e literatura visa coisas mais urgentes do que meros devaneios em mundos fictícios ou querelas ideológicas implicadas nas relações de poder que permeiam as instituições acadêmicas. No caso de Bento, o que temos é uma investigação filosófica que, sem abrir mão das paixões, indaga acerca de uma possível história da razão: história – quer a de Rousseau, quer a do próprio Bento – tecida por contradições inerentes à própria trama da intersubjetividade: trama esta no interior da qual se inscreve a própria filosofia enquanto obra humana. Ao olhar arqueológico de Rousseau, a história da razão humana mostra o encobrimento da verdade da natureza pelas camadas de civilidade. À leitura crítica de Bento, as metamorfoses da obra de Rousseau mostram o encobrimento do discurso filosófico por si mesmo, na medida em que os filósofos tentam enunciar, em discurso atolado na história, a verdade abstrata. Quando escreve sobre “o discurso do século e a crítica de Rousseau” (artigo de 1976), Bento Prado não está simplesmente comentando o texto do genebrino; mais do que isso, o que ele faz é buscar condições enquanto sujeito historicamente situado para tomar, de alguma maneira, um certo objeto de enunciação, a saber, a verdade abstrata acerca de seu próprio mundo, no tempo presente, em seu século e em sua linguagem; tudo isso, no atoleiro da história do pensar, nesse topos discursivo cheio de ilusões, veleidades e contradições.
“Vemos assim qual é o peso do século – tanto mais que ele impõe, com a sua linguagem, um horizonte incontornável. De resto, podemos dizer, antecipando um pouco, que o século é a sua linguagem. O pensamento crítico não pode deixar de passar pelas malhas dessa linguagem, respirar a atmosfera do preconceito ou da ideologia; mesmo se sua tarefa é dissolver essa trama, é inevitável que comece por situar-se dentro de seu espaço, pois não pode falar de um lugar absolutamente outro e não dispõe de outra linguagem. Mas, se escrever significa, deste modo, apoiar-se sobre a linguagem, torcê-la numa nova direção, subverter a ideologia, dizer só pode ser contra-dizer.” (PRADO JR., 2008, p. 334)
     Não se trata aqui de forçar uma interpretação que aproximaria Bento de Jean-Jacques, mas apenas mostrar que, com base numa análise textual absolutamente colada ao texto comentado, o discurso se desdobra de modo a estabelecer uma dupla aliança de fidelidade: sem deixar de ser fiel às técnicas de leitura internalista das obras filosóficas, o leitor-filósofo Bento Prado Jr. também é fiel a si mesmo e busca refletir acerca de seus próprios problemas em seu próprio século e no interior dos limites de sua própria linguagem. Dupla circunscrição que implica em dupla libertação; o que não é nenhum absurdo, uma vez que até mesmo Goldschmidt (1968), com suas regras de método para orientar a interpretação estruturalista, falava em responsabilidade filosófica – ou seja, falava em liberdade.
     Ora, quem fala em liberdade, fala, mais cedo ou mais tarde, em política. De fato, lembremos mais uma vez o título da tese tal como Bento havia concebido originalmente: “O Discurso Político e as Belas-Letras”. Já sabemos que sua preocupação de fundo é a relação entre filosofia e literatura. Quanto ao trabalho sobre Rousseau, indiquei a relação necessária entre linguagem e subjetividade, não apenas no conjunto da obra do genebrino, mas também na relação estabelecida entre essa obra e seus leitores futuros. Resta-me mostrar agora que essa subjetividade tende necessariamente para a política, pois, como diria o próprio Rousseau nas Confissões, “vi que tudo dizia respeito radicalmente à política” (ROUSSEAU, 1959, p. 404). Nesse momento, parece-me muito importante a passagem em que Bento compara a crítica de Rousseau à filosofia com a separação operada pelo autor do Elogio de Helena entre, de um lado, “a verdade local e efêmera” que diz respeito às decisões práticas de moral e de política, e de outro lado, a episteme que ambiciona “conter, na frágil rede de seu discurso, a totalidade do real”. Cito um de meus trechos favoritos da Retórica de Bento:
“A crítica da Filosofia tem a mesma inspiração em Rousseau e Isócrates: o filósofo é o arrazoador, vítima de uma louca hybris que pretende conter, na frágil rede de seu discurso, a totalidade do real. Ao filósofo, tanto Isócrates quanto Rousseau opõem a finitude do Saber humano e a impossibilidade de decidir com certeza entre as hipóteses rivais, de descobrir, entre todos os sistemas do mundo, qual o verdadeiro. A uma vã preocupação teórica, para sempre condenada à insolubilidade, os dois críticos da Filosofia opõem a preocupação mais séria da moral e da política; preocupação com problemas que são passíveis de solução no plano de uma ortodoxia, de uma opinião reta e razoável, que não precisa procurar, numa episteme qualquer, a sua verdade. É, de fato, uma espécie de fé ou de boa fé que ocupa o lugar deixado vago por uma ciência doravante impossível: e, com essa boa fé, é a retórica que adquire a dignidade de discurso verdadeiro, mesmo que não aspire a uma verdade absoluta. Essa verdade da qual é capaz – e que lhe confere sua dignidade – já não é, evidentemente, a verdade eterna de uma Razão intuitiva, mas uma verdade local e efêmera que é, no entanto, a única com a qual a decisão prática pode contar, e só ela pode responder à urgência da vida moral e política. Trata-se de uma concepção mais humilde da verdade, mas é justamente essa humildade que está à altura das graves decisões que torna possíveis. É, no fundo, a ideia do kairos que comanda essa concepção do discurso e da verdade – o kairos é esse instante efêmero que eclode no tempo urgente e rápido em que as cidades justas podem se precipitar na corrupção e na injustiça.” (PRADO JR., 2008, p. 86-87)
     Em uma palavra, Bento resgata o modelo antropológico com que Rousseau critica a cultura de seu tempo no segundo Discurso por via do Ensaio, e o aplica para pensar – e falar – sobre a própria cultura do século XX, cujo ordenamento (leia-se aí a trama da intersubjetividade) se dá menos pela convicção acerca de verdades absolutas do que pela persuasão decorrente de verdades locais e efêmeras. E isso, sem se limitar a uma análise estritamente internalista dos escritos de Rousseau: pois a fala de Bento expressa, por seu “estilo”, uma preocupação política análoga à do genebrino, fazendo até mesmo um uso retórico da linguagem a fim de, como Isócrates, elevar seu pensamento e seu discurso à altura das graves decisões da realidade histórica do presente. Daí lermos a observação n’A retórica sobre a contemporaneidade desse autor do passado lido por leitores futuros como se a transposição da obra pudesse se dar atemporalmente: “A leitura de Rousseau tornava-se solidária das aventuras do pensamento vivo” (PRADO JR., 2008, p. 43). Parece-me que foi pensando nesse transcurso temporal do pensamento vivo que Vladimir Safatle escreve em sua resenha do livro: “trata-se de mostrar como, para além do tempo lógico, a filosofia conhece uma espécie de tempo transversal por meio do qual o presente pode colocar questões e trabalhar as respostas do passado” (SAFATLE, 2008). Objetos de reflexão: Rousseau, Sartre, Bergson, Wittgenstein, não importa quais sejam. Bento está sempre pensando, sem anacronismos pueris, com um pé no presente e outro no presente de seus autores, todos contemporâneos de um mesmo pensamento, a despeito de suas metamorfoses.
     A retórica de Rousseau é, num sentido profundo, um trabalho que trata de política. Há nesse livro, desde seu projeto original, um esforço para fazer convergir discurso e ação no mundo que desvela uma preocupação urgente com o “pensamento vivo”. É preciso, portanto, matizar a justificativa de Bento quanto ao motivo de não escrever a parte política da tese. O fato é conhecidíssimo: a alegação foi que, na época, Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987) fazia exatamente a mesma coisa que Bento projetara fazer n’A retórica. A respeito das teses de Salinas defendidas em Rousseau: da teoria à prática (1974) e Paradoxo do espetáculo: política e poética em Rousseau (1983), Bento esclarece: “São intuições particularmente reveladoras, que me fizeram desistir de completar meu livro sobre Rousseau, com a parte prevista sobre retórica e política, por encontrá-la exposta com mais competência nas páginas já escritas por Salinas.” (PRADO JR., 1988a, p. 8).[4] Contudo, tal misto de modéstia, timidez e admiração pelo amigo não devem obnubilar a apreciação das questões políticas trabalhadas em A retórica de Rousseau. Isso porque o livro, considerado como um todo, traz a política em seu bojo, como a inspiração que constitui toda a démarche realizada por Bento desde seu projeto original:
“[...] pensava em mostrar, a partir de minha teoria da concepção retórica da linguagem de Rousseau, a consistência entre o Contrato social de um lado e os escritos políticos concretos de outro – A Constituição da Córsega e o Projeto para a Polônia –, onde a maioria dos comentadores só consegue divisar contradições. Mas, quando voltei ao Brasil, estive na banca de Salinas que fazia exatamente isso. Então desisti dessa última parte.” (NOBRE & REGO, 2000, p. 209)
      Insisto em afirmar que a leitura de Bento não deixa de ser, ainda que à sua maneira, uma leitura fundamentalmente política da obra de Rousseau. Por isso afirmo que as teses de Salinas e A retórica de Rousseau são obras que devem ser lidas em conjunto, pois embora trilhem caminhos de análise diferentes, chegam a resultados semelhantes na medida em que encontram a unidade do pensamento de Rousseau circunscrevendo o lugar do sujeito no objeto do discurso político: a sociedade. Em todos os casos, tem-se um modelo retórico da linguagem que perpassa a trama da intersubjetividade e explica numa visão antimetafísica o ordenamento dos laços sociais. Ambos, Bento e Salinas, problematizam a verdade quando falam do escritor político Rousseau, e o fazem com a consciência de serem, assim como Rousseau, “sujets” de seus próprios discursos soberanos – discursos que projetam “um engajamento recíproco do público com os particulares” (ROUSSEAU, 1964, p. 362).

*

Para terminar, relato o seguinte fato do qual sou testemunha. Ruy Fausto, no lançamento do livro em 2008, disse: “Essa interpretação do Ensaio é muito complicada. Mas o que o Bento faz é espantoso!”. Não tenho a sagacidade nem a erudição de um Ruy Fausto para questionar a leitura de Rousseau feita por Bento Prado Jr. Mas, a partir da lição que aprendo com meu grande professor, penso, com todo respeito ao Ruy, que a crítica à leitura de Bento possa ser inscrita, ela também, no registro de uma outra moda filosófica; moda esta que, no final das contas, não constituiria nada mais do que mais uma das metamorfoses da obra de Rousseau. Por isso, limito-me à minha verdade particular e calo-me sobre o resto. Lembro que Rousseau, no livro IV do Emílio, diz, pela boca do vigário saboiano-wittgensteiniano, que devemos ser modestos e circunspectos sobre o que não podemos falar (ROUSSEAU, 1969, p. 627). Quanto a mim, leitor de Bento, contento-me com a verdade mais humilde e própria do kairos desta homenagem, e com a máxima energia que minha fraca voz consegue, digo apenas: “espantoso!”.



AUTOR
*Thomaz Kawauche é doutor em Filosofia pela USP. Bolsista CAPES/PNPD no Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCar.



Referências bibliográficas
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[1] Os textos do professor Franklin de Mattos são os mais indicados para quem tiver interesse no problema da literatura e do teatro em Rousseau (cf. MATTOS, 2001 e 2004).
[2] Agradeço Rafaela Ferreira Marques por ter chamado minha atenção para duas prováveis fontes de Bento quanto ao uso do termo “topologia”: Heidegger (em Da experiência do pensar, de 1947) e Merleau-Ponty (em Signos, de 1960).
[3] Bento devia ter em vista aqui o legislador do Contrato social (livro II, cap. 7), que recorre à força da voz dos profetas e dos pregadores religiosos para persuadir os cidadãos a serem livres, embora os sujeitos originais dessas vozes não possuam realidade no mundo dos homens: “não podendo empregar nem a força nem o raciocínio, recorre por necessidade a uma autoridade de ordem diferente, que possa coagir sem violência e persuadir sem convencer”; “o legislador põe as decisões na boca dos imortais para coagir pela autoridade divina aqueles que não poderiam ser abalados pela prudência humana” (ROUSSEAU, 1964, pp. 383, 384).
[4] Cf. tb. SALINAS FORTES, 1976 e 1997. 

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