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Bento Prado Júnior: Por que filósofo?


Silene Torrres Marques
UFSCar


Resumo: Este artigo tem como propósito apresentar as ideias de Bento Prado Jr. acerca da filosofia. Ele tem por base o texto de Bento intitulado, Profissão: filósofo, presente na coletânea de textos publicada nos Cadernos PUC, nº1, em 1980[1*]. Mais precisamente, este artigo vai acompanhar o pensamento de Bento Prado no decorrer de sua indagação sobre o que é ser filósofo. De um lado, uma reflexão sobre a filosofia e sua inscrição institucional, de outro, um posicionamento sobre a função da filosofia e sua razão de ser: por que filósofo? Esperamos que as linhas que se seguem possam revelar aos leitores não apenas a originalidade do pensamento de Bento Prado Jr., mas, sobretudo, instigá-los a ler seus livros.


                                                                             “La vraie philosophie se moque de la philosophie”.
                                                                                                              (Pascal)


            I- A primeira parte[1] do texto Profissão: filósofo é uma reflexão bastante original sobre a filosofia e sua relação com as instituições. Uma anedota sobre um encontro raro, provavelmente ocorrido em 1960 serve de introdução. Conta Bento que nesse encontro, entre filósofos analíticos e herdeiros da fenomenologia, ocorrido na Abadia de Royaumont, um britânico usou da anedota para uma explicação do que para ele parecia ser o que fundamentava o limite do pensamento de Husserl: “a falta de cerimônia diante da diversidade e da autonomia das ciências positivas. Donde viria o droit de regard da razão para sobre as diversas formas de conhecimento? Qual seria a origem dessa pretensão desmedida?” (PRADO JR., 1980, p.15).  O britânico explicava que era a ausência de um refeitório comum, na universidade alemã, aos professores das diferentes áreas, o que impediria Husserl de cruzar pessoalmente com físicos, matemáticos, químicos, biólogos, e outros pesquisadores (PRADO JR., 1980, p.15). A arquitetura da universidade exprimiria então, não apenas  certa estrutura da universidade e sua ideia tradicional de saber, mas também havia confinado o pensamento puro à “esterilidade da especulação solitária” que estaria cortada da “experiência comum e do curso do mundo” (PRADO JR., 1980, p.16). De modo que Husserl, cartesiano, teria seu destino desde sempre prefigurado e desenhado na ponta do lápis de um arquiteto desconhecido.
            Para Bento, mesmo sendo uma anedota, ela dá o que pensar. Convida-nos a considerar o tema filosofia e sua inscrição institucional de forma cuidadosa, e a pensar seus termos no plural e não no singular: “filosofias e instituições”. Nessa perspectiva, a própria ideia de universidade distancia-se de sua raiz, universitas, e acompanha o destino do múltiplo e do diverso. Sobretudo, há uma dispersão geográfica das filosofias e das universidades, o que impediria a formulação da questão em termos de pró e contra: ou seja, a “defesa da filosofia livre contra a filosofia universitária”, ou “a defesa da instituição universitária como templo privilegiado do pensamento”; e ainda impossibilitaria a “apologia das instituições extra-universitárias”, formas livres do peso da burocracia e da subserviência ao poder (PRADO JR., 1980, p.16).
            Há então uma diáspora das filosofias e das formas institucionais. O que mostra que a questão, formulada em sua generalidade, revela-se como um falso problema ou questão de gosto. Diz Bento: “Eu, particularmente sou palmeirense”. Mas a questão é: diáspora ou torre de babel? (PRADO JR., 1980, p.16). Bento então indaga sobre qual seria a reação do filósofo inglês caso lesse um parágrafo de um discurso do filósofo franco-argelino Jacques Derrida ao inaugurar o Grupo de Pesquisa sobre o ensino de filosofia (GREPH). No referido discurso Derrida interroga-se sobre 15 anos de prática de Ensino de filosofia na Universidade, sobre a ligação entre filosofia e ensino e sua reprodução no interior da instituição, ou melhor, de uma instituição bem precisa. Citemos um trecho desse discurso reproduzido por Bento em seu texto:
“Daquilo que chamarei, para abreviar, meu lugar ou meu ponto de vista, há muito era evidente que o trabalho em que me empenhara- chamemo-lo por álgebra, a desconstrução (afirmativa) do falogocentrismo como filosofia- não pertencia simplesmente às formas da instituição filosófica. Esse trabalho, por definição, não se limitava a um conteúdo teórico, quer cultural, quer ideológico. Não procedia segundo as normas estabelecidas de uma atividade teórica. Por mais de uma característica e em momentos estratégicos, devia recorrer a um 'estilo' insuportável para um corpo de leitura universitário, insuportável mesmo em lugares onde se acredita estar fora da universidade. Como se sabe, não é sempre na universidade que domina o 'estilo universitário'. Ocorre que cola na pele dos que a abandonaram e mesmo de alguns que jamais nela entraram” (apud PRADO JR, 1980, p.17). 

Nesse exemplo, Bento observa que não é mais através de uma anedota (humor britânico) sobre a exterioridade arquitetônica e institucional da universidade que se fecha ou se abre o campo do pensamento. Trata-se do fechamento ou da clausura da metafísica (falogocentrismo) que são descobertos nos alicerces da instituição (PRADO JR., 1980, p.17). Do discurso de Derrida, que é longo, Bento prioriza três pontos: 1) a tendência a apagar-se ou a inverterem-se os polos de oposição entre a universidade e o extra-universitário; 2) o fato de que é de dentro da Universidade que a desconstrução do falogocentrismo destrói, ao mesmo tempo, o “estilo – universitário”; 3) o fato de que o “corpo leitor”, que saiu da universidade ou nem sequer entrou, traz “colado irremediavelmente” na pele “o estilo universitário” (PRADO JR., 1980, p.18).
            Bento afirma que descarrilhou, acabando por abandonar o coração de seu tema. É preciso então retomar a formulação inicial insistindo no plural. “Vejamos, em transparência, através do tema do estilo, o que é universitário e anti-universitário” (PRADO JR., 1980, p.19). A proposta é então juntar à dispersão geográfica, já aludida, a dispersão histórica, e assim para cada figura histórica de universidade haveria um tipo de filosofia livre que lhe faria oposição. Bento nos lembra, tendo como referência uma frase de Kant que serve de epígrafe ao texto[2], que o adjetivo livre não estaria necessariamente afetado de sentido positivo.
            Bento inicia então sua proposta com o exemplo de Descartes. Ressalta o fato de que, para esse filósofo, a constituição da filosofia verdadeira é condicionada à ruptura com a instituição e à prática professoral “espaço onde triunfam a memória e o preconceito”. A filosofia, em Descartes aparece como obra solitária da razão natural e se constitui fora dos “muros sombrios da escola”. Descartes ainda desqualifica o “trato técnico e professoral” dos textos antigos, valoriza a tradição nascente da filosofia. Ele acredita que o “único texto da filosofia” é o grande livro do mundo. O filósofo puro seria o avesso do professor. “Nem o contato de Descartes com cientistas e pensadores de seu tempo, no exterior da instituição universitária diminui o caráter essencialmente solitário de sua caminhada” (PRADO JR., 1980, p.19-20).
            De Descartes, Bento passa à consideração de alguns filósofos do século XVIII, momento em que ocorre uma crítica sistemática da instituição universitária e a oposição à “instituição da escola” transforma-se numa nova pedagogia que talvez passe pela sua destruição. Entretanto, para “les philosophes” desse período o projeto de reforma é possível porque possuem a referência de outra instituição, exterior à universidade, que aparece como “modelo ideal de produção e transmissão dos conhecimentos”; trata-se das Academias Científicas[3]. Bento refere-se a Diderot e Condillac, mas fica apenas com o último, do qual cita a seguinte passagem:
“Constituíram-se estabelecimentos para o avanço das ciências que só merecem nossos aplausos. Mas eles não teriam sido necessários se as universidades tivessem sido adequadas a esse fim. Parece que se descobriu os vícios dos estudos sem descobrir-lhes os remédios adequados. Não basta fazer bons estabelecimentos: é preciso ainda destruir os maus, ou reformá-los segundo o modelo dos bons, ou sobre o melhor dele, se possível” (apud PRADO JR., 1980, p.20).

Não sendo mais obra de um cogito solitário, a filosofia, comenta Bento, passa a modelar-se segundo os cânones da colaboração entre cientistas da “república do saber”. Condillac opõe uma boa e uma má base institucional, mas não coloca em questão “o saber em si mesmo, a boa direção de seu desdobramento necessário, o valor da cultura que ele anima e da sociedade que nela se exprime” (PRADO JR., 1980, p.20). O problema da inscrição institucional do discurso filosófico torna-se exterior ao espaço da própria filosofia: “As academias, a república científica, oferecem o modelo de uma instituição co-natural ao pensamento, instrumento dúctil e instituição transparente, lugar donde a luz da filosofia pode espraiar-se sem problema para a totalidade do social” (PRADO JR., 1980, p.20-21).
            O pensamento do século XX vai justamente colocar em questão a homogeneidade do corpo social e o valor da cultura. A sociedade se transforma dos pés à cabeça e nela a função da universidade, obra do estado, que transforma o professor-filósofo em funcionário. Mas, sobretudo, a ideia de filosofia também se transforma com o fim da filosofia das luzes. Para exemplificar Bento cita uma passagem do texto de Nietzsche, Considerações Extemporâneas, no qual, propósito de Schopenhauer Educador, faz uma sobreposição da prática do filósofo-professor, que se tornou funcionário, a uma crítica geral da cultura. E discute o escrúpulo que desperta a relação entre o filósofo e seu empregador, “seu novo senhor, o Estado”.
“Tal é o escrúpulo: mas, como tal, sem dúvida, para homens como eles agora são, é o mais fraco e o mais indiferente. A maioria se contentará com sacudir os ombros e dizer: ' Como se alguma vez algo de grande e de puro pudesse permanecer e firmar-se nesta Terra, sem fazer concessões à baixeza humana! Preferis então, que o Estado persiga o filósofo, em vez de lhe pagar estipêndio e tomá-lo a seu serviço? '. Sem responder já a esta pergunta, acrescento apenas que essas concessões da filosofia ao Estado atualmente vão muito longe. Primeiramente: o Estado escolhe para si seus servidores filósofos, e, aliás, tantos quantos precisa para seus estabelecimentos; dá-se, pois, a aparência de poder distinguir entre bons e maus filósofos e, mais ainda, pressupõe que sempre há de haver bons em número suficiente para ocupar com eles todas as suas cátedras de ensino. Não somente no tocante aos bons, mas também ao número necessário de bons, é ele agora a autoridade. Em segundo lugar: ele força aqueles que escolheu para si a estadia em um determinado lugar, entre determinados homens, para uma determinada atividade; devem instruir todo jovem acadêmico que tiver disposição para isso, e aliás diariamente em horas fixas. Pergunta: pode propriamente um filósofo com boa consciência, comprometer-se a ter diariamente algo a ensinar? E a ensiná-lo diante de qualquer um que queira ouvir? Ele não tem de se dar a aparência de saber mais do que sabe? Não tem de falar, diante de um auditório desconhecido, sobre coisas das quais somente com o amigo mais próximo poderia falar sem perigo? E, em geral, não se despoja ele de sua mais esplêndida liberdade, a de seguir seu gênio, quando este a chama e para onde a chama? -- por estar comprometido a pensar publicamente, em horas determinadas, sobre algo pré-determinado. E isto diante de jovens! Um tal pensar não está de antemão como que emasculado? E  se ele sentisse um dia: hoje não consigo pensar nada, não me ocorre nada que preste-- e apesar disso teria de se apresentar e parecer pensar” (apud PRADO JR, 1980, p. 21-22).

Após o longo trecho, Bento ressalta que o mais importante é que se trata não apenas da crítica à máquina universitária como “pouco adequada ao exercício do pensamento”, mas, através da figura do Estado, “enunciador último ou primeiro dos juízos de valor”, é a totalidade da sociedade e da cultura que é posta em questão por Nietzsche. “A crise da Universidade, para Nietzsche é um efeito de superfície, pequena ruga na face mais visível das águas, mas que revela uma tormenta que se desencadeia nas águas mais profundas e que não deixa intacto o valor da cultura e da filosofia” (PRADO JR., 1980, p.22). Porém, adverte: com Nietzsche a crítica dos mecanismos anônimos da reprodução da cultura não significa de outro lado, o elogio da “subjetividade livre e irresponsável” (PRADO JR., 1980, p.23). A crítica não é feita de um ponto de vista exterior à história, num topos ouranos (mesmo que ela se direcione à modernidade). Em Nietzsche, a utopia está firmada no presente, e este, é nosso horizonte único. Bento ainda observa que não há contradição, em Nietzsche, entre o tema da montanha e da ascensão e a crítica proposta no trecho acima citado. Haveria um bom uso da decadência, e uma estratégia que inverteria instituições e valores! Bento deixa em suspenso a seguinte frase de Nietzsche: “Preferiria ser Professor em Bâle a ser Deus” (apud PRADO JR., 1980, p.23).
            Nesse ponto, Bento recorre a Rousseau, segundo ele, “outro crítico precoce de nossa modernidade”, o qual advertia, no prefácio de sua peça de teatro Narciso, que criticar a cultura não equivale à pretensão de sua destruição, que fazer a genealogia das instituições não significa negá-las absolutamente. Ou seja, a crítica do uso social do saber não significa que devamos “prescrever rapidamente a ciência e os sábios, queimar nossas bibliotecas, fechar nossas academias, nossos colégios, nossas Universidades, mergulhar novamente em toda barbárie dos primeiros Séculos” (apud PRADO JR., p. 23). Bento arremata observando que os ensinamentos da história revelam que a “proeza destrutiva” é obra de grupos organizados, muito mais do que de pensadores solitários (PRADO JR., 1980, p.23).
            Descarrilhamos, exclama Bento. Percorrer algumas figuras da crítica das instituições do saber não o levou muito longe! Ora, pergunta: “Falamos da inscrição institucional do discurso filosófico -- mas onde? Nosso discurso não estaria fora de lugar?” É preciso então situar-se: trata-se da filosofia no Brasil. A referência de Bento à época (1976) é a filosofia que se fazia na PUC de São Paulo, na USP, na UNESP e no CEBRAP. Essas instituições são seu horizonte. Referindo-se a um parágrafo de Tristes Trópicos, sobre a fundação da USP, a uma entrevista de Antônio Cândido e a um “velho texto de Mário de Andrade”, ressalta a revolução ocorrida em nosso pensamento com a instalação da instituição universitária: com a ajuda externa e eficaz da universidade europeia! Trazendo as ideias para nosso lugar histórico, a discussão entre saber e instituição perde um pouco de sua virulência: “No Brasil, a cultura escolar precedeu a cultura livre”, afirma referindo-se à frase de Kant. Por isso, aqui, a relação entre pensamento e instituição não tem o mesmo sentido que tem “hoje” (década de 70 do século XX), na França, daí o efeito cômico que adquire o texto de Derrida, citado anteriormente.
“Aqui, a instalação da escola precede e condiciona o exercício do pensamento - ela tornou possível a passagem do puro consumo de filosofia a um esboço de produção. Aqui, ali, modestamente [...]. Não há, é claro, uma filosofia brasileira, mas há, já, livros de filosofia, mais de um, de alcance planetário, capazes de interessar os melhores especialistas europeus” [4]. Dupla função da universidade: produzir, ao mesmo tempo, produtores e consumidores de cultura. São os consumidores que irão re-produzir a produção (PRADO JR., 1980, p.24).

Para Bento, esse elogio das instituições, pelo menos no Brasil, é o que importa.
            Nosso filósofo brasileiro finaliza a primeira parte de seu texto pedindo permissão para fazer um elogio ao diletante, ao amador. Refere-se então ao livro de Oswald de Andrade chamado Um homem sem profissão - ou sem ofício, como coloca Rousseau - “que só pensa ou escreve quando é necessário, isto, quando o prazer de fazê-lo é forte demais”. E para além da inscrição institucional, inverte a frase de Kant: “Só a cultura escolar é séria, mas a cultura livre é o mais belo dos jogos” (PRADO JR., 1980, p.24-25).

II – Na segunda parte do texto de Bento Prado Jr, intitulada Por que filósofo? – Os limites da Aufklärung[5], o que está em jogo é justamente o porquê, a razão de ser do filósofo. Aqui, sua análise tem como fio condutor a conferência de Husserl, de 1935, sobre A crise da humanidade europeia e a filosofia: “de dentro da crise”, Husserl oferece uma resposta “positiva e forte” para sua questão. “Husserl pretende sair do círculo que ela [a crise] desenha – trata-se de voltar à segurança do solo perdido e, mais ainda, de reatar, com mais firmeza do que jamais no passado, com o fundamento absoluto” (PRADO JR., 1980, p.25). O fato é que a crise é a crise da Europa. Uma crise que impõe a justificativa ou a reiteração da filosofia; refletir sobre a crise é encontrar “o porquê do Filósofo”, atribuindo nobreza à sua função. Outro fato é que essa crise “aparece quase ao nível do acontecimento”, evidenciando os “sintomas do perigo mortal”, legíveis, naquele momento político, na forma do Nazismo: Husserl fala como filósofo, mas também como alemão “não ariano” (PRADO JR., 1980, p.25).
            Entretanto, Husserl desentranha de seu presente imediato “a longa história da destruição da razão, ao longo de toda modernidade” (PRADO JR., 1980, p.25). De modo que, Europa e filosofia, “são uma e a mesma coisa”, atravessadas por um único destino, ambas nascidas simultaneamente na Grécia. Nesse sentido, os séculos VII e VI na Grécia testemunham o surgimento de um “novo estilo de cultura” que não se reduz a um acontecimento histórico-cultural. Mais fortemente, trata-se de um tempo e espaço novos, surgidos de dentro de uma história local que dá início à “verdadeira História (ou a história da verdade)” (PRADO JR., 1980, p.26). E do surgimento da “forma da teoria” com a qual emerge o “olhar livre” que, dissolvendo os entraves da tradição percorre as coisas buscando o fundamento e o universal. O nascimento da Filosofia e/ou da Ciência (Ur-fenômeno) seria então, para Husserl, o índice de uma “nova humanidade”. 
“De uma certa maneira, o nascimento da Filosofia tem o mesmo alcance, marca um salto tão fundamental quanto a irrupção da humanidade (do ser vivo dotado de razão) no seio da Natureza: a liberdade teórica com que a humanidade europeia nascente pode dispor do mundo como sistema de objetos implica num corte tão profundo como o da liberdade prática da humanidade natural que emerge da trama da vida animal: o filósofo está para o homem, como o homem para o animal. Como para Hegel, o advento do Infinito (aqui, o infinito como tarefa interminável da Razão) faz da Europa o Ocidente Absoluto e do Filósofo, o funcionário da Humanidade” (PRADO JR., 1980, p26).
           
Ora, o problema da relação entre Filosofia e não-Filosofia imediatamente aparece: como conflito e como tarefa pedagógica. A divulgação do “livre Saber” (não mais exclusivo aos profissionais do Saber) implicando, sobretudo, no combate entre universal e nacional fazendo com que a Aufklärung se transforme por consequência, numa figura política. Bento cita Husserl:

“É claro que (com a Aufklärung) não se produz simplesmente uma transformação homogênea da vida no quadro do Estado Nacional, a vida não permanece normal, inteiramente pacífica, mas vê-se nascer, verossimilmente, graves tensões internas que jogam essa vida e o conjunto da nação num estado de subversão. Os conservadores, satisfeitos na tradição, o círculo dos filósofos vão combater-se mutuamente, e seu combate há de repercutir no plano das forças políticas. Desde o início da filosofia, começam a perseguir, a desprezar os filósofos (...) Assim a subversão da cultura nacional pode ampliar-se, inicialmente à medida que a ciência universal, ela própria em vias de progresso, torna-se um bem comum de nações antes estranhas umas às outras, e que a unidade de uma comunidade científica e cultural atravessa de ponta a ponta a multiplicidade das nações” (1950, p. 243-4, apud PRADO JR., 1980, p26-27) [6].

Mas a teleologia aberta pelo advento da Filosofia “parece tender a inscrever-se” efetivamente na História: a Pedagogia parecendo dispor dos meios para vencer quaisquer obstáculos que possam surgir à Razão em seu movimento de expansão. 
            Sendo assim, o ideal da Razão instaura um telos da própria História. Então, “como explicar a crise contemporânea e o descarrilhamento da Aufklärung?”. Para Bento, Husserl seria um aufklärer de segundo grau, distanciando-se da Ilustração histórica e indo buscar a origem da crise numa alienação da Razão, cujo responsável seria o próprio racionalismo moderno. A crise seria esclarecida se nela “discerníssemos o malogro aparente do racionalismo. Se uma cultura nacional não vingou, a razão (…) não está na própria essência do racionalismo, mas apenas na sua alienação. No fato dele ter submergido no naturalismo e no objetivismo” (1950, p.258, apud PRADO JR., 1980, p. 27). Naturalismo e objetivismo, para Husserl, teriam esquecido a exigência lógica do fundamento absoluto e seriam cegos quanto à natureza ontológica do fundamento. Seria a cegueira diante da autarquia ontológica da consciência, ou do “ser-derivado do natural”, a origem da alienação da razão. Bento cita outra formulação breve da conferência de Husserl: “O espírito, e mesmo só o espírito, existe em si e para si; apenas ele repousa sobre si e pode, no quadro dessa autonomia e apenas nesse quadro, ser tratado de uma maneira verdadeiramente racional, verdadeira e radicalmente cientifica” (1950, p.255, apud PRADO JR., 1980, p. 27). Assim o filósofo somente pode ser guia da construção de uma cultura racional “porque ou se” a Filosofia se estabelece como Ilustração absoluta, como verdade científica do espírito fundamentando a verdade científica da natureza. Esta seria a “descoberta do verdadeiro elemento da liberdade do espírito”. Descoberta que faz o diagnóstico da crise na qual se perdeu a Razão moderna e ao mesmo tempo indica o caminho a superá-la. O Filósofo teria então a função de: “contra a barbárie ascendente”, fazer renascer uma nova interioridade e uma nova espiritualidade; “reconstituir a ciência, devolver os homens ao horizonte do universal; reativar enfim a missão humana do ocidente” (PRADO JR.,1980, p.28).
Bento então, num momento crucial do texto, aponta três questões em relação à proposta apresentada por Husserl.    
            Primeiro observa que essa missão elevada[7] do filósofo como guardião do verdadeiro destino da humanidade é dependente da exigente ideia da Filosofia como ciência rigorosa. Ora, assim sendo, bastaria um abalo na “evidência de um acesso às 'coisas mesmas'”, para que o filósofo perdesse a sua função “arcôntica”, tornando consequentemente problemáticos “o privilégio absoluto da Europa na História e da Humanidade no mundo da vida” (PRADO JR., 1980, p.28).
            Num segundo momento, a questão de Bento apresenta a seguinte formulação: se, para Husserl, o porquê do Filósofo está suspenso à possibilidade desse começo absoluto (função arcôntica), essa possibilidade de ruptura não estaria ligada à “neutralização da postura natural”, que justamente marca a diferença entre o filósofo e o homem? (PRADO JR., 1980, p.29). Entretanto, a postulação desse “terreno absolutamente neutro” que se desdobraria, ao termo da conversão filosófica, como campo de coisas puras de toda interpretação não nos sugeriria alguma coisa como o ressurgimento, sublimado, do senso-comum? (PRADO JR, 1980, p.29-30).
            Finalmente, o que deixa Bento intrigado e o “confunde”, é uma frase da conferência na qual Husserl afirma: “A Razão é um termo muito vasto”. Ele explica que fica confuso não pela tolerância implícita na generalidade do termo racionalidade, mas pelo rigor que aparece na sequência, quando Husserl estabelece os limites da Antropologia e afirma: “Segundo a antiga e excelente definição, o homem é o ser vivo dotado de razão; nesse sentido largo, o Papua é homem e não um bicho” (1950, p.247, apud PRADO JR., 1980, p.30). Bento observa que Husserl, num momento anterior, insistiu em afirmar que, por essência, não haveria uma “Zoologia dos povos” [8], mas acaba repetindo, entre formas diferentes de humanidade, “a fronteira afirmada entre os homens e os bichos” (PRADO JR., 1980, p.30). Husserl, nesse sentido, explicita seu etnocentrismo: a Europa como o único ocidente absoluto.
            Diante dessa postura de Husserl, Bento questiona se a ótica da aufklärung consegue dar conta da crise que se configura como o “ressurgimento da barbárie no interior da própria civilização”. Pois a aufklärung deixa necessariamente de perceber que, se existe a crise, esta é a prova da indefinição da fronteira que separa a barbárie da civilização. No caso de Husserl, a “dificuldade em reconhecer a plena humanidade das outras humanidades” não lhe permite a “distância necessária” para reconhecer a própria especificidade da crise (PRADO JR., 1980, p.31). Bento mais uma vez refere-se a Rousseau[9], agora como contraponto, pois este teria rompido com a filosofia justamente por ver nela, ou melhor, na cumplicidade entre o humanismo e o etnocentrismo, a raiz da crise da Europa. Mas Bento prefere não se alongar nos comentários sobre Rousseau e sua crítica à Civilização como Barbárie verdadeira. Apenas lembra que, para o genebrino, a genealogia do mal é instaurada com a “distância que torna possível ao homem um comportamento técnico em relação à natureza e ao Outro” (PRADO JR., 1980, p.31).
Bento deixa então Rousseau em seu século e cita Adorno e Horkheimer os quais, tendo ainda no horizonte a guerra e o nazismo, retomam o problema de Husserl. Em A dialética da razão o mesmo processo de aufklärung é reproduzido e é feito o mesmo diagnóstico da crise. Entretanto:
“Para eles também uma profunda cumplicidade une a luz da razão à treva do preconceito. Para Adorno e para Horkheimer também, o sistema de diferenças que torna possível, ao mesmo tempo, a Razão e a Barbárie, passa pelo destino do poder da modernidade. O essencial da alienação da Razão não se dá como descaminho teórico, erro, mas como efeito da inserção social do saber, de seu imbricamento no mecanismo da divisão do trabalho e no jogo do poder. O processo não começa com o saber ou com o não-saber, mas com a equação moderna: Saber é Poder. É porque a Razão tornou-se assim 'totalitária' (Adorno e Horkheimer), e não porque se afundou no pântano do naturalismo, que ela perdeu sua 'consciência de si', ou a simpatia do não-filósofo” (PRADO JR., 1980, p.31).   
           
Ora, esse diagnóstico, consequentemente, só faz crescer o mal-estar na filosofia: não possuindo a glória do saber rigoroso (apesar de se falar dele), não tendo nenhuma tarefa grandiosa a seu alcance, cai sobre o filósofo a suspeição de colaborar, sem o saber, com o curso da barbárie (PRADO JR., 1980, p.31). “Mas por que então, o filósofo?”, pergunta Bento já no final de seu texto. Sua resposta revela sua postura filosófica singular e original:

“Talvez ele se justifique transformando sua impossibilidade em sua própria razão. Atacar as certezas é um exercício vão? Não, na medida em que sustentam algo mais do que discurso. Professor universitário, enquanto é possível, depois de ter sido guia da Humanidade, e mesmo limitado ao que se chama História da filosofia, o filósofo pode, pelo menos, abrir um espaço de indeterminação no fluxo coletivo do discurso, ensaiar a possibilidade de uma contradicção. O paradoxo é transformar a impossibilidade em necessidade (...)” ( PRADO JR, 1980, p.31-2).

Porém, o paradoxo não pode dissolver-se em puro absurdo. De modo que o filósofo deve então despojar-se de sua função arcôntica (vide as consequências desta postulação em Husserl) e encontrar “alguma graça” engajando-se na função contrária, a anarcôntica. Ora, o que ele está sugerindo com essa proposta? No prefácio de Erro, ilusão, loucura (escrito em 2002 e publicado em 2004) nosso filósofo revela que acredita poder encontrar em Wittgenstein, Bergson e Deleuze justamente uma concepção “anarcôntica da filosofia”, que ao mesmo tempo não é “inimiga da análise conceitual”, e que se “exprime em obras diferentes ao longo da história da filosofia”: ele cita como exemplo, os nomes de Rousseau e Pascal. Mais precisamente, Bento se engaja no que ele afirma ser uma “guerra filosófica antiga contra toda forma de fundacionismo, que recusa a saída fácil do ceticismo e do relativismo” (PRADO JR., 2004, p.14). Para finalizar, dois pontos importantes a destacar. Primeiramente, a postura filosófica de Bento que, anos mais tarde, reafirma a possibilidade da indeterminação e da contradicção no discurso filosófico: mesmo destacando o “alvo longínquo” e impreciso de seu posicionamento filosófico, ele revela a “intenção de introduzir um mínimo de negatividade no debate acadêmico” e a necessidade de revelar “o que há de frágil na segurança moral-ideológica que está em sua base mais funda (PRADO JR., 2004, p.14). Isso é extremamente original para os padrões de nossa filosofia brasileira! Por fim, acreditamos que a frase que com mais propriedade ilustraria nosso artigo, e sobretudo a proposta bentiana de filosofia, é a frase de Pascal, contra o absolutismo, que Bento gostava de citar: “La vraie  philosophie se moque de la philosophie”.



Referência Bibliográfica

PRADO Jr, Bento. Profissão: Filósofo [1976], Cadernos PUC, n. 1 (1980), pp. 15-32 (PUC-SP), 1980.
 __________, Bento. Erro, ilusão, loucura. São Paulo: Editora 34, 2004.




[1]    Intitulada A filosofia e sua inscrição institucional.
[2] “A cultura livre é, de certo modo, apenas um jogo, enquanto a cultura escolar é um negócio sério” (KANT).
[3]    Grifo nosso
[4]    O que diria Bento, se fosse vivo, sobre sua própria filosofia? Vários de seus livros já foram traduzidos e são referências para especialistas, sobretudo franceses! 
[5]     Bento retoma aqui uma comunicação apresentada na reunião da S.B.P.C., em 1975, em Belo Horizonte, e publicada nos Estudos Cebrap, 15 (jan/fev/mar1976), pp.168-173.
[6]    E. Husserl, La crise de L'Humanité Européenne et la Philosophie, Revue de Métaphysique et de Morale, nº3, 1950, pp.243-4. 
[7]    Grifo nosso.
[8] (1950, p.236, apud PRADO JR., 1980, p.30).
[9] Em seu texto: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.

[1*]   Trata-se de uma conferência pronunciada por Bento Prado Júnior na Semana de Estudos filosóficos promovida pelo Departamento de Filosofia e pelo Diretório Acadêmico de Filosofia e Letras da Faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), de 08 a 12 de novembro de 1976.

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