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Bento Prado Jr e a intermitência de ser


*Luciano Donizetti da Silva

As novas que trago são novas de Rei...
Não digo mentiras, só digo o que sei...
Está tudo escrito
à guisa de lei,
no cerne, na carne,
no firme no vivo do meu coração...



Bento Prado Jr[1]





Para mim é uma honra falar de Bento Prado de Almeida Ferrás Júnior. Entendo que essa não seja uma prerrogativa minha, sobretudo considerando-se todos os pesquisadores sérios que o admiram, mas para mim além de honra é um desafio: nunca me ocorreu ter o pensamento do filósofo Bento como objeto. Ele sempre foi, para mim, orientador. Foi sob sua orientação que, em 2006 eu defendi meu doutorado em São Carlos; e ecos muito fortes desse período permanecem vivos ainda hoje em minha pesquisa sobre Sartre: o projeto de estágio pós-doutoral sobre a ética do porvir (Lyon, 2016), por exemplo, teve o início de sua gestação mais de dez anos atrás, em longas conversas com o professor, sábados à tarde, na sala de sua casa. Orientações sempre leais e respeitosas, mas raramente pacíficas. Bento era um leitor duro e um ‘adversário’ mordaz (dureza difícil de se ver, considerando-se toda sua perspicácia e educação). Não gostava de meias-palavras, e gastava palavras-e-meias para fazer ver seu ponto de vista; isso mesmo: fazer ver! Mesmo tendo o posto de orientador – e a admiração canina de seus orientandos – Bento jamais fez valer sua condição na defesa de suas ideias. Divertia-se no processo de fazer ver, ao mesmo tempo em que cegava seu orientando; suas perguntas desconcertantes tornavam evidente aquilo que, depois de argumentos e mais argumentos – prós e contras –, ele já havia anunciado no início do debate, em meio a um sorriso de canto de boca, em parte encoberto pelo bigode.

            Mas homenagear homem de tamanha grandeza exige bem mais do que boas lembranças da rua Dona Maria Jacinta, ou da UFSCar de 2003 a 2006: é preciso deixar a zona de conforto e, mesmo correndo o risco de ser engolido por um leão, colocar-se como inimigo do mestre.[1] Sim, pois Bento gostava de dizer que “em filosofia, o seu melhor amigo é o seu mais duro inimigo. Você precisa dialogar com aquele que está o mais distante possível da sua posição, ou corre o risco de a sua filosofia virar ideologia” (PRADO JR, 2005). Preferível a inimizade que a mera ideologia? Sim, desde que isso não esconda a profundidade das declarações do professor: aprende-se mais sobre Sartre lendo Lukács, Merleau-Ponty e Levi-Strauss – ele dizia – tanto quanto sabe mais de marxismo aquele que estudou o liberalismo a fundo. Bento faz ver que o motor que coloca em movimento a filosofia não são os acordos, menos ainda a partilha de ideologias (ou conjunto de crenças, ou fé, ou, seja o que for), mas o conflito: não raro, em discussões formais ou informais, ele colocava uma questão, alimentava-a e instigava os presentes – do amigo professor ao aluno recém-chegado – a livremente exporem suas razões. Talvez movido por uma concepção romântica da honradez dos inimigos – isso apenas a história pode julgar – Bento Prado admirava diferentes posturas, correntes e decisões filosóficas; no sentido mais voltairiano da expressão, ainda que Bento não concordasse com uma palavra do que se dizia, ele defenderia até a morte o direito daquele que estava a falar, seja seu amigo ou não. Para Bento o ser se revela a quem ele quer, donde filosofia não se faça colecionando títulos.
Assim, parece que o pensamento de Bento Prado Jr, visto agora por esse seu inimigo, o filia ao iluminismo – mais propriamente a Voltaire. Não seria tarefa dura mostrar o quanto o encaminhamento dado pelo professor Bento à filosofia é libertário; ademais, além de filósofo, Bento era ensaísta e escritor – poeta, mais especificamente.[2] E, se a postura anarquicamente combativa de Voltaire o fez refugiar-se na Inglaterra, Bento terá também seu tempo de exílio na França... e por razões similares. Mas isso são apenas conjecturas. Na mesma medida poder-se-ia – numa orientação bem diversa – filiá-lo à Pascal; afinal, numa saudosa lembrança, foi a ele que nosso mestre se dirigiu na estruturação de seu último curso de filosofia (2006). E, para mostrar que, não raro, filosofar é guiar outros homens sem ter a mínima ideia de qual é o caminho a seguir, Bento ilustra esse preceito com uma gravura de Goya.[3] As referências são diretas: eis Bento, o monge que reaparece das sombras, tal qual Pascal em 1654 (sua segunda conversão); o filósofo francês, encantado com a cura de sua sobrinha (milagre), terá na fé sua verdadeira filosofia que, no fim, vai zombar da filosofia dos homens. Bento, ao contrário, não exigiu milagre algum para tornar-se o monge perdido das praias sem fim; e será o absolutismo filosófico da contemporaneidade o fator de sua conversão. Assim, lembra ele, “Pascal dizia contra o ‘absolutismo’ da filosofia: ‘La vraie philosophie se moque de la philosophie’” (PRADO JR, 2004, p. 14). Mas qual seria a filosofia verdadeira? No caso da filosofia de Pascal (séc. XVII) trata-se de opor ciência e sentimento, ou seus radicais razão e fé.[4] Mas o que significa essa expressão de Pascal quando, no século XX, ela sai da boca de Bento? Claro que apenas um inimigo pode levantar alguma suspeita desse embaralhamento anacrônico das linhas da história da filosofia, como ele mesmo lembra, que nesse mesmo parágrafo refere-se ainda a Rousseau e Walter Benjamin; o amigo, na medida em que discípulo (orientando), jamais poderá ver nisso mais do que a eloquência de um professor que sabia muito da história da filosofia. O inimigo, aquele que será o maior amigo em filosofia, insiste na pergunta: qual é a verdadeira filosofia que, pelas mãos de Bento Prado, poderá gargalhar da filosofia?

***

Até mesmo para propor alguns indicativos de resposta para essa pergunta será preciso, antes, justificar nossa empreitada: além de não se impor (ou usar o definitivo argumento da autoridade), mas de esforçar-se por fazer ver seu ponto de vista, Bento Prado também era um libertário no tocante ao filosofar. Libertário, existencialista, anarquista e rebelde, Bento cuidava de não negar a ninguém a liberdade de pensamento que lhe rendeu o exílio; cabe dar novamente voz ao professor: “Ou a filosofia é entendida de maneira puramente escolar, técnica, e então ela cuida de assuntos técnicos e volta suas costas às transformações do mundo contemporâneo, ou a filosofia, por mais abstrata que seja o seu tema, está ligada ao destino contemporâneo da humanidade” (PRADO JR, 2005). De novo a ocasião de escolha: ou... ou; assim, não se trata de negar ou desqualificar a filosofia puramente escolar e técnica – ela cumpre seu papel. A fatura dessa empresa tecnicista, porém, já está fechada: virar as costas ao mundo contemporâneo; a alternativa à escolástica filosófica Bento mesmo anuncia: voltar-se para as transformações da atualidade. Uma filosofia da práxis, do mundo, situada, viva... a filosofia do cotidiano seria a alternativa à filosofia séria que, num horizonte pascaliano, é digna de piada? Ou a piada ficaria por conta dessa tentativa, absolutamente inócua, de filosofar a partir de um mundo que, apesar de contemporâneo – presente – escapa a toda síntese? Bento Prado não responde. Cabe a seu leitor decidir, seja ele seu inimigo ou o discípulo mais fervoroso. Para quem admira o professor, tudo se esclarece facilmente: a trajetória da existência de Bento, sua estreita ligação com fatos históricos, tanto no Brasil de antes e depois do exílio, quanto na França que o acolheu, já são suficientes para mostrar que a verdadeira filosofia – aquela ligada ao destino contemporâneo da humanidade – ri da filosofia séria, escolar e técnica.
Assim, se a postura dos amigos se define em grande medida pela vida de trabalho partilhada com Bento Prado, o que diria seu inimigo? Levada a esse ambiente, a  verdadeira filosofia, que ri da filosofia, não repete de modo algum a dicotomia contemporânea (e amplamente debatida por Bento) entre uma filosofia continental e filosofia insular.[5] Ao contrário, o interesse filosófico de Bento, que sabidamente começou por Bergson e passou por Rousseau, desembarca em Wittgenstein;[6] e se Bento Prado Neto faz ver os pontos cegos alvejados por seu pai nessa trajetória, sobretudo a mudança de postura na abordagem de Wittgenstein quando comparada àquela dispensada a Bergson, cabe agora ao leitor inimigo refazer a pergunta inicial: não se trata mais de, somente, tentar entender qual seria a verdadeira filosofia. É preciso, também, averiguar a partir de onde o mestre Bento se instala para propor aos demais homens a revisão de seu filosofar; ou, noutras palavras, se cabe à verdadeira filosofia rir da filosofia, trata-se agora de saber o que é engraçado. Longe da preocupação técnico-escolástica, a obra inaugural do pensamento de Bento Prado Jr revisita Bergson para, ali, encontrar “um ponto de vista privilegiado para refletir sobre a filosofia contemporânea (isto é, na época, Sartre e Merleau-Ponty): uma espécie de ‘ponto cego’ (...) dessa tradição, o recalque de uma dívida que não era sem consequências para o seu trajeto” (PRADO NETO, 2007, p. 50). Sem aventurar-se nessas consequências, o inimigo se satisfaz em provocar: que seja, mas também não seria cego o ponto de vista contemporâneo sobre a contemporaneidade, sobretudo se ele se volta ao passado da França (Bergson) para refletir sobre o então presente filosófico francês (Merleau-Ponty e Sartre)? Ou, dito de outro modo, Bento não teria colocado a filosofia francesa contra ela própria, fazendo-a rir de si mesma? A obra inaugural dessa intermitência de ser, revelada pelo agora filósofo Bento Prado Jr, anuncia-se sorrateira nas páginas de Presença e campo transcendental.[7]
Por exemplo, a filosofia de Sartre é filosofia da liberdade, absoluta e situada, individual e coletiva, que ele teria desenvolvido desde seus estudos de fenomenologia a partir de 1932, quando viaja a Berlin, ensina a história da filosofia. A filiação de Sartre a Husserl e Heidegger é, desse ponto de vista, evidente: ele se debate até 1940, aplicando a intencionalidade da consciência em suas pesquisas, mas recusando-se a admitir a epoché; a partir de então (O Imaginário) Sartre substitui a redução pela noção heideggeriana da situação do Dasein mundano-concreto... que seja, e Bento Prado não nega isso. Todavia,
É através do nascimento da práxis derivada do desejo que o real aparece como atravessado pelo negativo, como ‘povoado’ de ausência; é o próprio sujeito da práxis, o organismo, que se passa a experimentar, também, como carência. E já então relacionávamos essa genealogia da negação com a realizada por Sartre em L’être et le néant e na Critique de la raison dialectique. (...). A despeito do paralelismo entre a Fenomenologia do Espírito e a Crítica da Razão Dialética, a descrição sartriana opõe-se à hegeliana e se aproxima da bergsoniana, já que a práxis não explicita uma negatividade já inscrita no Ser, e a negação não ultrapassa os limites da subjetividade humana (PRADO JR, 1989, pp. 187-8).

A verdadeira filosofia, essa intermitência de ser que não justifica criar uma ordem religiosa (seu monge está perdido), revela o que é engraçado: apesar da intenção husserliana de Sartre, ele é tributário de Bergson. Mas a vraie philosophie não vai poupar Merleau-Ponty, nem Rousseau, nem mesmo Wittgenstein e todo seu palavrório analítico, ou ainda Heidegger, e suas proposições sem sentido (ou falsos problemas). Mas, afinal, de que lado está Bento Prado? Seu amigo diria que essa obstinação filosófica revela a procura monacal pela verdade; mas, e o inimigo já percebeu há bastante tempo, Bento desconfia dela, ele transvalora valores. Em filosofia o inimigo é o melhor amigo, não se pode esquecer; o ato de amizade de Bento por Sartre foi revelar que, para além da psicanálise existencial (e de toda a vontade de novidade que o levou à Alemanha), há relações íntimas (condenáveis ou não) entre a filosofia sartriana e Bergson. De novo o inimigo: Bento é amigo de Sartre? Ou seria bergsoniano? Ou, quem sabe, admirador do iluminismo? Ou, ainda, um teólogo faltado (Pascal)?

***

O pensamento de Bento Prado Jr carrega sim ecos da filosofia da liberdade de Sartre, mas isso não faz dele um sartriano;[8] todavia, se o adversário mais mordaz é, a toda prova, o melhor amigo Bento, além de contemporâneo de Sartre é também seu camarada: ele faz ver, antes de todos, um ponto cego no qual a negatividade de Sartre, por vezes buscada em Hegel, noutras em Kojev, enraíza-se na verdade em Bergson; e, sobre a temporalidade de Sartre, melhor nada dizer. Entretanto, pode-se considerar a revelação de uma traição um ato de amizade? Sobretudo se, como no caso em voga, traidor e traído são o mesmo homem? De início, Sartre dedica-se a cantar salvas à fenomenologia mas, por esse tempo, filosofa em bom francês (com sotaque bergsoniano); claro que não se trata de insinuar falta de inventividade de Sartre, afinal Bento também revela em seu livro uma diferença irreconciliável entre Bergson e Sartre no tocante às noções e limites da ontologia e da metafísica (o que atenua bastante a traição de si mesmo, da qual Sartre fora vítima); e pelas voltas que o mundo dá, a França encontra em casa aquilo que fora buscar distante. A verdadeira filosofia prega mais uma peça na linearidade e causalidade, claras e distintas, de todo parentesco e filiação filosóficas, mostra Bento; a razão perde mais uma batalha, revela o monge, e a história da filosofia se faz piada. Riem os amigos, enquanto o inimigo redargua: se a fenomenologia de Sartre tem suas origens mais remotas em Bergson, onde estariam enterradas as raízes dessas suspeitas de Bento Prado? Ou, dito de outro modo, quais seriam as origens daquilo que, até agora, revelou-se como filosofia bentoniana?
            A linearidade e causalidade filosóficas insistem; mas não se trata de, agora, desviar o tema para o âmbito genealógico da constituição de uma árvore familiar da filosofia de Bento Prado. Isso é inútil, revela o monge, pois essa indagação levará invariavelmente a Tales de Mileto e sua insatisfação muito pessoal com as respostas míticas às grandes questões da vida humana; e desnecessário, mostra Bento, pois até mesmo Tales, se olhado por olhos contemporâneos, não revelará mais do que uma perspectiva de nosso mundo contemporâneo. A verdadeira filosofia é atual. O inimigo se refestela: Bento Prado Jr, tal qual Zaratustra, seria um niilista que, monge perdido, não se lança ao mar nem se arrisca continente adentro. Seria Nietzsche o guia de Bento Prado pelas praias sem fim? Ideia tentadora, mas não é o filósofo alemão quem se esconde no sopé das suspeitas bentonianas (ainda que esteja ali presente, pois não há como negar ecos do perspectivismo e muita suspeita na filosofia de Bento); o mesmo pode ser dito de Pascal ou Voltaire, como acima anunciado; e Sartre. Assim, seguindo um bom conselho – quem fala demais dá bom dia ao cavalo –, parece mais apropriado deixar Nietzsche e Tales em seu tempo, e indagar sobre o tempo de Bento Prado. Antes do exílio, e dos trabalhos sobre Rousseau, seus alvos eram apenas Sartre e Merleau-Ponty, como, depois, serão Derrida e Althusser? Ou, conforme afirma Débora Morato, “Bento parece ter procurado em Bergson, para pensar contra si mesmo e contra Sartre, uma filosofia calcada na apreensão intuitiva do real, tomando esse real como ‘algo’ a ser intuído pelas potências cognitivas do sujeito, numa perspectiva realista que se irmanava com a ciência” (PINTO, 2007, p. 24). Escrever contra filósofos franceses, que seja; mas isso é novidade: Bento também usa Bergson para pensar contra si mesmo. É assim que o convite do filósofo, perguntar sobre a verdadeira filosofia, perde toda sua graça: Bento revela que o risco de trair a si mesmo, tal qual se passou com Sartre, é a condição de todo filósofo, ou de todo homem que se arrisque a indicar um caminho. Ri o inimigo que, enfim, parece aproximar-se de algo importante dessa filosofia que poderá rir das demais; teme o homem sério, carcomido por certezas que nunca se confirmaram, mas que obrigatoriamente serão assim (marxista); assusta-se o filósofo inovador (analítico), já desconfiado de suas certezas.
            Bento Prado Jr, como o leão que se diverte com coelhos e animais curiosos, não se decifra tão facilmente. É sim engraçado revela-lo como um leitor de Bergson que desafia Sartre e Merleau-Ponty, ou leitor de Rousseau que encara Althusser e Derrida; mas como colocar Wittgenstein nesse imbróglio todo? Bento Prado revela em Sartre o Bergson que Sartre mesmo não conhecia; na contrapartida como, senão divertindo-se com isso, ele poderia combater o Sartre que ele encontra em si mesmo? A verdadeira filosofia pelas mãos de Bento começa a se revelar: ele mira Sartre, acerta Bergson e, no fim, reconhece-se como o sartriano a ser questionado. E será em meio a um sorriso, talvez confrangido, pensa o inimigo, que Bento parte para seu exílio (1969-74); Merleau-Ponty já tinha morrido, é verdade, mas Sartre ainda caminhava pela França. E, de novo, a filosofia brinca: por essa época, e apesar de todos os esforços de Sartre, da causa do povo e do interminável Flaubert, ele já não é mais o homem-filósofo contemporâneo francês; seu tempo de universal singular tinha se acabado, e serão de Derrida a Foucault os contemporâneos do exílio. A verdadeira filosofia reinicia a discórdia com a filosofia, a França mais uma vez redobra-se sobre si mesma, revela Bento: o desconstrucionismo de Derrida e o estruturalismo marxista de Althusser terão, agora, que se haver com Rousseau. A essa altura perguntam juntos, inimigo e discípulo, mas por que Rousseau? Bento Prado Neto, num testemunho confiável, responde: porque “Bento Prado Jr acreditava encontrar nessa crítica (...) sua atualidade, ou melhor, um pensamento ‘vivo’” (PRADO NETO, 2007, p. 51). Contemporâneo, pode-se concluir; o tempo do exílio exige, agora, criticar a cultura atual.
            Dessa feita, prevenido pela peça que lhe fora pregada pela filosofia verdadeira, Bento trata logo de eleger o filósofo a partir do qual sua crítica da cultura se fará ouvir no início da década de 1970: Rousseau, e isso não é um detalhe, afinal dentre os franceses ditos libertários Sartre é legítimo herdeiro de Rousseau. Ainda assim, o que está efetivamente em jogo nesse momento é certa concepção retrospectiva da cultura: a verdadeira filosofia exige repactuar as relações entre teoria e prática culturais, locando-as no presente. Rousseau é, nesse sentido, portador de uma filosofia viva que incomoda o túmulo no qual tanto marxismo quanto estruturalismo acreditaram ter enterrado o cadáver da filosofia verdadeira: ela, que riu de sua incursão pelo passado (não da filosofia em geral, mas daquela mais ligada a Sartre e Merleau-Ponty), diverte-se agora com a pretensão – ligada ao futuro – de controlar, conhecer ou antever o fim da história (estruturalismo, marxismo). A filosofia é atual e, assim, nela nada pode haver de certo; e até mesmo as certezas atuais cabe colocar em xeque: é Rousseau, um filósofo do século XVIII, o antídoto receitado por Bento Prado para filosofia francesa da segunda metade do século XX. Ou melhor, receitar já é muito; ainda que a filosofia, essa arte do universal, tenha sido reduzida à mera disciplina universitária, Bento insiste que o Ser é, desde Kant, intermitente; mas, mesmo assim, ele se revela. Nas palavras do mestre “Hoje uma disciplina apenas universitária, de duvidosa cientificidade (...), a Filosofia foi a técnica ou a arte do universal ou da universalização possível da vida humana, ao mesmo tempo necessária e impossível, já que irremediavelmente vinculada ao singular ou à idiotia” (PRADO JR, 1999); a filosofia meramente técnica é, desde sempre, uma piada para Bento Prado. Talvez, piada de mau gosto.
            A filosofia foi universalização, e hoje é mera tarefa universitária; o monge perdido, desde as praias sem fim, lembra: foi e pode voltar a ser. Ela é desconstrução, Bento volta-se contra seu sartrianismo pela via bergsoniana, mostra Débora Morato;[9] depois, quando de seu exílio, ele desenvolve certa crítica da cultura, revela Bento Prado Neto.[10] Assim, comemora o inimigo, estaria nosso filósofo lutando contra alguma concepção de cultura que, além de presente na França, ele teria detectado em si mesmo? Pois, além de atual, a filosofia verdadeira revelada pelo monge mira sempre o avesso, o não visto, os pontos cegos e ligações subterrâneas: Bento nunca se iludiu em se achar, é monge perdido! Mas estar perdido cumpre uma função metodológica: quem nada sabe não formula perguntas nem encontra o que busca, Mênon tem razão; mas, revela Bento, quem está perdido pode parar ou continuar caminhando. A metáfora do cego que guia cegos toma pelas mãos do filósofo, um novo sentido (BÍBLIA, 1993, Lc 6:39): ainda que a sina do cicerone seja igual àquela do guia que não sabe o caminho, sua obrigação é seguir adiante; e Bento segue. [11] Não se trata somente de fazer ver a cegueira de Rousseau, pois se a ele coube questionar a liberdade do teatro de concorrer com as festas cívicas suíças – postura efetivamente risível para a verdadeira filosofia (Carta a D’Alembert) –, será ele um dos mais contundentes defensores da liberdade (além de criador do iluminismo) e crítico da propriedade privada. A postura conservadora de Rousseau, também presente em suas obras educacionais (Emílio), não desqualifica em nada sua afirmação da natureza humana quando contraposta às decisões da razão. A filosofia verdadeira, revelada por Bento Prado, faz ver o filósofo como homem de seu tempo; e a ele, mesmo perdido, cabe indicar o caminho. O filósofo pode não estar certo de para onde deve ir, mas ele pode sempre seguir adiante, ele não é cego.

***

A cegueira de Rousseau é a mesma de todo filósofo: sair da caverna é tão cegante quanto voltar a ela; mas entre duas cegueiras há sempre algo que foi visto. O ser se mostra como quer: Bento Prado, após reprimir Sartre em si mesmo e tornar-se referência mundial em Bergson (comparável a Deleuze, conforme lembra Débora Morato), faz-se crítico da cultura a partir do trabalho com Rousseau. Em seguida será a vez de voltar-se para Wittgenstein, ou, como não se cansava de lembrar, “um dos alvos, talvez o alvo de Wittgenstein era justamente essa civilização tecno-científica que Heidegger vê como subsolo da concepção objetivante da linguagem e do pensamento, concepção da qual Wittgenstein, por outro lado, nunca abriu mão. Não é preciso indicar para que lado se inclinavam as simpatias de Bento Prado Jr.” (PRADO NETO, 2007, p. 63). Partindo de Bergson, passando por Rousseau e chegando a Wittgenstein, a verdadeira filosofia pode até mesmo fazer rir, mas para isso exige uma graciosidade enorme daquele que indica o caminho. O prejuízo na cartografia filosófica se justifica:
Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte é bem pouco refletida no presente. Toda minha simpatia ainda vai para gente como Nietzsche e Wittgenstein, que consideravam nossa profissão um terrível perigo e nossa situação institucional, um convite à falsificação. O que tem o ensino da filosofia, hoje, com o esforço de tornar-se digno de viver? (...) Como o leitor, continuo desconfiando do ‘pathos’ que anima essa retórica que acabo de exibir, especialmente no jargão da autenticidade. Mas não posso dormir sem desconfiar que vai aí algo de Verdade (PRADO JR, 1999).

Imagino o quanto essa palavra final, verdade, possa causar estranhamento ao leitor que conheça algo da tradição filosófica; mas antes, cumpre ao inimigo notar que o veículo utilizado por Bento Prado já revela bastante dele mesmo: um jornal de grande circulação (e não uma tiragem de 300 livros, como é comum). A verdade filosófica, digna de fazer rir, é o objeto do filósofo; a filosofia verdadeira, por sua vez, é aberta a todos os homens e mulheres (no caso em pauta o público é o homem em sua lida que, ao menos uma vez por semana, folheia seu jornal). É ele, o homem de ação (não filósofo) a medida possível da abrangência e eficácia de um pensamento filosófico, revela Bento Prado; o lugar da filosofia, a verdadeira, deixa de ser monopólio da Universidade. Nem Rousseau nem Sartre foram professores universitários, não custa lembrar.
            O percurso de Bento, que teve seu começo numa genial desconstrução da cidadania alemã das ontologias francesas, acaba numa insólita aproximação entre as filosofias de Husserl e Wittgenstein. No desenrolar da trajetória dessa filosofia, que ri da filosofia técnica, esse momento (que coincide em parte com o período que tive o prazer de conviver de perto com o professor) cumpre o papel de epifania daquilo que para Bento Prado realmente interessa em filosofia: sua vivacidade, sua capacidade de promover o debate, seu poder de questionar o presente; ou, “Não é (...) revolucionário tratar os textos antigos com os cuidados da filologia, fazendo com que a interpretação filosófica venha depois da identificação dos códigos estritos que presidiram a sua produção” (PRADO JR, 1999). Não se trata de anarquizar o trabalho filosófico, ainda que no tocante às convenções sociais Bento tenha se revelado um completo anarquista;[12] trata-se somente de fazer ver que a filologia, a exegese, análise lógica da linguagem ou, mesmo, uma inocente leitura estrutural de um texto filosófico, caso desligada da situação, é o mesmo que a morte da filosofia. Assim, ainda que pareça engraçada a insuspeita familiaridade entre Husserl e Wittgenstein, tanto quanto a sempre incomoda quase fraternidade ignorada entre Frege e Husserl, o fato é que a guerra artificial que foi aí introduzida não tem graça nenhuma;[13] pode parecer estranho servir-se de Wittgenstein para criticar Heidegger tanto quanto parece extemporâneo um Wittgenstein que jamais superou seu debate com o cartesianismo; é difícil aceitar, na primeira olhada, que Rousseau possa contrapor-se a Althusser, por exemplo. Por fim, parece cômico lembrar que a origem desse percurso é Bergson que, ao pensar a representação à luz da presença, teria antecipado avanços da fenomenologia francesa. Mais ainda, no fundo dessa iniciativa estaria a admiração que Bento Prado nutriu pelo existencialismo (e filosofia) de Sartre.[14]
O caráter cômico do embate entre as filosofias continental e insular se perde ante o trágico dessa separação fictícia entre a temática histórico-crítica e a acepção lógico-linguística; todavia, será exatamente aí que a verdadeira filosofia vai revelar toda a graça da pantomima que, de um lado recusa a lógica (crença na gramática) enquanto, de outro, mantém todo o rigor para ocupar-se de questões vazias. Melhor dito,
O tecnicismo é mortal para a filosofia. O coeficiente de tecnicidade da filosofia é inversamente proporcional ao coeficiente de significação e de interesse. Com certeza, a filosofia implica certa dose de tecnicidade. Mas aquilo que configura hoje o seu ‘mainstream’, que é de inspiração analítica, corresponde a um esvaziamento total da filosofia (PRADO JR, 2000).

Bento Prado faz rir da titanomaquia que tomou conta do cenário filosófico ao longo do século XX (sobretudo em sua segunda metade); o atual cisma filosófico, por certo não o primeiro nos vinte e seis séculos de história da filosofia, faz com que herdeiros de Husserl, de um lado, e aqueles de Frege, de outro, percam-se em guerras por questões territoriais. Ele, monge perdido, tem a impressão “de que tanto Edmund Husserl quanto Ludwig Wittgenstein dizem que a filosofia é uma enorme ginástica intelectual que tem por único objetivo tornar visível aquilo que está na cara” (PRADO JR, 2000). Eis a piada! E isso sem a menor pretensão de que a filosofia atual seja, nalguma medida, mais clara ou palatável que qualquer outra; não.[15] A filosofia, se verdadeira, serve somente para tornar nossa experiência do mundo um pouco mais transparente; e isso independe, se o mundo é cartesiano ou o nosso, afinal, o ser se desvela em seu velamento. Ele, o mundo, ainda que seja a fonte de toda perenização, não é perene.
            O mundo da vida, único a demandar filosofia, e filosofia verdadeira, impõe-se. Mas o que concluir, se nada há de mais antipático nesse mundo do que o ponto final, o fim, a morte?! Os tempos mudam, a vida acaba, mas a filosofia fica. Qual filosofia? O filósofo Bento Prado ensina aos inimigos e amigos que, de fato, a verdadeira filosofia debocha da filosofia; sua verdade, todavia, somente pode ser mensurável em seu tempo. Difícil dizer, hoje, o que significaram essas declarações do Bento Prado, cada uma delas a seu tempo; mas isso, na verdade, não parece ter importância alguma no contexto de sua indagação filosófica, que se move levada pelo infinito, ininterrupto e absolutamente irresistível fluxo de ser. Afinal, pergunta o filósofo, “onde, na verdade, se opõem a descrição do Lebenswelt e a gramática da linguagem quotidiana, a análise do mundo comum e a da linguagem comum?” (PRADO JR, 1999a). Risível é, assim, a filosofia, contemporânea ou não – independendo de sua matriz (insular ou continental) – que vira as costas para seu mundo. Revela-se o enigma: a filosofia (toda filosofia) leva em si mesma o antídoto para o maior mal filosófico – o absolutismo da verdade –, afinal, ela pode rir de si mesma. A vida de Bento Prado se faz filosofia, tanto na seriedade exigida pelo inimigo que é, pelas mãos do filósofo, transvalorada em admiração e respeito, quanto na graciosidade esperada do discípulo, que realiza de modo circunspecto e sério sua devoção. A filosofia de Bento Prado é sim conflito, mas não admite violência; trata-se de filosofia como duelo, no melhor estilo daquelas hilariantes lutas de caratê com outro saudoso professor desse Departamento – Mark Julian Richter Cass (São Carlos, 19-01-2013). Concluo com essa lembrança: Bento, de terno, gravata borboleta e bengala, desafiava o gigante nórdico da lógica para um combate até a morte; tudo terminava em gargalhadas. A verdadeira filosofia, que ri da filosofia, é verbo, ensina Bento, não substantivo.

AUTOR
*Luciano Donizetti da Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (1999), mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (2002) e doutorado em História da Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor de Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, no Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Filosofia. Bolsista CAPES, Estágio Sênior (Université Jean Moulin, Lyon), processo n° 2631/15-6.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
BÍBLIA SAGRADA. (1993).  Edição Pastoral. 6ª reimpressão. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulinas.
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PINTO, D. M. (2007a). Bento Prado Junior e a filosofia vivida. Kriterion. Disp. http://w ww.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2007000100018, consulta 29-05-17, 11h38.
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PRADO JR, B. (2000). Regras de um método filosófico. Entrevista a Ricardo Musse. Uol. Disp. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2506200003.htm, consulta 29-05-2017, 16h37).
PRADO JR, B. (1999). Um convite à falsificação. Uol. Disp. http://www1.folha. uol.com.br/fsp/mais/fs1912199905.htm, consuta 26-04-17, 13h43.
ROUSSEAU, J. J. (1758). Lettre a M. D’Alembert. Disp. http://www.espace-rousseau.ch/f/textes/lettre%20%C3%A0%20d'alembert%20utrecht%20corrig%C3%A9e.pdf, consulta 27-05-17, 1h12.



[1] Primeira lembrança, digna de nota, o professor Bento nunca chegou a morder seus oponentes, mas gostava de contar uma história: havia um coelho que era o animal mais temido de determinada floresta; dizia-se dele que ‘devorava todos os bichos que se arriscavam a desafiá-lo’ e entravam em sua morada. Pudera: à mesa de jantar, na toca do coelho, havia um leão. O papel de coelho cabe aos orientandos, e claro, de leão escondido ao orientador.
[2] “Sempre escrevi poemas, mas de forma bissexta, um a cada dois anos. Sei que sou amador. Mas mesmo assim os publico com a maior tranquilidade. Crítica de poesia faço muito casualmente. O professor universitário é solicitado institucionalmente a produzir dentro de sua área. A atividade de escrever sobre outros assuntos exige um estímulo externo” (PRADO JR, 2000).
[3] Referência às análises tecidas em aulas na UFSCar (pelo então ‘professor Bentão’) de uma gravura de Goya (No saben el caminho, n. 70 de Desastres de la Guerra); ideia retomada no prefácio de PRADO JR, B. (2004). Erro, ilusão, loucura. São Paulo: 34, p. 15.
[4] Pascal, num momento de dedicação à verdade científico-racional, afirma que “A verdadeira eloquência zomba da eloquência. A verdadeira moral zomba da moral, isto é, que a moral do julgamento zomba da moral do espírito, que não tem regras. Pois o julgamento é aquele ao qual pertence o sentimento, como as ciências pertencem ao espírito. Zombar da filosofia é realmente filosofar” (PASCAL, B. 2017. Manuscrites RO 169-2. Disp. http://www.penseesdepascal.fr/ XXII/XXII2-moderne.php, consulta 17-05, 8h41).
[5] É estranho, mas atualmente a filosofia pode ser continental ou insular, cabendo à primeira um vínculo histórico-linear com a história da filosofia, e à segunda, sua filiação à tradição filosófica inglesa; nesse sentido, a fenomenologia nasce do debate de Husserl com Kant que, por sua vez, critica Descartes e Hume sendo esses – cada um a seu modo – críticos da filosofia medieval que, no princípio da era cristã, teria suas raízes no arcabouço filosófico grego (ainda que com outra intenção e a partir de outros instrumentos). Pode parecer que as ontologias contemporâneas (Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty) – por que ontologias – teriam ignorado Kant; de modo algum. Heidegger, em Meu caminho para a fenomenologia é categórico: Husserl, com a noção de intuição categorial, liberta o ser do juízo, donde a ontologia somente é possível como fenomenologia (DA SILVA, L. D. 2012 Conhecer e ser no mundo, disp. https://periodicos. ufrn.br/principios/article/view/7579/5642). Ainda, não se pode esquecer, o adversário primeiro e imediato da filosofia analítica (dita insular porque nascida na Inglaterra e radicada nos Estados Unidos da América) é a fenomenologia: seja por uma questão de proximidade temporal, o fato é que “Frege foi o avô da filosofia analítica, Husserl o fundador da escola fenomenológica, dois movimentos filosóficos radicalmente diferentes. Em 1903, como eles teriam aparecido a qualquer estudante alemão de filosofia que conhecesse o trabalho de ambos? Certamente, não como dois pensadores profundamente opostos: ao menos como, notadamente, próximos em sua orientação, apesar de algumas difergências de interesses” (Michael Dummett, citado por CRITCHLEY, S. Continental Philosophy. New York, Oxford Press, 2001, p. 15, trad. nossa); o que o estudante alemão diria hoje, passado pouco mais de um século?
[6] “Mas antes, talvez valha a pena começar por situar o interesse que Bento Prado Jr. atribuía a Wittgenstein na última quadra de um percurso que começou em Bergson e passou por Rousseau” (PRADO NETO, 2007, p. 49).
[7] Livro publicado no Brasil em 1989, e na França em 2002, que expressa toda a força de um trabalho filosófico que – a toda prova – torna cômica a então iniciativa atual da filosofia francesa de fazer-se fenomenológica. Ainda que isso não seja muito engraçado para admiradores de Sartre ou Merleau-Ponty, o fato é que Bento mostra que o general das fileiras da fenomenologia francesa não foi Husserl, mas Bergson; aquele ar de novidade da fenomenologia quando de sua recepção na França – e essa seria a piada – faz-se a partir da sombra bergsoniana, que em Sartre rejeita a epoché e em Merleau-Ponty parte do corpo (BENTO PRADO JR, 1989). Ora, isso cumpre a obrigação de uma filosofia ligada a seu tempo (contemporânea) e, ao mesmo tempo, revela o risco sempre presente de tornar doutrinação o métier filosófico.
[8] Lembrança digna de nota: certa vez, numa orientação, perguntei ao prof. Bento sua filiação filosófica – falávamos sobre Lukács e, diretamente, perguntei se ele ‘acreditava em Sartre’. Ele disse que caberia a mim mesmo decidir por ele, pois preocupar-se com a própria aparência é o auge da alienação; e, vendo meu desapontamento, acrescentou: _ O existencialismo é filosofia perene. Desarmado pelo enigmático de sua resposta tentei acrescentar algo inteligente: então o Reino da liberdade sartriano é possível? Ele me olhou, não se conteve e começou a rir. Acrescentou, ainda rindo ante meu espanto, que dali algum tempo eu mesmo poderia verificar isso... e concluiu, em meio a uma gargalhada: _ Da janelinha do céu!
[9] “Aliando uma invejável capacidade de trabalho ao amor pela boemia, o professor propiciava aos colegas, funcionários e alunos uma convivência alegre e um aprendizado constante. A defesa da fidelidade a si e da liberdade era praticada nas orientações de teses e nas deliberações dos procedimentos e regras institucionais; a profundidade de sua reflexão era compartilhada através da docência que fascinava os alunos e atraía ouvintes de todos os tipos; o convívio social e afetivo sempre em torno da filosofia funcionava como tempero e alento em meio às dificuldades da pesquisa e do exercício da reflexão no contexto da universidade brasileira. Poder trabalhar com filosofia e ouvir Bento cantando ópera, imitando artistas de cinema, recitando a Divina Comédia de cor em italiano, emocionando-se com as canções de Chico Buarque, contando histórias deliciosas do passado e do presente, enfim, celebrando a vida e a arte, a poesia e a filosofia, foi um enorme privilégio. Por isso mesmo, sua morte ensina o que pode ser o peso de uma ausência e nos deixa a imensa responsabilidade de zelar por seu legado (PINTO, 2007a).
[10] “Se isso não se expressa literalmente nas páginas do livro, basta que o leitor compare essas páginas dedicadas à exegese da crítica rousseauniana com alguns textos de Bento Prado Jr. sobre Wittgenstein, nos quais é a crítica da cultura atual é que está em jogo” (PRADO NETO, 2007, p. 51).
[11] Mais uma lembrança digna de nota: depois de uma de suas aulas, no momento em que saíamos, questionei o professor sobre algo que ele havia dito, sobre o risco de aquela caminhada, da gravura de Goya, dar no abismo. Ele ficou sério e pensativo por alguns instantes; riu, e compartilhou sua lembrança de Tales, no episódio em que o primeiro filósofo, de tanto observar o céu, caiu em um buraco. E, ao perceber que nem eu nem os demais que estavam no carro tínhamos entendido, não riu mais. Disse que buracos e abismos são mesmo para cair; e acrescentou: Por isso os caminhantes não deveriam estar atados uns aos outros por cordas! Acendeu um cigarro. Sem dizer Bento disse que cabe ao coelho aprender com o leão a matar, por si mesmo, suas presas.
[12] “Havia muito diletantismo, mas também um pouco da atmosfera do anarquismo. Estávamos todos no início da profissionalização e éramos razoavelmente rebeldes. Eu ia até a Biblioteca Municipal em busca da filosofia. (...). Na biblioteca encontrei gente muito parecida comigo. O caldo cultural de então combinava modernismo literário e esquerdismo com certa irresponsabilidade, mas com muita vitalidade. Num artigo que escrevi sobre isso, disse que éramos socialistas, sim, mas com Proust e Kafka. O existencialismo tornou-se o melhor instrumento para substituir o marxismo doutrinário. Fornecia um esquerdismo ideológico mais livre, mais próximo da realidade” (PRADO JR, 2000). 
[13] “Basta lembrar as conversas com o círculo de Viena. Instado a dizer o que se deveria responder a alguém que fala em juízos sintéticos a priori (i.e, a Husserl), Wittgenstein responde que não pode haver proposições necessariamente verdadeiras: se tal houvesse, deixaria imediatamente de ser uma proposição, pois uma proposição só pode enunciar o contingente. Mas, umas páginas antes (ou melhor, alguns minutos antes), é o mesmo Wittgenstein que havia dito que há incompatibilidade a priori” (PRADO NETO, 2007, p. 61).
[14] “Podemos então sintetizar o núcleo da interpretação de Bento na capacidade que ele teve de compreender a importância da démarche em termos de imagens: é através das imagens e suas relações que se reúnem necessariamente as condições para que um sujeito perceba objetos, para que uma imagem em particular estabeleça com as outras uma relação que dará lugar à percepção” (PINTO, 2007, p. 45).
[15] A respeito, o filósofo pergunta se “Seria a filosofia do século 20 melhor que a do 17?” (PRADO JR, 1999a).


[1] PRADO JR, B. (2017). Sou monge perdido. Disp. http://www.escritas.org/pt/l/bento-prado-junior, consulta 22-05, 17h58.

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