Nilo Henrique Neves dos Reis*
Diante de um grande mistério, durma. Assim o mistério ganha com o
silêncio de suas futuras asneiras (Olin Sier).
Emiliano Van Conc’elos era um ser humano
policrônico, mas não tinha conhecimento desta sua qualidade ou defeito, embora,
às vezes, tivesse realizado tarefas de maneira monocrônica. Repartido em sua
própria personalidade, Emiliano procurava aprender sempre alguma coisa no seu
dia a dia mais comum. Por outro lado, começava a perceber que todos os dias são
triviais e, essencialmente, comuns. Evidentemente que fora do seu mundo
aconteciam revoluções, fome, intrigas, perfídias e amor. Entendia que tais
coisas estão expostas para todos que as desejam, no entanto, deu-se conta de que
os eventos são indiferentes às pessoas e que estas são as mais tolas possíveis
por não olharem o mundo circunvizinho, pois alhures existem coisas maiores
ainda.
Um conflito prolongado encontrava-se em sua alma: viver o mundo ou o
mundo viver? Encurralado nesse jogo linguístico, não dava importância que a
escolha envolvia uma conquista, uma tomada de facção diante de sua existência.
Contudo, assiste ao espetáculo e aplaude a falta de desenlace. A peste de sua parcimônia
o tragava lentamente enquanto não se decidia. Os dias saqueavam a vida de suas
células cautelosamente, porquanto as partículas microscópicas do seu organismo
estavam sendo ceifadas. Abrindo o jornal ficou escandalizado com a notícia:
homens se vestem de mulher e não são homossexuais. Impossível tal crime.
Vestir-se sempre foi uma tarefa ingrata, pois todas as cores do seu
guarda-roupa foram escolhidas por sua mãe; a maneira de portar-se à mesa, na
escola, no cinema, com a namorada, no bar, com os amigos, com a esposa e com os
filhos foram ensinados pelo pai; a explicação do que é uma mulher foi dada
pelos amigos; e tem para si que os homossexuais são uma blasfêmia contra o
Senhor, pois o padre Marcelo lhe disse na infância. Ao norte da sua consciência
algo estava errado. Talvez os informes, talvez a notícia, talvez seu senso de
compreensão ou talvez ele mesmo. Ora, as coisas são assim, em transformação,
uma espécie de devir, no qual o mundo, o jeito e as informações mudam,
inclusive a vestimenta masculina.
Durante o banho percebeu o tecido adiposo de sua banha. Enquanto as
águas se transformavam em gotas para percorrer seu corpo, deu-se conta de que,
no passado, elas corriam mais rápidas ou então alguma mudança na ordem da
natureza tinha-o obrigado a aumentar alguns quilômetros entre sua barriga e o
chão. Que troca tinha realizado com o tempo: deu sua bela juventude por aquela
imensidão de gordura. Sua voz havia sido motivo de inveja no coral da igreja.
Hoje, do barítono não lhe sobra força para o pedido da aguardente na quitanda
de coisas vencidas. Estava de chita e sem chocho, sem cheque, diante do cherne
tomando um chá em sua chávena cheia. Quando alguém lhe perguntava como está:
sobrevivendo, respondia.
A história de Emiliano não tinha estória ou vice-versa, pois a coisa para ele era um caso de sobrevivência, embora desconfiasse que era de “subvivência”, mas o português não permitia tal insulto em sua língua e ele ficava por cima. Seja como for, Emiliano já não queria continuar aquela existência frugal. De qualquer modo, ainda não sabia o que queria e, portanto, permanecia na mesma até a grande revolução. Nas margens da existência e sobrevivendo, indagava-se se o destino pode ser mudado ou então como sucumbir às mãos sua garganta. Durante sua vida inteira foi um norte para os familiares e amigos, sendo, inclusive, elogiado pelos inimigos e “intrigueiros” de plantão. Deixa de lado estes, esquece-se da participação deles em sua vida, e volta ao banho, pois alguma coisa ficou no chuveiro, talvez suas dúvidas ou sua alma necessitassem de água. Seus olhos acompanhavam as gotas do alto até o buraco do umbigo, visto que, depois disso, tudo era um esforço épico. No decurso daquela pequena porção de água viu o ralo. Olhou um pouco mais. Mirando depois dele encontrou algo, algo tão importante, tão divino que começou a sorrir e seu riso foi aumentando de tal maneira que de gozo não percebeu sua queda. Encontrava-se de face diante do ralo de forma pueril. Tentou se aproximar ainda mais; foi com um dedo pelo piso, mas de forma gradativa, bem lentamente. Seu dedo indicador convidou o polegar e este os outros e, sem perceber o que ocorria, a grade estava em sua mão. Ficou espantado e maravilhado, porquanto não havia mais a proteção, o mistério diante de seus olhos...
Com muito cuidado, recolocou a grade e saiu do chuveiro apressado. Correu ao telefone para informar a notícia, mas ninguém estava do outro lado. Tudo foi um erro em sua vida, pensou. No decurso de sua vida foi o norte exemplar, embora a vida esteja no sul. Afinal, como cidadão situado abaixo da linha do Equador, deveria se “sulear”. Os amigos precisavam saber dessa informação e esquecer o ponto cardeal de suas vidas, pois estava muito longe e, embora Goethe seja uma leitura maravilhosa, Borges é uma obrigação sul-americana e destiladora. O novo tipo de cidadão americano precisava se edificar, no entanto, sua alvenaria não estava nas belezas do Tejo ou nas margens do Danúbio, mas nos milharais nordestinos, nas guerrilhas colombianas, no silêncio da Patagônia e na sombra das marcas autoritárias latino-americanas. Nas isoladas pradarias que são banhadas pelo Cruzeiro do Sul encontrava-se Emiliano, e nela somente nasceria o hino marselhês inovador, mas com a face cabocla. Emiliano procurava seus amigáveis para lhes dar a boa notícia. No entanto, não os encontrava.
A história de Emiliano não tinha estória ou vice-versa, pois a coisa para ele era um caso de sobrevivência, embora desconfiasse que era de “subvivência”, mas o português não permitia tal insulto em sua língua e ele ficava por cima. Seja como for, Emiliano já não queria continuar aquela existência frugal. De qualquer modo, ainda não sabia o que queria e, portanto, permanecia na mesma até a grande revolução. Nas margens da existência e sobrevivendo, indagava-se se o destino pode ser mudado ou então como sucumbir às mãos sua garganta. Durante sua vida inteira foi um norte para os familiares e amigos, sendo, inclusive, elogiado pelos inimigos e “intrigueiros” de plantão. Deixa de lado estes, esquece-se da participação deles em sua vida, e volta ao banho, pois alguma coisa ficou no chuveiro, talvez suas dúvidas ou sua alma necessitassem de água. Seus olhos acompanhavam as gotas do alto até o buraco do umbigo, visto que, depois disso, tudo era um esforço épico. No decurso daquela pequena porção de água viu o ralo. Olhou um pouco mais. Mirando depois dele encontrou algo, algo tão importante, tão divino que começou a sorrir e seu riso foi aumentando de tal maneira que de gozo não percebeu sua queda. Encontrava-se de face diante do ralo de forma pueril. Tentou se aproximar ainda mais; foi com um dedo pelo piso, mas de forma gradativa, bem lentamente. Seu dedo indicador convidou o polegar e este os outros e, sem perceber o que ocorria, a grade estava em sua mão. Ficou espantado e maravilhado, porquanto não havia mais a proteção, o mistério diante de seus olhos...
Com muito cuidado, recolocou a grade e saiu do chuveiro apressado. Correu ao telefone para informar a notícia, mas ninguém estava do outro lado. Tudo foi um erro em sua vida, pensou. No decurso de sua vida foi o norte exemplar, embora a vida esteja no sul. Afinal, como cidadão situado abaixo da linha do Equador, deveria se “sulear”. Os amigos precisavam saber dessa informação e esquecer o ponto cardeal de suas vidas, pois estava muito longe e, embora Goethe seja uma leitura maravilhosa, Borges é uma obrigação sul-americana e destiladora. O novo tipo de cidadão americano precisava se edificar, no entanto, sua alvenaria não estava nas belezas do Tejo ou nas margens do Danúbio, mas nos milharais nordestinos, nas guerrilhas colombianas, no silêncio da Patagônia e na sombra das marcas autoritárias latino-americanas. Nas isoladas pradarias que são banhadas pelo Cruzeiro do Sul encontrava-se Emiliano, e nela somente nasceria o hino marselhês inovador, mas com a face cabocla. Emiliano procurava seus amigáveis para lhes dar a boa notícia. No entanto, não os encontrava.
A manchete do jornal voltou a seus olhos. Descobriu que pouco importava
o significado drag queen, homossexual, homem, mulher, pois tudo o que
entra no jornal é pragmático e comercial. Pouco importa os hormônios utilizados
por Bete, Janete ou um ex-Alfredão. Eles e elas são livres para nortear ou
sulear suas opções sexuais ou trabalhistas, todos sabem o gozo, a beleza, a
dor, mas poucos sabem que o amor que vem do outro, pouco importando suas
genitálias, convidam-nos para uma canção.
Cuidadosamente monocrômico diante do espelho e com
a nova informação, saiu Emiliano de casa rumo à cidade. Decidido a viver o
mundo e sua nova existência e recavar a arqueologia de sua vida, sendo o senhor
de suas escolhas e disposto a dessacralizar o mistério que se encontrava
debaixo do ralo. Tão contente estava que, sem olhar para os lados, atravessou e
morreu na avenida São João, pois, mesmo no Reino Unido, isso é necessário...
Talvez Emiliano tenha descoberto muito tarde o segredo da
existência; do cuidado com os segredos; a beleza do Cruzeiro do Sul; que existe
um tempo para tudo e que, às vezes, é importante fazer tudo no mesmo tempo;
mas, acima de tudo, deve-se ter muito cuidado com o trânsito na América do Sul
e, em especial, em São Paulo ou em Feira de Santana.
Fim... ou o início de outro segredo?
Fim... ou o início de outro segredo?
AUTOR
Nilo Henrique Neves dos Reis é professor de Filosofia da UEFS.
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