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Por que ainda estamos vivos?

José Feres Sabino*


Se todo livro pede um leitor que o complete e o reescreva segundo suas buscas, reescrevo nestas linhas uma pergunta que, embora nascida da leitura do livro de contos Romance negro e outras histórias, de Rubem Fonseca, parece percorrer sua vasta obra.

A leitura de seus contos, novelas e romances parece sempre erguer esta questão: onde está a vida? Estamos, na verdade, diante de uma narrativa que nos apresenta o desaparecimento da vida, podendo ser compreendida num duplo sentido: desaparece a ambiência onde a vida aparece; desaparece a linguagem em que a vida é evocada.

Um dos contos do livro – “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” – apresenta esse duplo desaparecimento. Nele o personagem-escritor, ao ganhar na loteria, pede demissão da companhia de águas e esgoto, aluga um sobrado no centro da cidade, troca o nome (antes Epifânio, agora Augusto) e se põe a escrever um livro.

Esse gesto tornar-se um escritor insere o conto na tradição dos romances de formação. O conto condensa a temática do romance no espaço de uma cidade grande contemporânea, o Rio de Janeiro. Um parente mais próximo desse conto é o filme de Wim Wenders, com roteiro de Peter Handke, Falso Movimento. Neste, Wilhelm (alusão ao personagem de Goethe, do romance Wilhelm Meister, um dos clássicos do gênero) sai em viagem pela Alemanha em busca de experiências para narrar.

Augusto não sai em viagem pelo país, mas perambula pelo centro da cidade observando os prédios, os cartazes e “principalmente as pessoas”. Desloca-se para “encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade”.

O que o personagem encontra e o que poderá ser narrado? Em suas caminhadas, o narrador encontra mendigos, putas, pastores de igrejas, grafiteiros, camelôs, marquiseiros, mendigos e um velho. Este é quem lhe aluga o sobrado. Ele é o guardião da memória da cidade. Os lugares percorridos pelo personagem já não guardam ligação com o passado. Esse apagamento da memória é dito pelo velho quando comenta a mania das pessoas de mudar o nome das ruas. As antigas construções são demolidas ou já não abrigam o que antes abrigavam. Um cinema, por exemplo, é também o templo da Igreja de Jesus Salvador das Almas. De manhã, é o templo onde o pastor vende a fé; à tarde, exibe filme pornô.

Os marquiseiros que Augusto encontra são os habitantes das marquises dos prédios. Constroem suas casas com caixas de papelão e vivem de pequenos bicos. Outros habitantes são os mendigos, cujo líder de um bando deles não quer que os identifiquem como mendigos. Prefere a identificação de desabrigados e descamisados, pois não querem pedir esmolas nem receber esmolas, mas querem o que os bacanas tiraram deles. Fundam uma associação que reivindica seus direitos.

A cidade, suja e poluída, se tornou a platitude do automóvel, do acúmulo de pessoas e local de reivindicação dos direitos. A cidade assim não oferece mais nenhuma ambiência para a vida. Há uma única ainda, o parque, onde o escritor adora abraçar e beijar as árvores – porque entre elas “não sente irritação, nem fome nem dor de cabeça” – mas que, por não conseguir realizar esse ato à luz do dia, ele transgride o horário permitido de permanência no parque para encontrar a comunhão com a vida.

Uma das atividades que o escritor do conto faz, além de caminhar pela cidade e escrever, é alfabetizar as putas. Após ter alfabetizado 27 putas, inicia seu curso com uma nova puta, a Kelly. E depois de ela aprender a ler, acompanhá-lo pela cidade, conviver com ele, diante da quase indiferença desse professor, ela, chorando e gritando, pede a Augusto que a toque. Perplexo, sem saber o que fazer com ela, procura o velho e pergunta: por que as pessoas querem continuar vivas?

O velho responde que vive porque não sente muitas dores no corpo, gosta de comer e tem boas lembranças. Também ficaria vivo se não tivesse lembrança alguma. Augusto só tem lembranças horríveis, quer viver para escrever seu livro, porque adora as árvores, mas já pensou em se matar. Quando Kelly o abraçou chorando, ficou com vontade de morrer. Sai, então, em direção ao cais. Lá encontra não o mar aberto, mas fedendo.

Augusto se sente asfixiado pela falta de vida, assim como o narrador-escritor do conto “Olhar” do mesmo livro, que redescobre a vida quando inicia uma nova dieta com trutas vivas. Necessita sempre olhar e ser olhado pelo bicho vivo que será comido. De misantropo e vegetariano que era passa a ser um carniceiro, realizando ele mesmo todo o processo alimentar: da matança do animal à preparação da comida. Com este fechamento do espaço onde o humano possa desabrochar, sua humanidade se manifesta em forma de aberrações.

Ao desaparecimento da ambiência vital corresponde o desaparecimento do lugar de evocação da vida. A linguagem, quando se torna um varal de signos autorreferentes, asfixia o homem. Ela é para o ser humano aquilo que a pele é para nosso corpo. De importância vital, a pele inspira, respira, recebe estímulos, protege, enfim, ela realiza nossa ligação com o que nos rodeia. Do mesmo modo, é a linguagem que recebe, sopra e infla as coisas ao nosso redor. A linguagem é a pele ontológica do homem e das coisas.

A maestria de Rubem Fonseca está justamente em mostrar que a linguagem literária – que deveria evocar a vida humana – carrega sua própria morte. O vazio encontrado por Augusto é o mesmo encontrado pelo Wilhelm de Wenders/Handke. Não há mais nada a ser narrado, exceto a asfixia. O que antes era a narrativa epifânica do homem e das coisas, agora é o epitáfio da linguagem e das coisas.

Esse falecimento da linguagem talvez seja o núcleo narrativo da obra de Rubem Fonseca. Nela o homem aparece como mero destinatário de imperativos linguísticos, que são emitidos pelos códigos culturais (cinema, música, literatura, artes plásticas). No conto “Carpe Diem” do livro de contos Histórias de Amor, por exemplo, um casal de amantes tira sua vida dos filmes a que assistem. “O que seria do mundo se o cinema não tivesse sido inventado?” é a pergunta que une o casal.

O homem se tornou um signo, toda sua experiência se encontra reduzida à experiência de signos. Agimos estimulados por signos, assim como nos encontramos dentro do espaço construído pelos signos. Esta economia de trocas de significados atinge o próprio fazer literário, em que a linguagem já não encontra mais as coisas inominadas para evocá-las, mas se encontra totalmente trancada em si mesma.

Augusto, descendo a Presidente Vargas, maldiz os urbanistas que não perceberam que uma rua larga precisa de sombra. Quando desaparece uma árvore, desaparece a sombra que protege o homem. Quando a linguagem desaparece (fecha-se em meros signos), é como se sua sombra fosse extinta. Nem ela nem o homem podem mais descansar.

O tema da violência, tantas vezes celebrado e reconhecido, em sua obra entra nessa leitura porque a violência se tornou uma linguagem. Aquilo que 40 anos atrás estava circunscrito ao ambiente da delegacia, parece hoje ser a tônica dominante da vida em cidade. E, por outro lado, os atos de violência também podem ser lidos como busca desesperada pela vida. Somos levados a cometer atos violentos para sair da cadeia de signos.

A obra de Rubem Fonseca, inscrita na tradição do gênero policial, talvez tenha como elemento desse tipo de literatura a seguinte pergunta: quem anda matando a vida? E os investigadores desse assassinato são todos os homens que, envolvidos numa grande cidade, já não possuem mais a natureza nem a cultura como descanso ou transcendência.

AUTOR
*José Feres Sabino - Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em Filosofia pela mesma instituição; é tradutor e professor de filosofia. E-mail: joseferes@hydra.com.br

REFERÊNCIAS

FONSECA, R. Romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_. Histórias de amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.




FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017

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