André do Carmo Otoni*
RESUMO
Este dossiê se propõe a apontar a necessidade de uma filosofia que inclua as mulheres. Desde a antiguidade, as mulheres têm entrado na filosofia como meras coadjuvantes. A restrição feminina passa por uma violência velada de homens que as determinam como objeto. Neste sentido a mulher se diferentemente do homem a morte de uma mulher não é heroica, e a partir dela se revela seu valor. A luz de alguns trabalhos de Márcia Tiburi, apontamos como a mulher é retratada a partir de sua morte e a possibilidade de superação deste cenário.
PALAVRAS-CHAVE: Feminino, Morte, Violência, Superação.
I. INTRODUÇÃO
Dentro da história da humanidade e de seu pensamento, existe uma relação quase excludente com relação à mulher e seu papel formativo. O falar feminino sempre foi um tabu dentro da filosofia. De Aristóteles aos nossos dias, a mulher tem um papel inferior ao do homem. E as grandes questões acerca da realidade são determinadas por um debate exclusivamente masculino.
É nesse contexto que surge o modelo patriarcal como nós conhecemos. Sendo assim a mulher não tem espaço para falar de suas questões sobre a vida e até mesmo a realidade que a cerca. Ela não pode expressar nada acerca de seu posicionamento contrário a ou a favor do masculino. Falando especificamente do Brasil, Roberto da Matta (1986) nos exemplifica que a cultura fez da mulher um objeto manipulado pelo homem e, não somente isso, ela vem sendo tratada, única e exclusivamente como uma espécie de prato exótico, erótico e prazeroso ao paladar sexual de ‘seu’ homem. Portanto, justificam-se vários tipos de agressão, sejam elas morais ou físicas.
Embora o livro de Da Matta tenha sido escrito ainda nos anos 80, época em que questões como essas aparecem de maneira mais frequente. Pouco avanço tem em relação a este sistema de desigualdade, como tantos outros. Evidentemente, algumas leis vêm surgindo para tentar mudar essa situação. Assim, evidentemente a filosofia deve se tornar pratica e postular por um meio igualitário.
No que consiste de trabalho frente a isso, o trabalho de Marcia Tiburi um viés que constata a ‘morte anunciada’ da mulher ainda no contexto atual. Sua filosofia é uma busca por igualar a mulher intelectualmente ao homem e reconhece-la como agente, considerando sua maneira de pensar em particular. A filosofia não deve ser encarada como obscura e puramente masculina, mas deve ser responsável por trazer as outras pessoas uma forma alegre de tratar as coisas da realidade.
II. FALAR DO FEMININO A PARTIR DA MORTE
A questão do feminino dentro da filosofia é marcada uma estranha carga de autoridade. Por essa autoridade, qualificamos a pressão masculina pelo que representa o feminino. Tamanha carga negativa se deve ao fato da autoridade masculina ser exercida duramente não somente contra a mulher, mas contra todas as formas que se opõe a seu pensamento. A mulher, em especial, não pode ser reconhecida como autônoma ao que diz respeito ao homem, porque poderia significar que ela não precisa necessariamente dele para ser o que de fato é. Assim, a dependência da mulher poderia permanecer limitada exclusivamente à função sexual em relação homem.
Desde os primórdios, tem sido desta forma que as coisas acontecem, e mais uma vez a mulher é vista como objeto. Para justificarmos aparentemente esse conteúdo reportamos a imagens arbitrárias, como a própria imagem da história da criação divina, retratada por obras de arte e pela própria Bíblia. De fato negar a religiosidade de um povo é perigoso. Perigoso por trabalhar com questões delicadas da tradição. Porém esse apelo à cultura garante que a mulher permaneça inferior ao homem e dependa dele para quase tudo. A dívida da mulher é histórica. Se na história da criação a mulher fora a responsável pelo mal ocorrido ao homem, esta deve pagar ficando confinada a ele. E neste mesmo sentido se desenvolve a premissa de que o homem deve suprir as necessidades da mulher, da casa e da família. Enquanto isso a mulher é deixada de lado, a única função que cabe a ela é o cuidado do lar e dos filhos. Também, não pode ser considerada como herói, mesmo que tenha dado sua vida em prol de algo muito maior.
Apostando neste sentido, é que autores como João Guimarães Rosa, revelam uma mulher que pode sim ser equiparada ao homem. Como no caso de Diadorim, guerreira que luta bravamente no sertão, mas que somente é reconhecida quando de sua morte (ROSA, 1994). Da literatura ao cinema, a figura da mulher é expressa como portadora de algo destruidor, capaz de despertar a fúria animal do homem. Essa, chamada de animalidade é motivo de orgulho para o homem que, como nos recorda Simone de Beauvoir (BEAUVOIR, 1970, p.25), ser ‘macho’ é denominar-se com orgulho, enquanto se autodenominar ‘fêmea’, corresponde a algo pejorativo, pois permanece confinado a pulsão sexual.
Uma vez confinadas ao sexo, existe a perda de uma característica do afeto feminino, a ‘delicadeza ou docilidade’, pois esta pertence como característica a mulher. Quanto ao homem, este deve ser bruto e responsável por suprir as necessidades da família.
Apesar de seus grandes feitos, a mulher é marginalizada. O heroísmo de qualquer ato é deixado de fora e se considera o sexo da pessoa que praticou tão nobre ato. No caso do de Guimarães (TIBURI, 2013), em Grande Sertão Veredas, acontece com Diadorim. Para quem conhece a obra sabe que essa personagem trabalha o tempo todo em prol de um povo também marginalizado e, na batalha perde sua vida. No entanto, ao desenrolar da obra, a personagem ganha destaque, combate junto aos seus e desperta um amor proibido (ROSA, 1994) em relação ao personagem Riobaldo. Este se sente culpado por amar a outro homem, mas que consegue perdão de seu desejo ao descobrir que se tratava de Diadorim. Conforme nos aponta Tiburi (1970), ela apenas consegue prestigio por parte dos homens por ser considerada um deles. Como ela mesma contata:
A negação da homossexualidade é paralela à armadilha antifeminista: a isca é o corpo de uma mulher que só pode aparecer como mulher enquanto morta. Ou de um homem que, ao ser morto, aparece como mulher. O corpo de uma mulher morta é, nesse caso, o desfecho de uma lei a ser cumprida (TIBURI, 2013, p.159).
A hipótese de que a homossexualidade traga para o mundo um sujeito mais ou menos macho, faz com que ambos os sistemas de exclusão caminhem juntos. Neste sentido, em uma relação entre homens, o lado mais fraco desta, será em quase todos os momentos igualados ao ato delicado de uma mulher. A fragilidade feminina não constata que o homem possa ser rígido, mas sustenta ambas as posições de que a mulher e o homossexual devem morrer, pois fogem ao ato heroico. Isso também se evidencia como uma forma de controle sobre os corpos.
Ainda é preciso destacar que a obra de Guimarães Rosa não é a unida a retratar mulher por meio da observação de sua morte. Também em autores como Shakespeare isso pode ser verificado. O fato de Riobaldo ter uma paixão velada por Diadorim pode ser supostamente justificado pela causa de sua morte (TIBURI, 2013), dependendo do fato ocorrido, a mulher apenas encontrou seu destino, já o homem entrou para a história. Talvez esta seja essa a única forma de valorização do ato da mulher. Ainda assim, as várias formas de se matar um ser humano, como exposta por Tiburi (2013) seja uma das mais eficientes constatações. A imagem de um corpo sem vida da mulher representa não um corpo sem vida, mas sua trajetória de vida, seus ideais e crenças. Enquanto isso a figura do homem segue sendo apresentada como herói.
Mas porque então a figura da mulher adquire o aspecto de heroísmo a partir de sua morte? A resposta desta questão pode estar mais próxima de nós. Provavelmente em vista da manutenção de um ‘status’ social. É quase certo que tendo em vista a necessidade de proteção, e em nome deste ‘status’ a mulher tenha se sujeitado ao homem para permanecer viva. Porém, em certos casos, viver significa arrisco, perda da liberdade, da própria opinião. Além disso, em uma sociedade marcada por antagonismos se torna legitimo toda a ação de controle do corpo. Essa manutenção de status perpassa um estado de controle não unicamente do pensamento, mas também pelo controle do próprio corpo. Principalmente no século XX constatamos esse tipo de política de controle, seja social ou sexual. É neste século que se desenvolvem os grandes mecanismos de controle do corpo. E assim a necessidade de controle da mulher se torna ainda mais presente.
As chamadas ‘bio-politicas’, como apontadas por Foucault no volume I de ‘História da Sexualidade’ (1999) contribuem para o aumento da desigualdade entre homens e mulheres. Pelo termo bio-politicas, podemos entender uma ação que se dá sobre corpos com armas que vão da linguagem à ação (TIBURI, 2010). A partir disso a ideia da morte, ou a real possibilidade dela fez com que se legitimasse o poder sobre o corpo. A morte legitima a necessidade o controle, como uma forma de punição a quem descumpre as regras. E por esse aspecto podemos considerar que o surgimento de movimentos revolucionários, totalitarismos e a passagem de duas guerras provavelmente fizeram com que a crise entre feminino e masculino tivesse uma reviravolta.
Assim, principalmente nos anos 60, mulher inicia o processo de libertação frente ao homem, posicionando-se. Porem, em nome de uma família nuclear, em que pai, mãe e filhos mantêm uma relação aparentemente solidificada, o modelo tenha permanecido. A figura feminina ainda é deixada de lado das decisões. A morte talvez pudesse ser o fenômeno que trouxesse a mulher para o centro da casa, pois enquanto isso:
Ao longo dos séculos as mulheres foram representadas de modo pequeno e inferior, não sendo concedida a elas capacidade racional e intelectual, deixando-as reclusas em espaços restritos onde eram impedidas de exercer qualquer atividade ligada ao intelecto e ao bem público. Deste modo, elas não tiveram oportunidade de mostrar que suas capacidades e habilidades transgrediam o núcleo dos afazeres domésticos. (PACHECO, J (org.), 2015, p. 15).
Sendo assim, como a citação sugere, a mulher continua a ser apenas um prato exótico ao marido. A partir da sensação de perda provocada pela morte ela ganha voz. Mas, esse sistema de controle da mulher se destaca não apenas dentro de sua casa, mas também em outros espaços. A esfera privada de tratamento da mulher apenas revela o que na sociedade se expõe de forma velada. A insegurança provocada pelo comportamento machista faz com que a mulher tenha que recorrer a agentes externos para justificar seu comportamento. Essa insegurança não seria uma insegurança apenas por parte da mulher fragilizada, mas do próprio homem como uma necessidade de afirmação (TIBURI, 2010, p. 125).
A mulher se torna objeto ao homem, posse. Contudo, não é apenas o homem que faz isso, mas toda uma sociedade. Veja por outro ângulo que, até mesmo na mídia esse controle se legitima: não se vê uma campanha publicitária de materiais domésticos para homens, por ser essa atividade uma atividade quase exclusivamente feminina. A morte da mulher não necessariamente aponta para a morte de seu corpo físico, mas também a morte de seus projetos e ideais. As teorias politicas de controle do século XX sejam elas desenvolvidas por Freud, Foucault, Smith, entre outros demonstram a insegurança humana diante de tempos de crise. Fatores esse desenvolvidos na estrutura social.
III. A SUPERAÇÃO DA VISÃO DE MORTE
Não deveríamos falar em superação para um problema que não deveria existir. No caso estamos nos referindo ao problema da morte da mulher frente ao pensamento existente. Seja no campo da filosofia ou nas demais áreas do conhecimento ainda é necessário que a mulher tenha um espaço para expor o que pensa.
Falar em soberania por parte do feminino, conforme constata Tiburi (2010, p. 112), seria como falar de uma espécie de outra violência. Quando falamos de violência não falamos apenas da violência feminina, mas também da violência que afeta a todos. Assim como Hannah Arendt (2004, p. 4-5), Tiburi constata que a violência é uma forma de destruição do poder, exposto a partir de sua constatação simbólica.
Neste sentido, superadas as formas de separação entre pensar masculino e feminino a filosofia não tivesse de falar sobre a violência. Esta violência surge das mais diversas formas, e sua prática se determina pela necessidade de afirmação daquele que a pratica. Enquanto houver atrocidades contra o discurso feminino ou enquanto não aceitarmos as mulheres, teremos que procurar justificação para as atrocidades em relação ao feminino.
Na prática, nada justifica a violência contra qualquer indivíduo, sua origem está na falta de diálogo. Embora sejamos pessoas aptas a este diálogo, nem sempre ocorre desta forma. Em nome do amor se acometem as maiores atrocidades contra a vida, se pratica a intolerância ou se justifica a morte. Não existe uma forma própria para a superação deste processo, mas existem caminhos.
Tiburi, entretanto, indica caminhos consideráveis para a superação da violência patriarcal. A primeira delas é uma desconstrução do modelo patriarcal a partir de seus argumentos. A superioridade masculina frente à feminina não deve se basear em características de gênero, nem mesmo em aspectos isolados do indivíduo, como a necessidade de reconhecimento. Esse reconhecimento vai desde um impulso biológico, até a efetiva atitude. Entendamos também que o discurso acerca do biológico deve ser anulado. Homens e mulheres podem desenvolver as mesmas atividades físicas e intelectuais. Talvez por medo ou insegurança ainda seja preciso lutar contra o preconceito.
Já em uma segunda possibilidade de superação, Tiburi (2010) nos convida a uma espécie de reinvenção das coisas, ou seja, um novo olhar sobre a mulher e suas capacidades. A imagem da mulher submissa que pertence a seu marido, que apenas cuida dos afazeres da casa, deve ser readequada para a imagem da mulher livre. E a essa liberdade podemos incluir a capacidade de não entender a mulher como um instrumento, objeto, mas apta a realizar suas próprias escolhas.
Por fim, devemos falar da própria filosofia. Ainda falamos pouco da relação das mulheres e o pensamento filosófico. O intelectual deve reconhecer que está errado quanto à mulher. Falar da mulher dentro da história da filosofia significa reconhecer uma dívida histórica. Assim é necessário que a mulher entre na filosofia pela porta da frente, não sendo mero coadjuvante no processo filosófico. Ela, a mulher, vai nos dizer Tiburi (2010), salva o sujeito de outra forma, dele mesmo. Até aqui, o que se constata é que as mulheres dentro da filosofia foram silenciadas e oprimidas. E de acordo com as perspectivas de Tiburi (2003), cabe a nós não repararmos os erros do passado, mas sim fazer diferente o futuro.
REFERENCIAS:
ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília, DF: Ed. da UnB, 1985
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4. ed.. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
DA MATTA, Roberto. O Que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria T. C. Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
PACHECO, Juliana (Org.). Mulher & Filosofia: as relações de gênero no pensamento filosófico. 1. ed.. Porto Alegre: Editora Fi, 2015.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 1. ed.. São Paulo: Nova Aguilar, 1994.
TIBURI, Marcia. “As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento”. In. Com Ciência, Campinas, dez.2003. Disponível em: http://www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/mulheres/15.shtml. Acesso em: 10 de Outubro de 2017.
________. Diadorim: biopolítica e gênero na metafísica do Sertão. Revista Estudos Feministas (UFSC. Impresso), v. 21, p. 191-207, 2013.
________. “Marias Bonitas: entre a mulher mítica e as mulheres reais, uma fratura no sertão”. In: QUEIROZ, André. Arte & Pensamento: a reinvenção do Nordeste. Fortaleza: SESC, 2010. p. 111-125.
________. Ofélia morta: do discurso à imagem. Revista Estudos Feministas (UFSC. Impresso), v. 18, p. 301-318, 2010.
AUTOR
* André do Carmo Otoni é atualmente aluno de Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista pela CAPES. Possui Especialização em Projetos Culturais pela PUC/MINAS e Graduação em filosofia pela Faculdade São Luiz de Brusque – SC. E-mail: aotoni6@gmail.com.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017
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