Vânia Vicente*
RESUMO
O artigo versa sobre o mundo sensível como solo do pensamento e tomará como referência a filosofia de Merleau-Ponty. Vê-se, pois, que em nossa abordagem a estética de que nos ocuparemos não será aquela da tradição cunhada no séc. XVIII, comprometida com as noções de arte e de belo, mas uma estética interpretada, em seu sentido radical, como logos sensível. A estética, pois, será a vida em movimento e, como tal, elemento comum: existir é já ser disposto esteticamente no mundo da vida. Voltar-nos-emos, a partir de tal ancoragem, para o que daí decorre em relação à experiência do pensamento e sua relação com a verdade – experiência esta tomada no crivo da comunhão e da multiplicidade –, desembocando, por fim, na perspectiva de uma ética intrínseca à filosofia merleau-pontiana, sem, no entanto, aqui tematizá-la.
PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty, Estética, Pensamento.
PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty, Estética, Pensamento.
DE INÍCIO
Move-me a este tema uma atenção a algo que poderia ter como núcleos basilares, o que se chamaria algo assim como (i) cidadania intelectual e (ii) dilatação dos lugares por onde a verdade do Ser – isto é: do que somos – se manifesta. Ou, ainda, se quisermos: partilha da razão e direito ao verdadeiro – como direito a um lugar na verdade, como expressividade e, na mesma medida, direito a ser via de acesso a esta. Trata-se, pois, de uma atenção que se volta para a liberação da verdade, o que implicaria uma igualdade na expressão do verdadeiro, seja no que se mostra, seja no modo pelo qual se mostra – os caminhos vários da linguagem – mesmo que, por vezes, a verdade que se nos mostre seja aquela de qualquer coisa que não apreciamos ou aprovamos ou desejamos. Tal disposição compreensiva da existência em seu acontecimento múltiplo e simultâneo seria, entretanto, o solo primeiro a partir do qual fazemos nossas escolhas, empreendemos decisões, abrimo-nos ética e politicamente no mundo da vida.
De resto, uma interrogação perdura na atenção aos núcleos a que nos referimos, é ela: uma efetiva conduta interrogativa que tome o sensível como solo nos leva a uma revisão daquilo que habitualmente entendemos por filosofia e, ainda, haverá em tal conduta um significado ético?
Como a perscrutação de tais questões – verdade, sensível, pensamento ou, se quisermos, filosofia – nos leva a cotejar outras correlatas, pelo menos na tematização a que estamos nos propondo, posto guardarem uma ligação intrínseca seja no modo da afinidade, seja naquele da oposição, aqui faremos referências a alguns termos – tais como metafísica, arte etc. – sem propriamente aprofundá-los conceitualmente. Peço licença ao leitor ou leitora para isto.
O TEMA MESMO
Pois bem, ao propor resumidamente este artigo, disse que nos voltaríamos – e quando escrevo nos estou me referindo a mim que escrevo e a você que lê – para o mundo sensível como solo do pensamento e que tomaria como referência a filosofia de Merleau-Ponty. Disse também que com tal afirmação já se poderia ver que, na abordagem que se segue, a estética de que nos ocuparemos não será aquela da tradição cunhada no séc. XVIII – uma terminologia clássica tal qual a temos no interior dos estudos ou campos de conhecimentos filosóficos cunhada num movimento de pensamento que identifica a (i) verdade com a lógica, (ii) a beleza com a estética ou juízo de gosto do espectador; e toma, a princípio, a arte como cópia, imitação, aparência –, mas uma estética interpretada em seu sentido radical, na perspectiva em que a experiência do ser é estética originariamente, sem o compromisso apriorístico com as noções de arte e do belo.
A estética, tal como concebida na metafísica clássica – pensamento que abarca o que acabamos de referir ao fazermos menção à concepção cunhada no séc. XVIII –, diz-nos Nunes (1969, p. 52),
representa uma posição interpretativa em face do belo e da obra de arte, posição que criou a tradição e que nos impôs, sob uma pauta comum de pensar, certas categorias de que até hoje nos servimos para falar da arte e da sua essência. Ela encerra uma experiência sedimentada na qual se acha resumido todo um ciclo histórico do pensamento. Esse ciclo abrange o conceito platônico de Belo, a teoria da imitação de Aristóteles, o sentido da palavra tekne para os gregos, os transcendentais da escolástica, as ideias de belo natural, de arte como artifício ou como produção da beleza, de contemplação desinteressada, de representação, de vivência.
E, como tal, guarda já consigo os preceitos do dualismo clássico entre sensível e inteligível, corpo e alma, mundo e pensamento. Na radicalidade da filosofia merleau-pontiana em direção ao sensível, melhor: em direção à indivisão ontológica entre sensível e inteligível, entretanto, vê-se uma retomada da metafísica em outra perspectiva. Nela
o que existe de metafísico no homem não pode mais ser remetido a qualquer além de seu ser empírico – a Deus, à Consciência –, é no seu ser mesmo, nos seus amores, nos seus ódios, na sua história individual ou coletiva que o homem é metafísico, e a metafísica não é mais, como dizia Descartes, o assunto de algumas horas por mês; ela está presente, como o pensava Pascal, no menor movimento do coração (MERELAU-PONTY, 1996, P.36).
A via de pensamento que levará Merleau-Ponty a se opor à metafísica clássica, apresentando-nos as ondulações metafísicas do Ser imbricadas à própria experiência sensível, é a mesma que levou o filósofo ao distanciamento da estética tal qual compreendida no interior da metafísica que ele recusa:
O âmbito da estética, naquele que é o seu sentido convencional, encontra-se arredado da reflexão pontiana. Merleau-Ponty não pretende constituir uma estética, nem visa o estético enquanto tal: os seus textos dispensam qualquer referência às categorias estéticas, nunca mencionando o belo, o sublime, o gosto, ou a caracterização do objeto e da experiência estéticos. O que encontramos é, no interior de uma ontologia que se faz na dinâmica da vida de toda a realidade, uma estésica. A primazia atribuída à experiência do corpo estende-se a uma profunda reflexão sobre o papel dos sentidos, da sensorialidade e da própria sensibilidade (MATOS DIAS, 2002, 345).
É decerto a partir deste solo de compreensão que para Merleau-Ponty, lembra-nos Eliane Escoubas (1992, p. 126), “a obra de arte é estética, mas sob a condição de reelaborar o conceito de estética”, isto é, de se dirigir para a dimensão ontológica do sensível como lugar do sentido, donde uma interpretação da estética em sua acepção radical, originária, “como estésica – aisthésis – melhor, estesiologia,”dirá Isabel Matos Dias, “no sentido de um ‘logos sensível’, ou como expressão do Logos du monde sensible, na terminologia da La Prose Du Monde” (p. 345). Com efeito, segue dizendo Matos Dias (2002, p. 345),
Merleau-Ponty acompanha Paul Valéry, em Discurso sobre a Estética, de 1937, quando afirma que “se me fosse dado escolher entre saber como e por quê uma coisa é bela e saber o que é sentir, escolheria o sentir, na certeza de que este me devolveria de imediato todos os segredos da arte.
É, aliás, nesta perspectiva que, para Merleau-Ponty (2011, p. 42), a obra de arte “contribui para definir nosso acesso ao ser”. Quando evoca as artes em seus textos ou preleções, não é à definição de um conceito desta ou daquela que quer chegar, mas às tramas do ser abertas por todas e cada uma delas. O lugar da arte no pensamento de Merleau-Ponty é, pois, aquele de uma subversão: não é tencionando atestar a verdade da arte que o filósofo francês a toma em suas reflexões, como se esta dependesse de uma demonstração mediada pela racionalidade em sua potência de representação límpida, ou da autenticação do crítico que, muitas vezes, tece eruditas e sofisticadas considerações nos fazendo parecer que esta ou aquela obra não viesse ao mundo senão para caber em seus arcabouços de conceitos a priori – isto é: para ilustrá-los. Pelo contrário, a pergunta que acompanha Merleau-Ponty em suas meditações é: que verdade a arte nos dá? É essa a questão que o acompanha quando da apreciação da pintura, da literatura, do cinema ou da música em sua obra.[i]
Mas, não nos detenhamos à tematização disto aqui. Se fazemos cá estas considerações, é apenas para proceder com cuidado ao pensamento de Merleau-Ponty que, como dissemos de início, é uma das fontes da tematização de que agora nos ocupamos – e que, vimo-lo há pouco, não fará qualquer referência às categorias estéticas tal qual a tradição, propondo, ao contrário, uma reabilitação ontológica do sensível que nos dá elementos para reelaborar o próprio conceito de estética. E o fazemos também para divisar a estética de que estamos falando – aquela do mundo da vida a que estamos dispostos sensivelmente, que fecunda todo pensamento e toda palavra dita ou silenciada e que a todos lança ao crivo de um entrecruzamento sem fim, dando-nos a uma “sorte de inerência do eu ao mundo e do eu a outrem”: um corpo nunca é só (MERLEAU-PONTY, 1996, p.74).
Explico. O sensível, cujo emblema é o nosso corpo, nos estende a uma multiplicidade e entrelaçamento impossível de redução. Trata-se de uma continuidade entre as coisas, os homens e o mundo, cuja reversibilidade – tocar é ser tocado, ver é ser visto, perceber é ser percebido – “remete-me a um único sensível carnal que de outro ou de outros também é” (NUNES, 2004, p. 280). Donde haver, para Merleau-Ponty, “um tecido comum do qual somos feitos” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 253). Trata-se, pois, de uma totalidade que não tem posse total de si mesma, adesão que se sabe além da prova, coesão sem conceito, nos termos de Merleau-Ponty; aderência resguardada no silêncio e aberta/prolongada em toda palavra, todo pensamento e toda ação. Isto nos leva ao que poderíamos chamar de gênese ou nascimento continuado, a um processo de abertura sem fim – melhor: coabertura. Em tal movimento aberto pelo sensível estamos todos imersos. Nisto somos iguais.
É nesta perspectiva que a estética guarda o sentido de vida em movimento e, como tal, elemento comum: existir é já ser disposto esteticamente no mundo da vida. Ora, se a existência sensível é elemento comum e se o que buscamos explorar neste artigo é o sensível como lugar originário do pensamento, isto é: como lugar desde onde o pensamento pensa, desde onde se dilata como indagação, tal empreendimento terá que levar em sua lida pelo menos duas questões entrecruzadas: uma, diz respeito ao estatuto da verdade; outra à divisão hierárquica engendrada pelo dualismo ontológico da tradição no que toca à experiência da verdade e às formas de conhecimento.
No seio de tal questão, poderíamos nos voltar, a título de exemplo, para Artaud, Cézanne e, em certo sentido, Lima Barreto[ii] e tantos outros, cujas existências foram perpassadas pelo esforço da expressão em meio à fugacidade dos instantes de clareza, de fazer o “sentindo existir expressamente” (MERLEAU-PONTY, 2008, p. 85); pela não adequação à forma e seus preceitos normativos em direção à perfeição estatuída e pelo sofrimento que entremeava tal esforço e a não adesão ao instituído. É que para eles, seus estilos, suas obras eram “o emblema de uma maneira de habitar o mundo, de tratá-lo, de interpretá-lo (...) em suma, de uma certa relação ao ser” (p. 87). Eles tomavam a expressão – cada um à sua maneira – no fluxo das suas próprias existências e, nesse sentido, buscando ser coerentes com o que viam e sentiam e pensavam, traziam em suas obras as fendas de que eram feitas, a ausência da cisão lógica que conferia exatidão à forma e, nesse movimento, deformavam coerentemente o simplesmente dado – nisto consistia o ato criador. Deste modo, não tendo suas obras reconhecidas no meio em que viviam, eram suas próprias existências que estavam em jogo, isto é: que eram negadas...
Retomemos o fiar do que dizíamos antes: falávamos da existência sensível como (i) elemento comum e (ii) lugar originário do pensamento e nos voltávamos para o que daí decorre em direção à verdade, bem como à divisão hierárquica engendrada pelo dualismo ontológico da tradição no que toca às formas de conhecimento e à experiência da verdade. Na perspectiva perseguida por Merleau-Ponty (1996, p. 61), apreendo-me “não como um sujeito constituinte transparente para si mesmo e que desfralda a totalidade dos objetos de pensamento e de experiências possíveis, mas como um pensamento particular, um pensamento engajado em certos objetos, um pensamento em ato, e é a este título que estou certo de mim mesmo”. Nestes termos, nenhum pensamento terá consigo o invólucro da exatidão, da explicação exaustiva do que quer que seja: haverá sempre uma diferença entre o dizer e a coisa dita. E nisto também somos iguais: na impossibilidade do dizer com fins de explicação total, de adequação duradoura (seria preciso dar um pulo fora do tempo e, decerto, sermos sós, estarmos mortos. Motivos pelos quais tais empreendimentos – a explicação total e a adequação duradoura – não existem); tanto quanto, somos iguais, na disposição para a fantasia, para a ilusão quando dos nossos impulsos de suficiência explicativa – e de contenção do tempo, que é a trama do sensível que se move.
Pois sim, “a coisa mais certa de todas as coisas / Não vale um caminho sob o sol” (VELOSO, 1978). O caminho nos dá à experiência imediata da totalidade: a “simplicidade de um passo”, dirá Merleau-Ponty (2008, p. 106), “efetua (...) um somatório infinito de espaços e instantes”. Caminhando, por vezes, indagamos nossas certezas, transformamo-las – elas também inseridas no tempo dos nossos passos. E, parece-me, o encontro autêntico com outrem é o motivo da transformação: uma flor, uma dor, um amor, em resumo, outrem, qualquer um que encontro me dá a mim mesma e (dando-me a mim) existe, é presença ativa, isto é: ecoa em meus esforços de compreensão; dá-me, por vezes, a certos deslocamentos.
É, decerto, a partir de tal compreensão que Castoriadis (1990), em elogio a Merleau-Ponty, diz podermos afirmar que o pensamento “não é um; diz-se multiplamente e é multiplamente” (p. 77). Isto nos lembra a afirmação de Merleau-Ponty (1989), no Elogio da Filosofia, de que não há um “lugar da verdade, onde dever-se-ia ir procurá-la a todo o custo, quebrando até as relações humanas e os laços de vida e de história. A nossa relação com a verdade passa pelos outros. Ou procuramos a verdade com eles, ou não é para o verdadeiro que nos dirigimos” (p. 37). Tal perspectiva coloca em questão um sentido de poder fundado na inteligibilidade absoluta: poder do eu puro e auto-centrado; poder de fechar-se - na pretensão de plenitude -, ser em si, a despeito do mundo e dos outros; poder de absolutização da verdade e, com isso, de prescrição absoluta, totalizadora; enfim, interpela os preceitos da consciência transcendental e do pensamento objetivo quando da pretensão de suficiência dos seus alcances.
Decorrem deste vício operativo da reflexão disposições, muitas vezes bem intencionadas, que acabam por colocar uma ideia inexistente e insistir nela contra uma sociedade real, isto é, submeter o existente a fim de poder sustentar uma ideia que possa totalizá-lo numa explicação. Tais disposições – sejam elas conformadas num indivíduo, num grupo ou numa organização –, sempre entusiasmadas demais em afirmar a absoluta verdade e eficácia daquilo que propõem, na maioria das vezes preferem chamar de fracas – ou imaturas, por não terem feito ainda a devida reflexão – aquelas disposições dissonantes que, assentadas na complexidade de que é feita a vida, não se alinham a certas vias (únicas) de prescrição – do sentido, do pensamento, da ação. Ah! De costume, aquelas também clamam submissão – de um sentido a outro, de um pensamento a outro, de uma ação a outra, de uma organização a outra. É que existe uma ordem hierárquica em suas formulações.
A retomada crítica das perspectivas do pensamento clássico em relação ao sensível, porém, não pretende afirmar que a tradição o tenha negado (negado a corporeidade) por uma “decisão”. Mas busca compreendê-la como desdobramento do acontecer do próprio Ocidente com bases na metafísica clássica de que falamos rapidamente acima.
De fato, para o pensamento clássico, o sensível não é desprovido de qualquer possibilidade de sentido, não é radicalmente negado, mas o que se coloca em marcha é a sua destituição como o lugar originário de sentido e acesso à verdade, a qual se poderia tomar como fonte e norte dos nossos pensamentos, interpelações e ações. Ou seja, o pensamento clássico reconhece o sensível, e com ele a contingência e a mutabilidade, mas para corrigi-los. Portanto, os apreende negativamente com a esperança de ultrapassá-los, ainda que seja ao modo da moderação – a esperança aqui pode ser tomada como desejo, porque enveredada racionalmente, e, em última instância, como um certo delírio (ou fantasia), porque desejo de ultrapassamento do inexorável. Esta maneira de pensar vai conformar, de diferentes modos, mas sob a mesma égide, um longo percurso na tentativa, frente a novas interrogações, de dar resposta a questões basilares que nos transpassam vida afora: a contingência e a permanência; o amor, o poder, a experiência da obra de arte, a necessidade, o milagre da coexistência e a morte...
A dualidade e sua consequente dicotomia assumem conotações valorativas: a força, a virtude – numa palavra, a verdade – estará naquele que exerce o curioso feito de “isolamento” do corpo, do seu chamariz ao efêmero, às paixões, às coisas inseguras e múltiplas – porque não se deixam segurar, pulsam, e quando pulsam acendem-nos uma clareira que nos faz ver e ver-nos imersos num entrelace sem fim, do qual não temos posse total e pelo qual se tem que responder o tempo todo, não nos deixa descansar: há sempre algo a fazer, a querer viver, a morrer, a nos fazer decair, nos desestabilizar –; naquele, pois, que se desocupa das coisas miúdas, díspares e dissonantes às quais o corpo insiste em nos lembrar. Segue-se que da ontologia dualista se dará ao sensível uma conotação, no mais das vezes, de pouca importância – frágil, por assim dizer – no que se refere à tarefa do pensamento, à ocupação com a verdade.
Com Merleau-Ponty (2002, p. 34-35), podemos dizer, o motivo desta concepção é
que eles estão convencidos de que existe um homem rematado destinado a ser “senhor e possuidor” da natureza, como dizia Descartes, capaz assim, por princípio, de penetrar até o ser das coisas, de constituir um conhecimento soberano, de decifrar todos os fenômenos e não somente os de natureza física, mas ainda aqueles que a história e a sociedade humanas nos mostram, de explicá-los por suas causas e finalmente de encontrar, em algum acidente de seu corpo, a razão das anomalias que mantêm a criança, o primitivo, o louco, o animal à margem da verdade. (...) Numa tal perspectiva, as anomalias de que falamos não podem ter senão o valor de curiosidades psicológicas, às quais, com condescendência, cede-se um lugar num canto da psicologia e da sociologia “normais”.
Agora, a caminho do fim, retomemos Cézanne, a quem fizemos uma breve referência há pouco. E o façamos agora no intento de uma vez mais nos voltarmos para a recusa merleau-pontyana da cisão entre sensível e inteligível correlata ao dualismo ontológico e epistemológico, da arte como representação menor ou do sensível como inferior ao conceito. Cézanne, dirá Merleau-Ponty (1996, p. 18-19) em referência à dúvida – e à escolha – do artista,
não acreditou ter que escolher entre a sensação e o pensamento, como entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo por uma organização espontânea. Não estabelece um corte entre “os sentidos” e a “inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. (...) Cézanne não quis “pintar como um bruto”, mas colocar a inteligência, as ideias, as ciências, a perspectiva, a tradição novamente em contato com o mundo natural que elas estão destinadas a compreender, confrontar com a natureza, como ele diz, as ciências “que saíram dela”.
DOS REBENTOS DE UM TEMA ASSIM
Por fim, retomando a indagação que lá no início dissemos acompanhar a tessitura destas ligeiras reflexões, qual seja, aquela que pergunta se uma efetiva conduta interrogativa que tome o sensível como solo nos levaria a uma revisão daquilo que habitualmente entendemos por filosofia e se haveria em tal conduta um significado ético, digo-lhes que sim. Tomemos como referência para tal afirmação a própria filosofia de que aqui nos ocupamos, aquela de Merleau-Ponty.
Ao acompanharmos o percurso desencadeado pelo filósofo francês, suas interpelações e sua démarche, vemos uma filosofia cuja essência, isto é, os traços sem os quais não existiria, é o pensamento da experiência, e com isso a abertura; a memória – que faz tomar a tradição e a reinterpretar -; e o diálogo – em cujo cerne a verdade habita. Isto nos remete ao reexame da própria filosofia: a vida da filosofia e, com isso, a sua dessacralização, seu deslocamento de pretensos lugares fixos. “A filosofia [dirá] é uma atitude no mundo, não uma abstenção, ela não está reservada, de forma alguma, ao filósofo de profissão, e ele a manifesta fora dos seus livros” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 307).
Ao contemplarmos o sentido que o filósofo atribui à tarefa filosófica, tanto quanto às noções de pertencimento, coexistência e mundo comum engendradas na sua filosofia e consumadas no exame que faz do corpo e da percepção, vemos que o sentido do novo encaminhamento dado às questões que concernem a estes núcleos de tematização guarda implicações éticas. Com isto dizemos que há na filosofia merleau-pontiana uma ética intrínseca na medida em que o filósofo assume as consequências da radicalidade dos seus núcleos basilares de investigação – pertencimento, coexistência e mundo comum – em sua própria conduta filosófica – chamemos a isto de uma ética latente. Ao tempo que, noutra inscrição – aquela da tematização conceitual –, compreendemos que tais núcleos nos dão elementos para a tematização de uma ética de caráter não normativo, não apriorística, e que se alarga, por assim dizer, para além do plano antropológico, dando-nos a pensar a sua dimensão ontológica, originária.
As compreensões (e mudanças de acento) desencadeadas por Merleau-Ponty no que toca a núcleos conceituais caros à filosofia moderna têm implicações na tematização de uma ética a partir da sua filosofia. Pensamos, por exemplo, que o sentido da ontologia indireta empreendida por ele – nos termos da irredutibilidade do Ser (do fluxo da vida) ao dito, em suma – guarda relações com uma ética originária e tem consequências caras na perscrutação do não apriorismo normativo que a caracteriza. Aqui – mas se trata de uma questão a ser melhor examinada – poderíamos mesmo falar de uma ética indireta, no sentido em que não pode ser expressa diretamente, no sentido em que está aquém da norma expressa. Uma ética implícita na criação e na abertura temporal ou, doutro modo, na indeterminação. Estas são a sua condição, posto ser a criação e a abertura temporal as ondulações da existência pelas quais a diferença vige, vive – donde falarmos em coexistência. Ora, é precisamente a coexistência a circunscrição ontológica da dimensão ética. Neste sentido, a experiência do ser é ética sem ser normativa, assim como – para retomar uma preleção de Franklin Leopoldo – é estética originariamente, sem o compromisso com as noções de arte e do belo cunhadas no séc. XIII.
Tratar-se-ia, tal ética indireta, do apelo mudo, do apelo do mundo tal qual compreendido em Merleau-Ponty (2009, p. 71): “apelo renovado e insistente de um mistério familiar [isto é, comum a todos] e inexplicável de uma luz que, aclarando o resto, conserva sua origem na obscuridade” – solo comum onde radica toda linguagem, todo pensamento e toda ação. Nesta perspectiva, a inscrição ontológica, originária, da conduta ética diz respeito, em última instância, a uma intuição – um horizonte de compromisso – e o que dela decorre implica ação – melhor: ela inspira ação. E sendo tal disposição ética não um dado, mas uma tarefa, ela é radicada na história, portanto no inacabamento. Tais traços não lhe são impedimentos, mas, ao contrário, condição.
Mas isso requer maior aprofundamento e está em via de investigação. Por ora fiquemos por aqui.
[i] A este respeito apontamos as seguintes obras de Merleau-Ponty: Le Roman et la métaphysique (1945), Le doute de Cézanne (1945), Le Cinéma et la nouvelle psychologie (1947), Le langage indirect et les voix du silence (1952), e L’Oeil et l’esprit (1961).
[ii] Lima Barreto “em certo sentido”, porque o seu sofrimento – e a sua loucura – se deveu, sobretudo, à auto-compreensão de que a rejeição da sua obra literária se enraizava na sua cor e na sua classe dissonantes do locus onde a literatura tinha o seu domínio – e isso implicaria outras considerações.
Referências
CASTORIADIS, C. Le dicible et l’indicible. In: L’Arc - Merleau-Ponty. Paris, nº 46, 1990, p. 67-79.
ESCOUBAS, E. La question de l’oeuvre d’art: Merleau-Ponty et Heidegger. In: RICHIR, M. e TASSIN, E. (Org.). Merleau-Ponty: phénoménologie et expériences. Paris: Millon, 1992, p. 123-137.
MATOS DIAS, I. Fenomenologia, arte e sentir. In: SANTOS, J. M., ALVES, P. M. S. e BARATA, A. (Coord.). A fenomenologia hoje: Actas do primeiro congresso internacional da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002, p. 335-346.
MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimar, 2009.
____________. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 2011.
____________. Signes. Paris: Gallimard, 2008.
____________. Causeries. Paris: Seuil, 2002.
____________. Parcours deux: 1951-1961. Paris: Verdier, 2000.
____________. Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996a.
____________. Le Primat de la Perception et ses Conséquences Philosophiques. Paris: Verdier, 1996b.
____________. Éloge de la philosophie. Paris: Gallimard, 1989.
NUNES, B. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
__________. Physis, natura – Heidegger e Merleau-Ponty. In: Natureza Humana. São Paulo, vol.6, no.2, 2004, p. 271-287.
VELOSO, Caetano. Força estranha. In: COSTA, Gal. Gal Tropical. Manaus: Universal Music, 1979.
AUTORA
*Vânia Vicente - Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora no campo da filosofia, fez seus estudos na UFAL, UFPE, USP e Univesité Paris 1. Em 2014, ingressou no programa de pós-doutorado (USP) com uma pesquisa intitulada Para pensar uma ética: filosofia e criação em Merleau-Ponty, cuja questão nuclear, a ética, e o filósofo-fonte, Merleau-Ponty, reúnem o objeto de investigação que a acompanha desde 2004. Nesta circunscrição, publicou, em artigos, os seguintes títulos: Mundo, percepção e coexistência - reflexões sobre ética a partir de Merleau-Ponty; Espinosa e Merleau-Ponty: o escopo de dois pensamentos, o corpo em suas procuras; O que pode o corpo?, e Corpo e ética.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017
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