Maria Simone Marinho Nogueira*
RESUMO:
Neste artigo temos como objetivo mostrar um pouco da filosofia de Simone Weil (1909-1943), buscando reflexões sobre a sua mística que se apresenta revestida profundamente pela ação e não só pela contemplação. Para tanto, dividimos o texto em três momentos: Percurso existencial; A experiência na fábrica e o malheur; e A mística - ação e contemplação. No primeiro momento apresentamos um pouco da vida da filósofa francesa, entendendo que sua filosofia é um reflexo da sua vida. Na segunda parte, sem deixar de lado a vida, apresentamos a experiência da fábrica e com ela um conceito fundamental na sua filosofia, o de malheur. Enfim, no terceiro, refletimos sobre a questão da mística no seu pensamento, procurando relacionar as categorias da ação e da contemplação.
PALAVRAS-CHAVE: Mística, Filosofia, Ação, Contemplação, Simone Weil.
INTRODUÇÃO
Ler os Escritos de Simone Weil (1909-1943) é como receber uma luz quando se está na escuridão: por um lado, ilumina lugares que não poderiam ser vistos na falta dela; por outro, temos a sensação incômoda de sermos atingidos por uma luz muito forte, como o prisioneiro da Alegoria da caverna[1], capaz de abalar as nossas certezas. Neste sentido, não conseguimos ver as ideias dessa filósofa francesa sem algum tipo de perturbação[2]. Também, como afirma Pérez: “A atração e o fascínio que ela costuma despertar se unem, em alguns casos, a uma negação ou indignação. É um personagem que não costuma deixar ninguém indiferente e que se torna incômoda por seu inconformismo e radicalidade” (PÉREZ, 2009, p. 76). Desta forma, concordemos ou não com o que ela nos apresenta, sua filosofia é por demais inquietante, não nos deixando indiferentes ao seu tom provocativo e sem concessões[3].
Como há filósofos/filósofas cuja obra não se separa de suas vidas e como a pensadora em apreço não é muito conhecida ainda nos meios acadêmicos filosóficos no Brasil[4], comecemos nosso artigo fazendo uma síntese da sua vida, procurando, ao mesmo tempo, projetá-la na sua filosofia[5]. Talvez em nenhum outro pensador a vida e a filosofia se relacionem tão estreitamente e de forma tão coerente, pois Simone Weil escreve aquilo que vive e cobra esta mesma coerência daqueles que escrevem. Assim, da mesma forma que critica o colonialismo e o capitalismo, critica também o comunismo e a ideia de revolução[6]. Na sua busca incessante pelo que ela chama de verdade, acaba se deparando com a tirania daqueles que sabem e, desta forma, percebe que só o uso da razão no gabinete de trabalho não é suficiente para entender, por exemplo, as causas da opressão operária e decide, por isso mesmo, fazer experiências concretas, como veremos. De qualquer modo, corremos sempre um risco quando lemos a sua biografia, pois, como afirma Martins:
Apesar da íntima conexão entre pensamento e vida em Simone Weil, podemos dizer que essa conexão forma uma unidade entre os vários aspectos contraditórios de sua jornada existencial e intelectual. Conhecer sua biografia é verdadeiramente fascinante,encanta tanto que pode facilmente nos levar a ficarmos apenas com seus dados biográficos e deixarmos de lado a sua reflexão filosófica, que é complexa, erudita, audaciosa, original e tem muitos elementos contraditórios (MARTINS, 2013, p. 29, destaque nosso).
Apesar de o fascínio que sua vida exerce sobre aqueles que tomam conhecimento dela, façamos, como dissemos acima, uma pequena apresentação da sua jornada existencial, acreditando, como todos os estudiosos do seu pensamento, que a sua vida nos ajuda a entender a sua obra.
PERCURSO EXISTENCIAL
Há uma vasta bibliografia sobre a vida de Simone Weil, mas a Obra de referência continua sendo aquela escrita por Simone Pétrement, La vie de Simone Weil, publicada em 1973 [7]. Além disso, a própria Simone Weil nos diz muito da sua vida nos seus textos, sobretudo nas inúmeras cartas que escreve aos seus amigos e aos seus familiares, como podemos ler na Carta de 17 de abril de 1943, quatro meses antes da sua morte e endereçada aos pais:
Eu gostaria muito de saber se vocês estão bem de saúde e sem problemas de dinheiro. Que vocês sejam capazes de gozar verdadeiramente, e plenamente, do céu azul, do nascer e do pôr do sol, das estrelas, da pradaria, do eclodir das flores, da folhagem e das crianças. Em todo lugar onde haja uma coisa bela, pensem que eu estou lá. Eu me pergunto se há rouxinóis americanos? (WEIL, 1957, p. 234 [nossa tradução])[8].
Da doçura e da preocupação com a família, que está em Nova York fugindo do nazismo[9], ao trabalho na escola como professora e também na fábrica como operária, passando pela crítica ao marxismo e aos partidos políticos, isso para não falar do seu interesse pela matemática e pelas ciências, a paixão pelos gregos antigos, a redação de poemas e tragédias, as leituras da literatura hindu e budista (e também dos mitos e do folclore de culturas diferentes da sua) até a experiência mística (não esqueçamos as duras críticas que fez à igreja católica), e a forma intempestiva com que tratava alguns dos seus contemporâneos, tudo isso constitui, com todas as suas contradições, a filósofa Simone Weil[10].
Nasce em Paris em 3 de fevereiro de 1909, numa família burguesa de judeus não praticantes e como ela mesma diz em uma das suas cartas, foi criada num completo agnosticismo. Seu pai era médico e sua mãe dona de casa, ambos se responsabilizaram pela educação inicial dos filhos devido aos anos instáveis da primeira guerra mundial. Simone tinha um irmão, André, que se tornou um matemático eminente. Na juventude Simone Weil entra para o Liceu Henri IV e estuda com o famoso professor e filósofo Émile Chartier[11], que adotou o pseudônimo de Alain e este desenvolveu um papel importante e determinante na forma como Simone fazia filosofia[12]. Depois ela vai estudar na Sorbonne, onde também estudava uma outra Simone, de Beauvoir. Ambas tiveram o mesmo orientador no trabalho de agrégation, Leon Brunschwing, mas Weil estudou Descartes e Beauvoir, Leibniz. Em 1927 a França abre a possibilidade de as mulheres fazerem parte do corpo docente dos Liceus e as duas Simone(s) prestam exames para Filosofia Geral e Lógica. Weil fica em primeiro lugar e Beauvoir em segundo. Antes disso, um dia Simone de Beauvoir resolve se aproximar de Simone Weil e assim nos relata o encontro:
[...] Ela me intrigava, por causa de sua grande reputação de inteligência e de sua maneira estranha de se vestir; [...] Uma grande fome acabava de devastar a China e tinham me contado que, sabendo desta notícia, ela havia soluçado: estas lágrimas forçaram meu respeito mais ainda que seus dons filosóficos. Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui um dia aproximar-me dela. Não sei mais como a conversa aconteceu; ela declarou com um tom cortante que uma só coisa contava hoje sobre a terra: a revolução que daria de comer a todo mundo. Eu retruquei, de maneira não menos peremptória, que o problema não era fazer a felicidade dos homens, mas encontrar um sentido para sua existência. Ela me cortou: “Bem se vê que você jamais teve fome” disse ela. Nossas relações pararam aí. Eu compreendi que ela me havia catalogado como “uma pequena burguesa espiritualista”, e isso me irritou... Eu me acreditava alforriada de minha classe (BEAUVOIR apud BINGEMER, 2007, p. 117)[13].
O testemunho de Beauvoir mostra-nos uma Weil intempestiva, mas, ao mesmo tempo, capaz de uma grande compaixão pela dor alheia, independente de pertencer ou não a sua cultura: o problema da fome é uma questão social que acompanha desde muito cedo o pensamento weiliano[14]. Além disso, e apesar da “suposta arrogância” com que foi tratada, Beauvoir reconhece em Weil um coração capaz de bater através do universo inteiro, e isso ela invejava/admirava, pois sabia do seu ascetismo, da sua coragem e dos seus pequenos gestos em favor dos menos favorecidos. Sabia, por exemplo, que apesar de nascer numa família de boas condições financeiras, Weil vivia de forma modesta com o seu salário de professora e que doava todos os meses boa parte do que recebia para os mais pobres, como já dissemos em nota.
Quando começa a ensinar filosofia no Liceu de Puy tem os seus primeiros contatos com os sindicatos e logo se solidariza com os mineiros de Saint-Etienne e com os desempregados. Participa de manifestações em favor deles e chega a ir à Prefeitura exigir a criação de um fundo para ajudá-los. Não demora muito é transferida de escola. Antes disso, porém, na folga das aulas, se dirige aos operários e dá aulas para eles gratuitamente. Nas férias, vai com os pescadores para o alto mar e dá aulas para estes também. Como o ensino de Simone não agrada e como também tem uma saúde frágil, acaba passando por vários Liceus, sem deixar de lado os movimentos sociais e sempre alimentando a ideia de ser operária[15].
A EXPERIÊNCIA NA FÁBRICA E O MALHEUR
Com vinte e cinco anos, e depois de conseguir uma licença de um ano do seu trabalho como professora de filosofia, ela consegue, com a ajuda de um amigo, o emprego na fábrica como operária. Naturalmente que a família e os amigos mais próximos não concordaram com essa ideia, mas a discordância não foi suficiente para impedir Simone de fazer a experiência da miséria humana. Em princípio a filósofa francesa queria fazer a experiência da fábrica para responder algumas questões para as quais o trabalho apenas de gabinete não oferecia soluções, dentre eles, como achar um equilíbrio entre a organização de uma sociedade industrial com as condições de trabalho de um proletariado livre. Mas o ser pensante de Simone se esfacela diante das duras condições de trabalho, como ela nos relata em La condition ouvrière:
O esgotamento termina por me fazer esquecer as verdadeiras razões da minha estadia na fábrica.Torna quase invencível para mim a tentação, a mais forte que comporta esta vida: aquela de não mais pensar, único meio de não mais sofrer. É somente no sábado à tarde e no domingo que me retornam as lembranças, farrapos de ideias, que eu me lembro de que também sou um ser pensante (WEIL, 1951, p. 51, [tradução nossa])[16].
Parece quase impossível para Simone Weil realizar o que ela queria na fábrica: pensar sobre as condições do trabalho. O que resta do ser pensante da nossa filósofa são apenas farrapos de ideias que lhes vem ao final de semana. Na fábrica o ritmo da produção é acelerado, como ela nos informa em outro trecho de La condition ouvrière. Muito rápido, cadenciado e, portanto, mecânico, o que a impedia de pensar. O ritmo do pensar filosófico, por sua vez, é mais lento e é difícil para alguém da filosofia realizar um trabalho sem reflexão[17]. Simone Weil não estava habituada a uma ação mecânica: além de não conseguir pensar, ela também não consegue dar conta do trabalho exigido. Como nos relata, o trabalho é por peça produzida (consequentemente o salário) e o ritmo é muito acelerado e pesado para a nossa filósofa: “Eu não as consigo ainda realizar, por muitas razões: a falta de hábito, minha falta de jeito natural, que é considerável, uma certa lentidão natural nos movimentos, as dores de cabeça e uma certa mania de pensar, da qual não consigo me livrar” (WEIL, 1951, p. 24, [tradução nossa]). Tudo isso faz com que Simone Weil mal ganhe para comer e pior, tudo isso se reflete no trabalho (também intelectual) que foi realizar na fábrica. Assim, na décima sexta semana como operária e num tom de desabafo e desânimo ela escreve: “Sinto profundamente a humilhação deste vazio imposto ao pensamento” (WEIL, 1951, p. 58, [tradução nossa]).
Apesar deste vazio e do cansaço, termina sendo no seu trabalho como operária que Simone Weil, de alguma forma, descobre uma das categorias importantes da sua filosofia: o conceito de malheur. Esta categoria embora seja traduzida para nossa língua como infelicidade ou desgraça significa mais do podemos entender por esses termos. Tem a ver com o sofrimento físico, mas é muito mais do que isso. É um desenraizamento da vida (é quase uma morte). Alguém só é atingido mesmo por esta infelicidade quando isso o atinge em todas as partes da sua vida: sociais, psicológicas e físicas. É preciso que haja degradação social ou a angústia de uma tal degradação (cf., WEIL, 2005, passim)[18]. A pensadora francesa sente na carne, durante sua experiência na fábrica, o mallheur e assim o relata em uma das Cartas[19] ao Pe. Perrin[20] quando este ainda está em Marselha.
Depois do meu primeiro ano de fábrica, antes de retomar o ensino, os meus pais levaram-me a Portugal, e aí separei-me deles para ir sozinha a uma pequena aldeia. Tinha, de algum modo, a alma e o corpo em pedaços. Aquele contacto com a infelicidade havia matado a minha juventude. Até essa altura, não tinha tido a experiência da infelicidade, senão da minha própria, que, sendo minha, me parecia de pouca importância, e que ademais era apenas uma semi-infelicidade, pois era biológica e não social. Sabia bem que havia muita infelicidade no mundo, estava obcecada por isso, mas nunca o tinha constatado através de um contacto prolongado. Na fábrica, confundida aos olhos de todos e a meus próprios olhos com a massa anônima, a infelicidade dos outros entrou na minha carne e na minha alma. Nada me separava dela, porque tinha realmente esquecido o meu passado, não aguardava qualquer futuro e dificilmente conseguia imaginar a possibilidade de sobreviver àquelas fadigas. O que aí sofri marcou-me de forma tão duradoura que, ainda hoje, quando um ser humano, seja ele qual for, e não importa em que circunstâncias, me fala sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que se deve ter enganado e que o engano vai certa e infelizmente desfazer-se. Recebi aí e para sempre a marca da escravatura, como a marca do ferro em brasa que os romanos impunham na fronte dos seus escravos mais desprezados. Depois disso, passei a olhar-me sempre como escrava (WEIL, 2005, p. 59-60 [destaques nossos]).
Como podemos perceber, somente quando a infelicidade dos outros entra no seu ser, quando ela se sente parte de uma massa anônima, e tem consciência disso, pode afirmar a dor do malheur, ou seja, ela própria já dissera, trata-se de uma profunda degradação física (sente o malheur do outro), social (não se existe mais, posto que se faz parte da massa anônima dos invisíveis do mundo) e psicológica (se tem a consciência da degradação, no sentido mais profundo do termo). No entanto, o que nos anos anteriores e durante a sua experiência na fábrica parece ser visto aparentemente sob o aspecto social, começa a ser enxergado, também, sobretudo nos últimos anos de sua vida e principalmente depois do que ela chama seu encontro com Cristo[21], por um viés fortemente místico. Entendamos, não se trata de fazer uma análise social e depois uma análise mística, como se de duas dimensões irredutíveis se tratasse. Nossa leitura em relação à autora exposta é de que ação (normalmente atribuída ao engajamento social) e contemplação (atribuída normalmente à mística) são os dois lados de uma mesma moeda na filosofia weiliana[22]. Assim, como afirma Silva: “A mística iluminava o seu envolvimento político e este transportava para a mística a densidade do sofrimento humano, sempre numa grande e rigorosa ascese no caminho da verdade em direcção a Deus” (SILVA, 2009, p.7).
Mas antes de pensarmos um pouco mais sobre isso, terminemos o percurso que iniciamos sobre a vida de Simone Weil que continua nesta parte do nosso artigo. Depois da experiência na fábrica, ela inicia sua trajetória mística, como já mostramos um pouco, não sem fazer outras atividades para além do seu interesse pela mística e mantendo sempre a sua postura social e política que sempre a marcou. Por exemplo, em meio a esse percurso espiritual volta a lecionar no Liceu, desta vez no de Bourgues; passa dois meses em Barcelona,de onde vai depois para o front de Aragon, lutar, juntamente com os anarquistas, na guerra civil espanhola[23]. Depois de um ano de licença por motivos de saúde, ensina no Liceu de Saint-Quentin. Depois dos anos de 1938 vai para a África, precisamente para Casablanca, volta para Paris e daí para Marselha onde deve pegar um navio com a família para os Estados Unidos[24]. Depois, como já dissemos, segue para Londres, onde morre no Sanatório de Ashfordem 24 de agosto de 1943, aos 34 anos, vítima de tuberculose pulmonar[25].
De saúde frágil e se alimentando mal, Simone não consegue realizar o seu objetivo vindo para Londres que era o de voltar para a França ocupada e lutar junto com os seus compatriotas. Mesmo assim, como já dissemos, se junta à Resistência Francesa em Londres, mas se limita a fazer um trabalho muito burocrático, o que era muito difícil para alguém que sempre se recusou em ser uma filósofa apenas de gabinete. Assim, em forma de compaixão para com aqueles que ela deixou na França, a última ação de Simone Weil foi quase uma não ação, ou seja, já certa de que não voltaria para a sua terra, ela resolve se alimentar apenas com a quantidade de ração servida aos soldados franceses que resistiam às tropas de Hitler. Foi a maneira que esta figura indefinível encontrou de unir o seu sofrimento ao sofrimento dos soldados franceses e de pensar, de alguma forma, que num gesto como este, ela se esvaziava de si mesma fazendo com que Deus se afastasse do céu e ela da terra, isto é, une na sua filosofia, por demais contraditória e desconcertante, a mística da ação e da contemplação.
A MÍSTICA: AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO
Passemos agora, depois de apresentarmos a vida de Simone Weil, mesmo acreditando que já a projetamos na sua filosofia, enveredar por alguns aspectos da sua mística no intuito de demonstrarmos um pouco mais o aspecto contempl(ativo) do seu pensamento, já que muito da sua ação já foi demonstrada. Comecemos, pois, definindo a mística: “A mística é a passagem para além da esfera onde o bem e o mal se opõem, e isto pela união da alma com o bem absoluto” (WEIL,1957, p.184, [tradução nossa]). A mística de todos os tempos e de todas as culturas é sempre a união do humano com o divino, independente de que forma esse divino seja nomeado. Além disso, foge da ideia de bem e mal, no sentido de que está sempre além dessas formatações, não só porque dois se tornam um e este um está no plano daquilo que nos ultrapassa, como também porque é preciso transgredir os limites de uma certa linguagem, aquela própria do princípio de não-contradição. Assim, num outro texto, A espera de Deus, Simone afirma que a linguagem dos místicos é a do amor: “É também muito injusto que se censure, por vezes, aos místicos o emprego da linguagem amorosa. São eles seus legítimos proprietários. Os outros não têm direito senão de tomá-las de empréstimo” (WEIL,2005, p. 175). A linguagem dos místicos está no plano da lógica do amor, onde os contraditórios coincidem e, assim, Deus é humano e divino, uno e trino, forte e fraco (segundo Simone, a força de Deus está na fraqueza do seu amor)[26].
É esta fraqueza do amor, segundo Weil, que faz com que a criação não seja uma demonstração de poder, mas de renúncia, e isto faz de Deus não um soberano sem obrigações, todo-poderoso, mas um mendicante que o aproxima dos miseráveis do mundo (ou por isso os miseráveis do mundo se aproximam de Deus), como podemos ler nesse passo dos Écrits de Londres e dernières lettres:
O ato da criação não é um ato de poder. É uma abdicação. Por este ato se estabelece um outro reino em relação ao reino de Deus. A realidade deste mundo é constituída pelo mecanismo da matéria e da autonomia das criaturas racionais. É um reino de onde Deus se retirou. Deus, tendo renunciado a ser o rei, não pode aqui voltar senão como mendicante (WEIL, 1957, p.184, [tradução nossa]).
Ou ainda, como aparece em A espera de Deus:
A criação é da parte de Deus um acto não de expansão de si, mas de retraimento, de renúncia. Deus e todas as criaturas, isso é menos do que Deus apenas. Esvaziou-se desde então nesse acto da sua divindade; [...] Deus permitiu que existissem outras coisas, coisas distintas dele e valendo infinitamente menos do que Ele. Pelo acto criador, Ele negou-se a si mesmo, tal como Cristo nos prescreveu que nos neguemos a nós mesmos. Deus negou-se em atenção a nós para nos dar a possibilidade de nos negarmos por Ele. Esta resposta, este eco, cuja recusa depende de nós, é a única justificação possível para a loucura de amor do acto criador. (WEIL, 2005, p.152, [tradução nossa]).
Ora, a abdicação de Deus é, ao mesmo tempo, um fenômeno místico e político. Místico porque o termo, relacionado a outras categorias como vazio, distância, atenção, despojamento, amor, nos faz compreender um deus que não se impõe às suas criaturas e que até, pelo seu amor, pode ser mais fraco do que elas, quando Simone afirma que nós podemos odiar a Deus, mas Ele não pode nos odiar e, nisso, infelizmente, nós somos mais fortes do que ele[27]. O que ela também nega com a ideia do vazio ou da abdicação é a ideia de um Deus-Objeto (objetivável)tão comum em algumas religiões e dificilmente aceito pela mística[28]. Daí a frase de Mestre Eckhart, caro ao pensamento de Simone, peço a Deus que me livre de Deus. Do ponto de vista político,a abdicação de Deus significa a ideia de um Deus que renuncia ao poder de ser rei e por isso se torna mendicante. Renunciar a ser rei implica, aqui, em não ser um tirano, em não se impor pela força. Como nos mostra muito bem Nicola e Danese:
Simone viu melhor que qualquer outro a contradição principal da fraqueza do Onipotente. [...] Ela serve de ajuda para a descoberta de um Deus fraco por amor, inaceitável para as culturas dos lugares e dos homens fortes da história. Anuncia, por isso, não o fim da religião, mas do Deus proprietário. [...] O Deus com semblantes humildes muda a imagem da soberania na Cruz na qual é pregado o Onipotente derrotado pelas violências do mundo. Trata-se do mistério que atinge especialmente a época contemporânea, a qual, ao exaltar a força, fica atordoada diante do poder da fragilidade. [...] Essa imagem exprime bem a aspiração à recusa da força, seja ela do Estado, com os seus aparatos de poder, seja da razão, com os seus paradigmas, seja da fé, com os seus dogmatismos (NICOLA e DANESE, 2003, p. 242-243).
Conhecemos bem a crítica weiliana a todo e qualquer tipo de poder que oprime, por isso, como diz Nicola e Danese, somente um Deus alternativo à lógica do poder que domina o mundo atrai Simone, e nós acrescentamos que esse Deus é o Deus apresentado na sua mística, é o Deus que ela “define” paradoxalmente como infinitamente pequeno. Une, o que nos parece ser uma tendência na sua filosofia, a ação e a contemplação quando escreve: “[...] A diferença é infinitamente pequena entre um regime de trabalho que abre aos homens a beleza do mundo e um outro que fecha, mas esse infinitamente pequeno é o real” (WEIL, 1957, p.104, [tradução nossa]). Faz questão de nos apresentar um Deus que mostra a sua presença na sua ausência e consequentemente na sua fragilidade diante das dores do mundo. Mesmo assim um Deus de justiça, posto que esta é para Simone a coincidência de duas vontades, como lemos no passo a seguir:
Quando dois seres humanos têm que fazer juntos, e quando nenhum tem o poder de impor ao outro seja o que for, é necessário que se entendam. Examina-se então a justiça, pois apenas a justiça tem o poder de fazer coincidir duas vontades. Ela é a imagem desse amor que em Deus une o Pai e o Filho, o pensamento comum daqueles que pensam separadamente. Mas quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se passa como quando um homem manipula a matéria. Não há duas vontades a fazer coincidir. O homem quer e a matéria sujeita-se, o fraco é como uma coisa (WEIL, 2005, p.149-150).
É exatamente contra a coisificação do ser humano, sobretudo dos miseráveis (os atingidos pelo malheur) que vemos na filosofia weiliana uma mística da compaixão[29] por meio da qual ação e contemplação se unem nas categorias do vazio, da atenção e da descriação. Como ela escreve em A espera de Deus: “Aquele que, ao ver um infeliz, transporta até ele o seu ser, faz nascer nele por amor, ao menos por um momento, uma existência independente da infelicidade”(WEIL, 2005, p. 134). Ora, fazer essa “transferência” só é possível se aquele que transporta o seu ser se esvaziar de si mesmo, como Simone Weil deixa claro na sequência quase imediata da citação acima: “Esses, ao transportarem o seu próprio ser até ao infeliz que socorrem, introduzem nele, de facto, não o seu próprio ser, porque não o têm mais, mas Cristo ele mesmo” (WEIL, 2005, p. 134).
Mas, para que ocorra este esvaziamento, é necessário um exercício de atenção. Esta é colocada por Simone como um esforço, porém um esforço negativo, já que o pensamento não deve procurar nada, mas deve estar pronto a receber. É o que a pensadora francesa chama também de atenção criadora e que consiste em se prestar atenção ao que não existe[30], ou seja, aos miseráveis do mundo. É também contra os rótulos e, portanto, contra a tirania da objetivação que ela se coloca, nos mostrando, ao mesmo tempo, que o malheur(a infelicidade, a desgraça) pode atingir qualquer um de nós:
A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: «Qual é o teu tormento?» É saber que o infeliz existe, não como uma unidade numa coleção, não como um exemplar da categoria social etiquetada «infelizes», mas enquanto homem exatamente semelhante a nós, que foi um dia atingido e marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para isso é suficiente, mas indispensável, saber pousar sobre ele um certo olhar. Este olhar é em primeiro lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia tal como ele é, em toda a sua verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de atenção (WEIL, 2005, p. 105-106).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do exposto,procuramos apresentar a filosofia de Simone Weil como sendo também uma mística e mostrar que esta mística, por sua vez, se revela como um todo composto de dois momentos indissociáveis: ação e contemplação. Isso, por si só, se configura em vários problemas.O primeiro deles consiste em fazer uma reflexão da filosofia como mística ou da mística como filosofia, quando, na própria história da filosofia há quem acolha e há quem rejeite a mística. Para os mais cartesianos ou aristotélicos – não necessariamente para Descartes e Aristóteles – a mística deve ser rejeitada, pois não se presta a grandes sistemas, tem uma linguagem paradoxal e parece dizer coisas sem sentido. Se, por um lado, este comportamento mais defensivo é compreensível, posto que a filosofia nasce sob o signo da razão em contraposição ao mito; por outro, não se justifica na sua plenitude pelo simples fato de a filosofia, desde o seu nascimento, buscar a visão do todo e isso deve incluir também, dentre outras coisas, pensamentos assistemáticos, linguagens simbólicas, paradoxais e, principalmente a ideia de que o ser humano (consequentemente aquilo que ele pensa) é um todo, composto não só de razão, mas também de sensibilidade.
A mística weiliana – e não só a dela – valoriza todos esses últimos aspectos, sem desmerecer, naturalmente, a razão. Mas de que razão nos fala Simone e os místicos de todos os tempos? De uma razão não instrumental, isto é, de uma razão que não necessita da fraqueza do outro para demonstrara sua força. Assim, a mística da nossa autora é uma forma de pensar que se coloca contra todas as tiranias, inclusive a da razão enquanto instrumento de dominação. Neste sentido, a mística de Simone é transgressora e a transgressão é uma característica marcante da filosofia. Logo, por mais rejeição que haja na história da filosofia em relação à mística, pensamos ser possível falar de uma filosofia que se realiza enquanto mística, entendendo que esta pode ser vista muito mais do que apenas sob seu aspecto religioso. Os que acolhem a mística na história da filosofia, por exemplo, enxergam nela uma alternativa de superação da metafísica, assim como um abalo das certezas das suas razões, fazendo da mística um pensamento muito mais coerente quando se trata do homem contemporâneo do que o que nos ofereceu a filosofia das luzes na modernidade.
Já no que diz respeito à ação e à contemplação na mística weiliana, entendemos que, apesar da sua trajetória existencial nos oferecer elementos suficientes para justificar o seu engajamento social e a sua luta em favor dos menos favorecidos, isso apenas não basta para justificarmos a sua mística como uma mística da contempl(ação)[31]. É preciso analisar a sua escrita (os seus textos) para podermos comprovar a ação e a contemplação como movimentos que caminham juntos e formam o todo da sua mística de forma indissociável (o que aqui apenas introduzimos). Ora, o que a literatura sobre este tema nos mostra é que a mística ilumina a sua ação política e social e que esta, por sua vez, esclarece elementos do seu pensar místico. No entanto, não se trata apenas de ver a obra de Simone Weil do final para o início, no sentido de ler seus primeiros textos à luz dos últimos (em que se intensifica a sua vertente mística), mas de encontrar, já nos primeiros textos, aspectos místicos que serão melhor desenvolvidos nos textos mais especificamente dedicados à mística. Logo, o que procuramos aqui, ainda que de forma introdutória, além de dar a conhecer um pouco mais do pensamento de Simone Weil, foi deixar elementos para reflexão de que sua filosofia se realiza, também, como uma mística da ação,como podemos ler nas palavras weilianas com as quais encerramos nosso texto:“Que o homem não só saiba o que faz, mas se possível, que ele perceba o uso – que ele perceba a natureza modificada por ele. Que, para cada um, seu próprio trabalho seja um objeto de contemplação” (WEIL, 1996, p. 89).
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PUENTE, F. R. Exercícios de atenção: Simone Weil. Leitora dos gregos. Rio de Janeiro: Editora PUC/RJ e São Paulo: Loyola, 2013.
VETÖ, V. “Simone Weil e a filosofia”. In: BINGEMER, M. C. L. ; PUENTE, F. R. (orgs.). Simone Weil e a filosofia, 2011, p. 51-66.
WEIL, S. La connaissance sur naturalle. Paris: Éditions Gallimard, 1950 (Collection Espoir)
______. Écrits historiques et politiques. Paris: Éditions Gallimard, 1960. Partie I e II – Histoire et Politique, (Collection Espoir)
______.Écrits de Londres et dernières lettres. Paris: Éditions Gallimard, 1957
(Collection Espoir).
______. Lettre à unreligieux. Paris: Éditions Gallimard, 1951 (Collection : Livre de vie. Lesmeilleurs livres de viechrétienne).
______. Oppression et liberté. Paris: Éditions Gallimard, 1955, (Collection Espoir)
______. L’enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain.
Paris: Les Éditions Gallimard, 1949, (Collection idées).
______. A gravidade e a graça. Trad.de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos).
______. A espera de Deus. Trad. de Manuel Barreiros. Lisboa: Assírio e Alvim, 2005 (Coleção Teofanias).
______. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. 2. ed. rev., trad. de Therezinha Langlanda. Seleção e apresentação de Ecléa Bosi. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
*Maria Simone Marinho Nogueira - Possui Doutorado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba e Graduação em Filosofia e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É professora Efetiva do Curso de Filosofia da Univerdade Estadual da Paraíba e professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. É líder do Principium – Núcleo de Estudo e Pesquisa em Filosofia Medieval (UEPB/CNPq) e Pesquisadora do Apophatiké– Grupo de Estudos Interdisciplinares em Mística (UFF/CNPq). Desenvolve diversos Projetos de Pesquisa e Extensão e atualmente tem trabalhado com a produção feminina na História na Filosofia.
[1]Para usarmos a imagem de um filósofo que é por demais caro a Simone Weil. Cf. PLATÃO, A República, Livro VII, 514a – 518b.
[2] Maria Clara Bingemer, uma das maiores estudiosas da filosofia weiliana no Brasil, diz, em uma das suas muitas falas sobre Simone Weil, que a primeira vez que leu algo dela (o livro A gravidade e a graça), se sentiu como se um raio a tivesse atingido. Pensamos que a expressão usada pela professora Maria Clara diz muito sobre os Escritos da filósofa francesa.
[3] O estudioso italiano Paolo Farina abre um dos seus textos sobre Simone Weil com a frase “Uma filósofa sem concessões” (FARINA, 2009, p. 337).
[4] Para a filosofia weiliana no Brasil, veja-se BOSI, 2007, p. 67-74. Da mesma autora, um outro artigo publicado nos Cahiers Simone Weil, 2005, p. 29-33. Também, PUENTE, 2013.
[5] Como escreve Pérez: “[...] Nela se dá sempre uma clara sintonia entre a experiência e a escrita, entre pensamento e ação ou entre a vida e a obra. Razão que impede de abordar suas contribuições de forma exclusivamente sistemática e nos obriga a adentrar em sua vida para compreender sua obra” (PÉREZ, 2009, p. 78, destaque nosso). Neste mesmo direcionamento escreve Martins: “Em SimoneWeil há uma inseparável relação entre vida e pensamento. Não é possível compreender seus escritos sem conhecer sua trajetória existencial. Sua busca pela verdade passava por um profundo exercício da razão, do trabalho intelectual, sobre o qual ela diz ser sua vocação, e pelo reflexo coerente disso em sua vida prática, isto é, em todas as decisões, atitudes e caminhos que trilhava” (MARTINS, 2013, p. 28, destaque nosso).
[6] Para algumas dessas críticas cf. Écrits de Londres et dernièreslettres;Écritshistoriques et politiques; La conditionouvrière;Oppression et liberte;L’enracinement.
[7] Pétrement foi amiga de Weil e as duas estudaram juntas no Liceu e na Universidade. Para outras referências biográficas, veja-se NICOLA e DANESE, 2003; FIORI, 2009; e PERRIN e THIBON, 1953.
[8] Simone Weil faz todo um esforço para que os pais não se preocupem com o seu estado de saúde que não vai nada bem. No entanto, não se pense que nas Cartas que dirige aos pais e ao irmão André, Simone fale somente de coisas amenas. Continua preocupada com a ocupação da França pelos nazistas;focada em ajudar algumas pessoas e pede ajuda aos pais; mantém-se atentaà questão do colonialismo; da opressão proletária; do avanço do nazifacismo e fala do grupo da resistência francesa que há em Londres e de outros tantos temas que sempre fizeram parte da sua filosofia. Além disso, orienta os pais sobre a publicação de alguns dos seus textos, falando de algumas correções que precisam ser feitas ou, no caso da Carta que estamos citando, vem um P.-S., em que diz: “Decididamente, não é preciso publicar meus poemas na América” (WEIL, 1957, p. 234 [nossa tradução]) e alega que corrigirá ainda uma ou outra palavra.
[9] Simone só não está com os pais porque embarcou para Inglaterra. Mas antes, quando ainda estava em Nova York redige uma carta a Maurice Schumann, seu amigo, com quem estudara no Liceu, que está em Londres, trabalhando com a Resistência, e lhe pede ajuda para ir a Londres na esperança de entrar na França ocupada e ajudar os franceses. Se sente uma traidora da França quando vai para Nova York e assim se expressa na Carta de 30 de julho de 1942: “Me conforta [...], em fazer parte do sofrimento do país. Eu conheço bastante meu tipo particular de imaginação para saber que a desgraça da França me faria muito mais mal de longe do que de perto. [...] Além disso, tenho o sentimento que quando embarquei eu cometi um ato de deserção e eu não posso suportar este pensamento” (WEIL, 1957, p. 185 [nossa tradução]). Em Nova York mesmo ela redige um “projeto para enfermeiras de primeira linha” (que envia a um amigo da família, mas na Carta a Schumann ela já diz que se trata de uma missão perigosa). A descrição do projeto encontra-se nos seus Écrits de Londres et dernièreslettres. Segue o que escreve Nicola e Danese sobre isso: “Sonha vencer o desafio do totalitarismo não apenas num plano individual, mas com um corpo de mulheres capazes de partilhar o mesmo ideal. Redige por isso um “Projeto” para enfermeiras de primeira linha, de quem exigir uma virtude moral “de um gênero que não se adquire”, ou seja, com a disponibilidade sem reservas para morrer. Ela própria freqüenta um curso para enfermeiras no Harlem com essa finalidade. De Gaulle, depois de ter examinado o “Projeto para as enfermeiras” que Simone lhe envia, sentencia: “Essa mulher é maluca”” (NICOLA e DANESE, 2003, p.89).
[10] É bom esclarecermos que Simone Weil tinha uma mente privilegiada. Assim, lê Marx em alemão; os filósofos gregos e o Novo Testamento, em grego; e o Bhavagad Gita e os Upanishads, em sânscrito. Além disso, a sua abertura ao diferente, o que antecipa o tema do diálogo inter-religioso, fez com que ela se interessasse por gregos, hindus, cristãos e egípcios.
[11] “Ousava no método de ensino, pois exigia audácia e originalidade de seus alunos. Sua filosofia não era caracterizada pela construção de um sistema, mas por um método, e no centro de seu pensamento tinha a ideia do bem como a ideia suprema, de onde nascem todas as outras, e aquestão da vontade, que leva em si toda a vida do espírito, pois é na vontade que está o princípio da moral” (MARTINS, 2013, p. 47). Mais adiante nos acrescenta: “Antes de entrar no Liceu Henri IV, Simone estudou no Liceu Duruy, onde teve aulas com o professor René Le Senne. [...] um dos pontos-chaves do pensamento de Le Senne era a questão da contradição, e, graças ao seu ensino, Simone pôde dar atenção e importância à problemática das contradições, vendo-as como critério de verificação da falsidade ou da validade de todo real” (Idem, p. 49).
[12] Para os pensadores que influenciaram Simone Weil e também para as suas preferências e rejeições em relação à história da filosofia, leia-se VETÖ, 2011.
[13] Farina nos conta um outro episódio, desta feita com Claude Lévi-Strauss: “[...]Claude Lévi-Strauss, acusado numa entrevista de antifeminismo, reconhece que com algumas mulheres ele tem dificuldades: “[...] como com Simone Weil. Nós éramos estudantes na Sorbonne, juntos. Ela me irritava. Era impossível. Era sempre totalmente segura de ter razão [...]. Era frágil fisicamente, mas de certo não intelectualmente! Era belicosa. Uma cerebral pura”” (FARINA, 2009, p. 337).
[14] Alguns fatos da sua vida comprovam esta afirmação. Aos cinco anos se torna madrinha de um soldado e se priva dos doces para mandá-los ao front. É deselegante com Simone de Beauvoir, como já dissemos, pois considera que esta fala de questões secundárias e esquece as mais importantes, como a fome. Quando consegue o seu primeiro emprego como professora, doa parte do seu salário àqueles que têm fome. Apesar do gênio intempestivo, quando vai trabalhar como operária decide viver do seu soldo, que era por produção, como produzia pouco, mal dava para se alimentar (poderia pedir aos pais, mas queria sentir na pele os que sentem todos os que passam fome). Na sua experiência como vindimadora, conforme o testemunho do proprietário, comia pouco e fazia muitas perguntas. Um dia ele lhe ofereceu um pedaço de queijo e ela recusou dizendo que havia pessoas passando fome. Cf., biografias e comentadores já citados.
[15] Segundo Bingemer citando Pétrement: “Ela devia pensar que ali onde a reflexão teórica não encontrava solução, o contato com o objeto poderia sugerir uma. O objeto era a miséria à qual se tratava de encontrar remédio e solução. Mergulhada ela mesma dentro desta miséria, ela veria melhor que remédios são apropriados para saná-la. E, depois de tudo, era preciso conhecer tudo aquilo para poder falar sobre isso” (BINGEMER, 2007, p.119).
[16] Apesar de mal conseguir pensar, resta-lhe ainda algo, mesmo escrevendo num tom reticente:“Apenas o sentimento de fraternidade, a indignação diante das injustiças infligidas aos outros subsistem intactos – mas até que ponto tudo isso resistirá?”(WEIL, 1951, p. 51, [tradução nossa]).
[17] Para ela o trabalho deve ser criativo: “A grandeza do homem é sempre recriar sua vida. Recriar o que lhe é dado. Forjar aquilo mesmo que sofre. Pelo trabalho ele produz sua própria existência natural” (WEIL, 1993, p.201). Logo, para ela, o trabalho sem reflexão, sem poesia, sem luz, é opressão.
[18] Como ela escreve no seu texto O amor de Deus e a infelicidade, que se encontra no livro Espera de Deus: “O grande enigma da vida humana não é o sofrimento, é a infelicidade. [...] Aqueles sobre quem se abate um desses golpes depois dos quais uma pessoa se contorce no solo como um verme meio esmagado, esses não têm palavras para exprimir o que lhes acontece. De entre quem os encontra, aqueles que, mesmo tendo sofrido muito, nunca tiveram contacto com a infelicidade propriamente dita não fazem a menor ideia do que ela é. É algo de específico, irredutível a qualquer outra coisa, como os sons de que nada pode dar a mais pequena ideia a um surdo-mudo. E aqueles que foram eles próprios mutilados pela infelicidade não se encontram em condições de socorrer seja quem for e estão até quase incapazes de o desejar. Assim, a compaixão para com os infelizes é uma impossibilidade. Quando ela se produz realmente, é um milagre mais surpreendente do que a caminhada sobre as águas, acura dos doentes e mesmo a ressurreição de um morto” (WEIL, 2005, p.109-110)
[19] Esta Carta é considerada a Autobiografia espiritual de Simone Weil.
[20] Sobre Pe. Perrin nos esclarece Nicola e Danese: “[...] Pe. Perrin é o superior do convento, quase totalmente cego, dotado de grande sensibilidade humana e de vastos conhecimentos teológicos. Ele faz do convento um lugar de encontro de numerosos refugiados políticos, católicos e judeus. Simone está curiosa devido ao que disseram alguns amigos,[...] Logo se sente à vontade com ele. Simone visita o convento sempre que pode e pe. Perrin, mesmo depois da transferência para Montpellier, volta com frequência a Marselha para poder encontrá-la, antes que ela parta para a América do Norte. Ele é capaz de reconhecer a grande alma que se esconde naquele corpo frágil sob um vestuário deliberadamente desleixado. Nasce uma relação de fecunda amizade que une as almas no plano intelectual e espiritual e que nos deixou cartas entre as mais significativas e belas da história da literatura desse gênero. Sem as ler, ficamos alheios ao núcleo da experiência humana e mística de Simone” (NICOLA e DANESE, 2003, p. 76). Lembremos que Pe. Perrin é um dos responsáveis pela publicação de parte da obra de Simone Weil. Os outros dois são Gustave Thibon, que acolhe Simone em sua vindima e Albert Camus que em 1949 declara: “Parece-me impossível imaginar um renascer para a Europa que não tenha em conta as exigências definidas por Simone Weil” (GONÇALVES apud CAMUS, 1985, p. 9). Toda Obra da pensadora francesa foi publicada postumamente com a autorização da sua família (com exceção de alguns artigos que publicou em vida). Ao Pe. Perrin, além das Cartas que trocaram, Simone deixa alguns textos que ele publica (juntamente com as Cartas) sob o título AttenteDieu. A Thibon, Simone confia parte dos seus Cahiers e ele os publica sob o título La pesanteur et lagrace. O restante dos seus textos foi publicado por Camus, numa coleção intitulada Espoir, da editora Gallimard. Os textos organizados por Pe. Perrin e Thibon foram publicados em português, respectivamente: A espera de Deus e A gravidade e a graça.
[21] No seu percurso espiritual, temos, segundo a própria Simone: a experiência do cristianismo como religião dos escravos, tida na aldeia de pescadores em Portugal; a experiência religiosa na igreja de Santa Maria degliAngeli, em Assis, na Itália e a experiência deSolesmes, na França. Respectivamente nos anos de 1935, 1937 e 1938. Cf., WEIL, 2005, passim. Assim ela nos relata a sua experiência com Cristo, depois de recitar um poema (Love) dado a ela por um jovem religioso da abadia de Solesmes: “Foi no decurso de uma dessas recitações que, [...], o próprio Cristo desceu e me tomou”. E comenta depois: “Nos meus raciocínios sobre a insolubilidade do problema de Deus, não tinha previsto esta possibilidade, um contacto real, de pessoa a pessoa, aqui neste mundo, entre um ser humano e Deus. [...] Nunca tinha lido os místicos, porque nunca tinha sentido nada que me ordenasse que os lesse. [...] Deus impedira-me misericordiosamente de ler os místicos, a fim de que me fosse evidente que não tinha fabricado esse contacto absolutamente inesperado. No entanto, ainda recusei em parte, não com o meu amor, mas com a minha inteligência” (WEIL, 2005, p. 62).
[22] Aliás, são os dois lados de uma mesma moeda na maioria dos místicos, sobretudo as mulheres que, tanto na Idade Média quanto na Contemporaneidade, demonstram uma forte coerência entre contemplação e ação. Infelizmente o senso comum e também a Academia, possivelmente por desconhecimento dos textos dos pensadores místicos, também são da opinião de que a mística vive fora do mundo concreto.
[23] Pega em armas pela primeira vez. Até então era pacifista, mas acaba reconhecendo que não seria possível vencer o avanço de Hitler com flores. De toda forma, como nos relata, se decepciona também com os anarquistas.
[24] Não esqueçamos que nos anos 1930, Simone viaja para a antiga União Soviética, para conhecer de perto o comunismo soviético, e à Alemanha, para conhecer o Partido Comunista Alemão. Num congresso da C.G.T.U critica violentamente a ambos. Depois dessas viagens redige o texto Allons-nousverslarévolutionprolétarienne?
[25] Quanto à causa da morte, “A certidão de obtido reza: Insuficiência cardíaca... decorrente de desnutrição e tuberculose pulmonar. A defunta... provocou a morte ao recusar o alimento, por perturbação do equilíbrio psíquico”, no entanto, “não é possível confirmar a ideia de suicídio, seja porque os próprios pais pensam em outras causas, seja porque conhecemos a desolação de Simone como um estado constante, seja pela inutilidade da sua vida e pela impossibilidade de assumir um compromisso concreto, seja pelo fato de que até o fim escreve páginas admiráveis e lúcidas” (NICOLA e DANESE, 2003, p. 111).
[26] A contradição percorre toda a filosofia de Simone Weil e por isso talvez possamos afirmar que a sua filosofia é mística. Em A gravidade e a graça lemos: “As contradições em que o espírito esbarra, únicas realidades, critério do real [...] A contradição vivida até o âmago do ser é o dilaceramento, é a cruz. Quando a atenção fixada em alguma coisa nela tornou manifesta a contradição, produz-se como que um deslocamento. Perseverando nesse caminho, chega-se ao desapego.[...] Assim também toda verdade encerra uma contradição” (WEIL, 1993, p.107).
[27] Lembremos que nossa pensadora viveu no período de entreguerras, que viu o crescimento do nazifacismo e de outros totalitarismos. Além disso, sente na pele, na sua experiência como operária, a brutalidade dos que estão no comando. Logo, um Deus opressor, capaz de odiar aquilo que cria, não faz parte da “construção sobre o divino” em Simone Weil. O próprio Cristo é apresentado por ela como uma vítima do império da força.
[28] Como afirma Simone Weil: “Mas a vida inteira de todo um povo pode ser impregnada por uma religião que seja inteiramente orientada para a mística. Essa orientação unicamente distingue a religião da idolatria” (WEIL, 1957, p. 103, [tradução nossa]).
[29] Escreve Simone em La connaissancesurnaturelle: “Esse infeliz jazia na rua, meio morto de fome. Deus tem dele misericórdia, mas não pode lhe enviar o pão. Mas eu que estou aqui, felizmente eu não sou Deus. Eu posso lhe dar um pedaço de pão. É minha única superioridade sobre Deus” e acrescenta: “A misericórdia preenche este abismo que a criação estabeleceu entre Deus e a criatura” (WEIL, 1950, p. 294 e 54, respectivamente, [tradução nossa]). Sobre o tema mística da compaixão, cf., BINGEMER, 2015.
[30]“A atenção criadora consiste em prestar realmente atenção ao que não existe. A humanidade não existe na carne anónima e inerte à beira da estrada. O samaritano que se detém e olha, presta, todavia, atenção a essa humanidade ausente, e os actos que se seguem testemunham que se trata de uma atenção real” (WEIL, 1957, p. 103).
[31] Algumas vezes estamos grafando o nome contempl(ação) desta forma com o objetivo de mostrar que a ideia de ação já está contida na de contemplação, não só pela forma da grafia portuguesa, mas pelo sentido etimológico do termo contemplação, bastando para isso buscarmos o seu correspondente em grego.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 6 | vol. 1 | Ano 2017
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