Vinícius dos Santos*
Ao agir no mundo material, o homem cria um campo prático, em conjunto com outros indivíduos (também agentes em busca de satisfazer suas carências), imprimindo um significado propriamente humano à matéria trabalhada, e criando uma nova dinâmica de inter-relações. Assim, a matéria circundante, passiva e inerte, torna-se sujeita a uma série de unificações e totalizações de outras práxis que escampam a cada agente. Minha totalização, porque adentra o campo totalizador da práxis de outrem, é igualmente destotalizada por esses outros campos. Sartre ilustra essa relação através do seguinte exemplo: um jardineiro e um calceteiro, desconhecidos entre si, trabalham em lados opostos de um mesmo muro. Cada um é o centro de sua própria ação no mundo objetivo, centro de uma disposição diferente do universo, e que possui seu próprio campo totalizante. A princípio, inexiste relação direta entre eles. Contudo, a intermediação, ignorada por ambos, de um terceiro – um intelectual que os observa da janela –e promove a unificação dessa díade.
O homem só existe para o homem em circunstâncias e em condições sociais dadas; portanto, toda relação humana é histórica. Mas as relações históricas são humanas na medida em que elas se dão a qualquer tempo como a consequência dialética imediata da práxis, isto é, da pluralidade de atividades no interior de um mesmo campo prático (SARTRE, 1985, p. 210).
No âmbito das relações práticas, há reciprocidade sempre possível, pois nela me torno veículo do projeto totalizante de outro na medida em que o outro se torna veículo de minha totalização. Em outras palavras, há um intercâmbio. Além disso, dois indivíduos também podem ser veículos de um projeto conjunto, transcendente. Neste caso, tais formas de reciprocidade se qualificam como positivas. Não obstante, ao haver recusa de uma relação recíproca tem-se o conflito. Doravante, afirma Sartre, cada um utilizará seu próprio campo material com o objetivo de conquistar objetivamente o outro, tendo como base a relação de carência. Trata-se de uma reciprocidade negativa (instrumentalização do outro, reificação, confronto).
Mas, se o ponto de partida da experiência crítica é a práxis do ser humano que busca satisfazer suas necessidades, cumpre complementar este princípio com um dado alarmante e decisivo para se compreender a vida social e histórica pela ótica sartriana: a escassez, fenômeno que impede a satisfação das necessidades de todos, imprimindo à intersubjetividade o sinal negativo da luta e da violência.
Com efeito, segundo o filósofo, a História humana não se inicia apenas com o movimento de busca de satisfação das carências orgânicas. Antes, seu indício originário é a impossibilidade de satisfazê-las plenamente, na medida em que haveria um descompasso entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária, diz Sartre, a escassez seria, na prática, universal, demarcando, assim, o limite externo da ação prática dos indivíduos.
À luz dessa situação, os seres humanos, organismos “primeiramente separados”, se unem para lutar contra a escassez. Criam objetos, ferramentas, máquinas etc. com o intuito de dominar a natureza e minimizar a penúria primitiva, relaxando a pressão por ela exercida. Criam, por conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa palavra, fazem história. A escassez, “determinação contingente de nossa relação unívoca à materialidade” (SARTRE, 1985, p. 237), é o índice que, para Sartre, inaugura a inteligibilidade da história humana.
Desse modo, a escassez fundamental promove uma unidade negativa de todos enquanto incompletude (ou como “totalidade-destotalizada”), efetiva “impossibilidade de viver”. O resultado é dramático: a própria coexistência, que a princípio serviria para minimizá-la ou superá-la, com o decorrer do tempo devém igualmente impraticável. Sob a égide da escassez, explica Sartre, cada um se torna um excesso para os outros, um consumidor em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser consumido mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser inumano, alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem: o outro é visto como um excesso, redundante, de trop[2].
Assim, em um quadro de escassez, o homem “é objetivamente constituído como inumano e essa inumanidade se traduz na práxis pela apreensão do mal como estrutura do Outro” (SARTRE, 1985, p. 244).
II
O que foi visto na seção precedente pode ser sintetizado no seguinte trânsito dialético: a natureza, intrinsecamente escassa, não possibilita ao ser humano a completa satisfação de suas necessidades (negação da própria possibilidade de existência do homem). Este, por sua vez, cria objetos e se une aos outros para superá-la (negação da negação). Mas, essa união cria uma reciprocidade alterada pela própria escassez, uma união negativamente estabelecida por um fator externo, uma tensão fundamental e inevitável em nome da sobrevivência. Segundo Sartre, toda sociedade se constitui como uma forma de luta contra a escassez. Por conseguinte, o binômio necessidade/escassez seria o verdadeiro “motor da História”. Ela seria o fundamento da escassez própria aos modos de produção históricos descritos pelo marxismo; consequentemente, a via de inteligibilidade da luta de classes.
Sempre segundo Sartre, a escassez torna os indivíduos antagonistas entre si, não obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua sobrevivência. Contudo, não é apenas a escassez que, externamente, interfere e altera a reciprocidade interindividual. De acordo com o filósofo, a própria forma com que os seres humanos se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e inexoravelmente, alienante.
Explica-se: diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em relação à ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no interior do grupo diminuem. Não obstante, esse fenômeno positivo logo se reverte. Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece em um nível mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana – sua objetivação, na linguagem hegeliano-marxista – torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade.
Isso significa que, se a história daquilo que Marx chamava de “indústria humana” se caracteriza por uma crescente dominação em relação à natureza, permitindo uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da alienação” (SARTRE, 1985, p. 262).
Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental. Na leitura de Sartre, é a própria forma que assume a relação que os indivíduos estabelecem entre si mediados pela matéria. Como explica o filósofo, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de trabalho dos outros” (SARTRE, 1985, p. 262). Assim, no momento do trabalho, “é o produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em outra Espécie, em contra-homem. É no produto que cada um produz sua própria objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como Outro” (SARTRE, 1985, p. 262-3)[3].
Para corroborar sua posição, Sartre recupera o caso dos camponeses chineses, que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de alimentos. Essa prática social inicialmente positiva, com o decorrer dos anos terminaria por arrasar culturas inteiras, devido às inundações suscitadas por este mesmo desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica o autor, o homem vê sua práxis alterada pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem. O resultado de minha ação nem sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis alheia. Essa interferência inevitável, complementa Sartre, impede, ao final, que eu me reconheça nos produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, bloqueia a compreensão das causas que levaram minha ação a um resultado diverso daquele que eu esperava. Pois, como afirmado em Questão de método – preâmbulo metodológico da Crítica da razão dialética –, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” (SARTRE, 1985, p. 74).
Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria de toda a atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo (SARTRE, 1985, p. 74).
O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão, e isso não significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças “naturais”, às forças “mecânicas” e aos aparelhos “anti-sociais”. Isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real e materialmente em seu corpo e que ele contribui a sustentar e a reforçar pela própria luta que, individualmente, ele trava contra ela (SARTRE, 1985, p. 437).
A solidão, portanto, pode ser compreendida como a primeira característica da serialidade. Mas, para Sartre, ela não é apenas fruto da dinâmica da vida em sociedade, mas é também um projeto. Ou seja, ela é vivida, suportada. Quando leio um jornal aguardando o ônibus, utilizo de um coletivo nacional com o intuito de me isolar, por exemplo, das outras três pessoas que estão na fila comigo. Tal situação se generaliza: o projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao mesmo tempo.
Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada indivíduo é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário. A mudança de qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral.
Segundo Sartre, este novo estágio da práxis cria uma quase-unidade passiva que, para realizar-se, precisa “fascinar cada Outro por esse falso-semblante: a totalização das alteridades (ou seja, a totalização da série)” (SARTRE, 1985, p. 727). A armadilha do êxtero-condicionamento reside no projeto do soberano de “agir sobre a série de maneira a lhe arrancar, na própria alteridade, uma ação total” (SARTRE, 1985, p. 727). Contudo, prossegue, “essa totalidade prática, ele a produz como possibilidade para a série se totalizar conservando a unidade fugidia da alteridade, ao passo que a única possibilidade de totalização que permanece no agrupamento inerte é dissolver nele a serialidade” (SARTRE, 1985, p. 727).
A práxis, todavia, se conserva como liberdade transcendente. Assim sendo, a natureza fundamental da institucionalização, sua impotência serial, separação e reificação, que constrói a massa soberana e serializada, revelam, afinal, através da desmistificação de sua inteligibilidade, mais uma forma de alienação da liberdade individual. Mais uma vez, o funcionamento dos meios de comunicação de massa é o melhor exemplo de como atualmente operariam esses dois caracteres elementares do êxtero-condicionamento, complementando aquilo que já foi assinalado anteriormente.
De fato, na ação dos mass media, “a ação mediadora do grupo, que condiciona cada Outro por todos os Outros, [gera uma] fascinação prática pela ilusão da serialidade totalizada” (SARTRE, 1985, p. 728).Relembrando sua visita aos Estados Unidos, em 1946, Sartre relata (cf. SARTRE, 1985, p. 728 e ss.) que, a cada sábado, as emissoras de rádio divulgavam a lista dos dez discos mais vendidos na semana que se encerrava. Na semana seguinte, as pesquisas indicavam que a venda daqueles discos aumentava em uma margem de 30 a 50%. Assim, o resultado da semana anterior era confirmado e prolongado. A escolha dos discos, observa Sartre, era feito por um grupo de especialistas (o “Grand Prix du Disque”) que agia sobre a massa serializada, em nome da “opinião pública” (na verdade, das gravadoras), de modo a persuadir cada ouvinte de que o Outro também iria comprar aqueles discos. Este Outro, consequentemente, exigiria de mim que eu também os tivesse comprado e escutado, a fim de que não ficasse desinformado acerca daquilo que o “público” compra e escuta. Por minha vez, eu faria o mesmo em relação a outrem. Os exemplos poderiam ser multiplicados.
Retomando o problema do racismo, HadiRizk nota que o êxtero-condicionamento permite compreender melhor esse tipo de procedimento (em suas várias manifestações fenomênicas), porquanto ele
só pode ser explicado por sua natureza serial, na qual cada um se faz Outro que o outro “unindo-se” a ele pelo sentimento e prática da exclusão. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo tentasse exorcizar, às custas do outro, a fuga de seu próprio ser, que ele projeta sobre um ser coletivo e unificante. Tal objeto torna-se a unidade dessa fuga serial, tanto quanto a causa do ser-outro de cada um (RIZK, 1996, p. 186).
Assim, as diversas manifestações de racismo (contra o negro ou contra o judeu, por exemplo), mais do que um fato seria, são práticas do grupo soberano que age sobre o racismo com o intuito de fazer dele um meio de junção-na-separação dos indivíduos. Não por acaso, as pesquisas de opinião visam captar “reflexivamente” esse racismo, por exemplo, com perguntas como: “há muitos imigrantes em nosso país”?; ou, em um arquétipo mais tipicamente brasileiro: “a política de cotas beneficia os negros?”[10].
Quando elas são formuladas, cortadas em amostras, e depois representadas na cerimonia do comentário aos diferentes grupos sociais, essas questões e estatísticas induzidas pelas “respostas” equivalem a uma lista-tipo que ofereceria aos indivíduos seriais o modelo de uma unificação à totalidade Outra da Nação. Dir-se-á assim que “a França pensa...”, por exemplo, na casa dos 30% de maneira racista. A comunicação – necessariamente serial, ou seja, atingindo na alteridade o senhor-qualquer-um – induz em cada um a incitação de ser 30% racista. Ou seja, ser ele mesmo um cidadão “normal” e “médio”, fazendo-se o mais Outro, isto é, conforme ao Outro como razão da série trabalhada e construída em certa totalidade pela práxis de um subgrupo do grupo soberano (RIZK, 1996, p. 186-7).
O êxtero-condicionamento é, em suma, a utilização, por parte de um grupo determinado, da ação recíproca que as séries realizam umas sobre as outras, sem que estas se percebam vítimas de manipulação. Através dessa prática, o grupo soberano se serve da divisão serial, ao invés de tomá-la como uma ameaça. Sua racionalidade consiste, portanto, na necessidade que sofre o grupo soberano – surgido no seio da instituição por conta de sua impotência em superar a serialidade – de manter uma unidade social apoiada nas próprias séries em suas determinações recíprocas.
Em resumo, em uma sociedade na qual as séries se multiplicam, ou seja, onde a relação interindividual é perpassada por várias camadas de mediação, os mass media, por conta de sua própria constituição, tornam-se um mecanismo privilegiado para minimizar a distância e o isolamento entre os indivíduos (no sentido de serem capazes de fazer seu discurso alcançar o maior número de pessoas possível), ao mesmo tempo em que exige que essa separação se conserve (isto é, que os indivíduos permaneçam reduzidos ao antagonismo alienante da impotência serial) para que o poder (político/econômico) ao qual estão atrelados se sustente.
VI
Diante do exposto, fica nítida a conexão que Sartre estabelece entre a vida serial e o êxtero-condicionamento como modos de sociabilidade nos quais os mass media podem atuar como veículos privilegiados de propagação de discursos ideológicos, isto é, discursos que se alimentam da impotência alienante daquela tipo de relação social. Com efeito, em uma sociedade de consumo de massas, como a atual, não é difícil observar, a partir da hipótese de Sartre, como a publicidade se vale fartamente de formas de êxtero-condicionamento com o intuito de assediar consumidores em potencial e aumentar o volume de vendas de seus produtos; ou como essa forma de dominação tornou-se indispensável para transmitir valores e conceitos de “verdade” que assegurem a hegemonia de uma determinada visão de mundo.
Por fim, caberia ainda indagar se há, em Sartre, algum vislumbre de superação dessa situação. A resposta se fez entrever na própria forma pela qual o filósofo apreende a noção de ideologia. Porque não se trata de um problema exclusivamente gnosiológico, mas de um modo de vida interiorizado por cada um, para Sartre, apenas o concurso das práxis é capaz de, mesmo nas malhas das artimanhas que a impulsionam a reforçar a dominação à qual estão subjugadas (isto é, o prático-inerte), criar formas diferentes de sociabilidade que possam se contrapor à manipulação do êxtero-condicionamento.
Lutar contra uma ideologia, portanto, não se desprende da luta (necessária e possível) contra todo o conjunto de relações (econômicas, políticas, jurídicas etc.) que a sustenta. Pelo contrário, na medida em que todas essas esferas se dão como um todo, não há combate a uma sem combate a outra. Como sintetiza Sartre, neste ponto abertamente adotando a atitude de Marx em relação ao tema: “não são as ideias que mudam os homens, não basta conhecer uma paixão por sua causa para suprimi-la. É preciso vivê-la, opor a ela outras paixões, combatê-la com tenacidade. Em suma, se trabalhar” (SARTRE, 1985, p. 25). Inclusive, se poderia acrescentar, nisso que é particularmente sensível nos dias atuais, no sentido de inventar formas distintas de bloquear a capacidade de persuasão dos meios de comunicação. Isto é, não apenas pela mera denúncia de seu modo de operação, mas também através da concepção de práticas distintas de vida e disseminação de valores e ideias contra hegemônicas. Práticas capazes de romper, ou ao menos minimizar, a alienação típica da vida serial, cuja fraqueza a que relega os indivíduos nutre o papel contemporâneo de manipulação ideológica da mídia e, consequentemente, reforçam aquela mesma alienação.
AUTOR
*Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e-mail: viniciusdossantos@ufba.br
Referências bibliográficas
AUTOR
*Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e-mail: viniciusdossantos@ufba.br
BAROT, Emmanuel. Aux racines de l’idéologie. In: BAROT, Emmanuel. (dir.). Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 253-284.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Prefácio Jean-Paul Sartre. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FISCHBACH, Franck. L’aliénation comme réification. In : BAROT, Emmanuel. (dir.). Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 285-312.
GARO, Isabelle. L’idéologie ou la pensée embarquée. Paris : La Fabrique, 2009.
JAMESON, Fredric. Entre structure et événement: le groupe. Trad. Eustache Kouvélakis. In: KOUVÉLAKIS, Eustache & CHARBONNIER, Vincent (dir.). Sartre, Lukács, Althusser : des marxistes en philosophie. Paris: PUF, 2005, p. 11-32.
RIZK, Hadi. La constitution de l’être social– le statut ontologique du collectif dans La Critique de la raison dialectique. Paris: Éditions Kimé, 1996.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In : LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique (précédé de Questions de méthode) – tome I: théorie des ensembles pratiques. Paris: Gallimard, 1985.
________________. L’Être et le Néant– essai d’ontologie phénoménologique. Édition corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre.Paris: Gallimard, 2007.
________________. Plaidoyerpourlesintellectuels. Paris: Gallimard, 1972.
[1] Na Crítica, a práxis aparece como a ação do homem no mundo material inerte, com vistas a transformá-lo para um determinado fim, indicado num “projeto totalizante”. Sua translucidez permite disparar a dialética que permitirá ao filósofo reconstruir as condições de possibilidade da inteligibilidade histórica.
[2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que o homem seja, naturalmente,“lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é preciso compreender,ao mesmo tempo,que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que, longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da escassez não tiver chegado ao termo, haverá,em cada homem e em todos,uma estrutura inerte de inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada” (SARTRE, 1985, p. 242).
[3] Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23).
[4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308).
[5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420.
[6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas referências bibliográficas ao final.
[7] Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920, Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne, no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material (ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista, Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405.
[2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que o homem seja, naturalmente,“lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é preciso compreender,ao mesmo tempo,que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que, longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da escassez não tiver chegado ao termo, haverá,em cada homem e em todos,uma estrutura inerte de inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada” (SARTRE, 1985, p. 242).
[3] Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23).
[4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308).
[5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420.
[6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas referências bibliográficas ao final.
[7] Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920, Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne, no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material (ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista, Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405.
Para uma análise mais aprofundada do tema da ideologia em Sartre, ver o já citado BAROT. In: BAROT, 2011, p. 253 e ss.
[8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerusclausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE. In: FANON, 1968, P. 9).
[9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos.A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente” (QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8).
[10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’” (QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade.
[8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerusclausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE. In: FANON, 1968, P. 9).
[9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos.A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente” (QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8).
[10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’” (QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017
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