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Práticas discursivas econômicas e socioculturais são compatíveis?

Rogério Faé*


RESUMO: Os discursos governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral. Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais. 


Palavras-Chave: Práticas Discursivas, Foucault, Crescimento Econômico.

Introdução

Vivemos em um contexto no qual está dado por certo que os aspectos econômicos são determinantes do contexto sociopolítico em que vivemos. Os discursos governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral.
Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais em termos governamentais.
Em um primeiro momento, será feita uma revisão de alguns elementos da teoria foucaultina que darão suporte à análise. Na parte seguinte, as ideias de Celso Furtado serão trabalhadas entendendo-as como reflexivas em relação ao contexto em que ele se encontra. O autor, em constante autocrítica, faz emergir práticas discursivas para no momento seguinte desconstruí-las e reconstruí-las parcialmente. Processo que dá margem a vários entendimentos e que cria as condições para a posterior produção discursiva de autores tanto de direita como de esquerda. A seguir será feita uma rápida aproximação das formações discursivas abordadas em relação ao momento atual e, por fim as considerações finais.   

Foucault a as práticas discursivas

Foucault (2000, p. 55) argumentou que o discurso é um conjunto de enunciados que não somente designa as coisas, mas produzem-nas, e deve ser visto como prática(s) que formam “sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”.
O poder, por sua vez, se constitui através de práticas discursivas baseadas em saberes próprios, nos quais ganha importância o conceito de corpo político, que é entendido como um conjunto dos elementos “(...) materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber” (FOUCAULT, 1987, p. 30).
Entretanto, mesmo considerando imprescindível considerar a produção anterior à terceira fase de Foucault, é necessário frisar que a ênfase da última etapa no processo de subjetivação, para Deleuze (1998, p. 129-130) foi resultado de um “(...) impasse em que o próprio poder nos coloca, na nossa vida como no nosso pensamento (...). E só haveria saída se o de-fora fosse apanhado num movimento que o desvia da morte. Seria como que um novo eixo, simultaneamente distinto do do saber e do do poder.
Eixo que não invalida os outros, mas os impede de ficarem fechados, entendendo a própria “(...) motivação psicológica não como a fonte, mas como o resultado de estratégias sem estrategistas (...)” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.121) que leva a disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que emergem no interstício de uma rede de relações sempre tensa e em atividade. 
Foucault (1994, p. 10) define este terceiro eixo como “(...) o estudo dos modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos (...)”. Ou seja, a compreensão sobre as maneiras pelas quais os indivíduos podem construir a experiência deles mesmos enquanto sujeitos, constituindo-se e reconhecendo-se como tal, ou ainda, através de quais jogos de verdades. 
Ganharão importância, neste contexto, as razões pelas quais os cuidados éticos – localizados espacial e temporalmente – adquirem importância, questionando sobre o porquê de determinadas práticas discursivas e, principalmente, sobre as razões desta formatação das relações de força. Buscando, assim, as formas e condições do pensar, pelo homem sobre o que ele é, e sobre o mundo em que se insere.
Valorizando, assim, o conceito de técnicas de si, que se caracterizam como conjuntos formados por práticas que definem a estética da existência, ou seja, práticas reflexivas e voluntárias através das quais “(...) os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e respondam a certos critérios de estilo”. (Foucault, 1994, p.15) 
Foucault (1994, p. 15-16) ao buscar as razões de determinadas problematizações éticas, parte das práticas de si e, sem descaracterizar os eixos anteriores, os atualiza e redimensiona: “a dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas modificações”.
Na sequência do texto, serão utilizados alguns elementos da construção de Foucault no que tange à estética da existência. Para este estudo que busca olhar para o passado vislumbrando as condições que possibilitaram o contexto presente, no que se refere à predominância do econômico sobre as esferas socioculturais no Brasil, serão analisados aspectos da prática discursiva de Celso Furtado ao estudar em termos históricos a formação socioeconômica brasileira. A escolha por centrar o estudo em Celso Furtado se justifica por seu reconhecimento tanto por autores de esquerda, quanto por autores de direita, que utilizam parte de sua construção discursiva de forma muitas vezes descontextualizada (VIEIRA, 2007). Entretanto, algumas premissas permanecem na base de quase todos os autores, mesmo que negadas por técnicos que predominam no contexto político gerencial da atualidade.

O processo de formação socioeconômico Brasileiro

Antes de iniciar o texto é importante salientar que ao buscar compreender os principais aspectos da formação econômica brasileira é necessário relembrar que a construção de qualquer autor responde a fatores perceptuais localizados em termos geográficos e temporais que, ao reinterpretar o passado a partir de novas variáveis, não se está apenas abrindo alternativas para o futuro, mas empreendendo a reconstrução da história pretérita (FOUCAULT, 2000). Nesse sentido, a produção de um mesmo autor pode, também, expressar diferentes argumentos ao longo do tempo.
As práticas discursivas de Celso Furtado ganharam visibilidade na primeira metade da década de 1950, época em que grupos modernizadores questionavam as práticas oligárquicas ligadas à agricultura exportadora. Sua obra foi fortemente influenciada pela construção político-social que emergiu na década de 1930, na qual

[...] o historicismo alemão, o culturalismo de Franz Boas, a sociologia de Max Weber e o marxismo, passaram a informar, em novas bases, o pensamento social do País. Foi, aliás, esse sopro de radicalismo intelectual o responsável por algumas obras essenciais que [...] descobriram o Brasil para os brasileiros, nos idos de 1930 – Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. (VIEIRA, 2007, p. 16)  

Em resultado dessa efervescência intelectual emergiram as bases para práticas discursivas que buscavam valorizar a identidade brasileira. Esses projetos almejavam fazer frente à homogeneização sociocultural de matriz eurocêntrica (VIEIRA, 2007).
Naquele contexto, Furtado (1961, p. 241-242) argumentou que a ideia de desenvolvimento, unicamente identificada à lógica de crescimento econômico, desconsiderava a dimensão histórico-social que a condicionava. Assim como, criticou a simples reprodução de padrões exógenos no contexto nacional.
O autor defendeu que a Revolução Industrial provocou transformações nos padrões produtivos em escala mundial e, principalmente, que o discurso de eficientização da produção somente ganhou dinamismo através da elaboração de técnicas comerciais que articulavam oferta e procura, assim como da construção de novas classes sociais ligadas à produção industrial, distribuição e comercialização das manufaturas.
Se, nos países em que o processo de industrialização primeiro se fez presente, houve íntima interdependência entre os fatores tecnológicos e sociais na construção da realidade nacional, o mesmo não se podia afirmar em relação aos países da América Latina. Nesses últimos, o processo de industrialização, ao ser incentivado, teve como principal fator motivacional o aperfeiçoamento da produção ligada à exportação, ou seja, caracterizou-se como complementar ao processo experimentado nos países centrais. Essa lógica, em geral, desconsiderou as necessidades das nações que compunham as linhas comerciais em posição de importadoras de manufaturas e exportadoras de bens primários.
O resultado, para as economias Latino-Americanas, foi “[...] quase sempre a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo” (FURTADO, 1961, p. 253). Nesse sentido, o subdesenvolvimento experimentado pelos países da América Latina teria provocado a reprodução, em âmbito regional interno, das desigualdades socioeconômicas entre países. Uma vez iniciado esse processo, “[...] sua reversão espontânea é praticamente impossível” (FURTADO, 1959, p. 331). 
É necessário frisar, ainda, que contrariando as práticas discursivas que predominavam à época e que defendiam que o desenvolvimento socioeconômico viria da homogeneização produtiva ditada pelos países centrais, para Furtado (1961, p. 253), o “[...] subdesenvolvimento é [...] um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento”. 
Entretanto, a resposta de Furtado (1954), em âmbito econômico, atribuía à industrialização substitutiva uma posição de recurso gerador de nova dinâmica que levaria as nações Latino-Americanas, mais especificamente o Brasil, a uma situação de maior autonomia em relação aos países centrais. Entretanto, o que se percebeu a posteriori é que tal lógica acabou por reproduzir as práticas discursivas pré-existentes nos países centrais.
A industrialização por substituição de importações tinha por pressuposto ampliação do mercado interno, via crescimento da produção e renda per capita, que possibilitariam a participação nacional no sistema econômico internacional em condições menos desiguais. Já o planejamento do processo de desenvolvimento, ao ser atribuído ao Estado, teria por função reduzir a espontaneidade pressuposta à industrialização periférica, como fator alheio a qualquer “[...] intenção consciente de romper com os esquemas tradicionais de divisão internacional do trabalho” (FURTADO, 1962, p. 38-39).
Vieira (2007, p. 385) argumenta que, para Furtado, “(...) somente a ação planificadora e compensatória do Estado, guiada pela intelligentsia munida de uma racionalidade superior, seria capaz de assegurar o interesse coletivo e, nessa medida, a dimensão democrática que na sua teoria passa pelo desenvolvimento econômico e pela nação soberana, finalmente construída”.
Entretanto, passada a Era Vargas (1930-1954) na qual o processo de industrialização foi incentivado, ao contrário do que era esperado, o custo das importações demandadas pelo processo de industrialização substitutiva foi gradativamente evoluindo e exigindo participação crescente do capital estrangeiro, conforme foram se ampliando as necessidades.
O próprio Furtado (2000a) fez a autocritica e identificou três estágios sequenciais que acabavam por manter a dependência com os países centrais: a) substituição de bens de consumo leves; b) substituição de bens de consumo duráveis; e c) substituição de bens de produção. A passagem para níveis mais elevados de produção interna, se, por um lado, liberava a pauta importadora, por outro, criava novas necessidades de importação de insumos para alimentar a produção interna, fato que tornava o equilíbrio entre as divisas oriundas da exportação e os custos advindos da importação (de máquinas, bens intermediários e matérias-primas industrializadas) extremamente complexo, principalmente, ao considerar a relação crescentemente deteriorada entre produção primária e industrial (FURTADO, 2000; MARTINS, 2006).
Naquele momento, a percepção que passou a predominar era que a acumulação seria indissociável da expansão capitalista em padrões internacionais, ou seja, seria parte de um processo de enriquecimento dos países centrais e da pequena elite periférica articulada a eles. Em resposta a essa percepção ganharam força, ao final da década de 1950 e início da década de 1960, processos de resistência articulados por movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores que lutavam por melhores condições de vida e renda à população em geral (BIELSCHOWSKY, 2000).
Ao constatar que a classe dirigente brasileira era passiva e intelectualmente alinhada com práticas discursas externas, Furtado (2007a, p. 421) passou a defender a tese de que havia falta de vontade política para mudar a realidade experimentada. Razão pela qual passou a “[...] ver o mundo como um desafio. Fazer política é enfrentar desafios. Não cabe esperar por soluções espontâneas. Não pode haver infraestrutura sem política, sem planejamento”.
Entretanto, a
[...] derrota e o banimento de Furtado, em 1964, no momento em que o capital monopolista internacional elegia o país como mais um de seus espaços de acumulação e reprodução ampliada, exigindo para isso o aprofundamento dos aspectos antidemocráticos do Estado Brasileiro, era a evidência de que a burguesia industrial Brasileira, sem nenhuma ‘ilusão heróica’, tinha feito sua escolha: ser o sócio menor do grande capital externo. (VIEIRA, 2007, p. 390) 

Considerando a prática discursiva que predominou na década de 1960, principalmente a partir de 1964, e que salientava os limites à industrialização sob premissas definidas em âmbito interno, Furtado (1974, p. 10) afirmou que sua formação discursiva anterior à década de 1970 foi produzida em um contexto no qual se “[...] se manifestavam tendências policêntricas na economia mundial [...]”. Já a produção discursiva que começou a tomar forma teve por base a percepção da “[...] afirmação definitiva das grandes empresas no quadro de oligopólios internacionais, a rápida industrialização de segmentos da periferia do sistema capitalista no novo sistema de divisão internacional do trabalho”. Para o autor, a grande empresa passou a ocupar posição de elemento estruturador do sistema capitalista.
Razão pela qual Furtado (1974) ratificou seu discurso problematizador do conceito de desenvolvimento que, ao ser predominantemente identificado com formações discursivas em defesa da ampliação dos mercados, buscava a disseminação dos padrões de consumo experimentados por uma minoria privilegiada da população mundial. Esse olhar teria direcionado muitos dos esforços ligados ao desenvolvimento para práticas que viam na tecnologia o principal fator de dinamismo, independente do contexto em que se inserisse. 
Em decorrência,
Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital. As grandes metrópoles modernas com seu ar irrespirável, crescente criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados. (FURTADO, 1974, p. 14)

Em contrapartida à ênfase tecnológica estimulada pelos centros difusores do discurso capitalista, o autor destacou a crescente dependência dos países centrais em relação à matéria-prima – muitas vezes advinda de recursos não-renováveis – produzida por outros países, como fator-chave na definição política de abertura econômica, principalmente, via disseminação de grandes empresas com tecnologias capazes de explorar os recursos naturais, em escala planetária. 
Nesse aspecto, Furtado (1974, p. 16) destacou: “[...] como a política de defesa dos recursos não-reprodutíveis cabe aos governos e não às empresas que os exploram, e como as informações e capacidade para apreciá-las estão principalmente com as empresas, o problema tende a ser perdido de vista”. 
Em relação à desigualdade que daí advém, o autor salientou dois fatores mutuamente influenciáveis: a aceleração da acumulação de capital nos sistemas de produção; e a intensificação do comércio internacional, sob condições de troca que ampliavam progressivamente a diferença entre o valor relativo dos produtos industrializados e dos produtos agrícolas ou matéria-prima. Assim, é a forma como esse excedente era apropriado e utilizado que era ratificada como problema para o estudo da formação e manutenção do sistema capitalista industrial. Em outras palavras, a ênfase de Furtado (1974) se centrava no entendimento da dinâmica que sustentava o sistema de divisão internacional do trabalho.
Nesse sentido, sua análise novamente recorreu aos fatos históricos que condicionaram a formação do sistema como o conhecemos, ou seja, o projeto inicial, inglês, que buscava concentração geográfica, logo sofreu resistência e se pulverizou na forma de sistemas econômicos de base nacional orquestrados pelos países que, no século passado, assumiram a liderança do processo de industrialização e, por consequência, centralizaram as decisões econômicas em escala mundial. Posições essas que não deixaram de se aprofundar, pois 
Como a industrialização, em cada época, se molda em função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer com o tempo. Mais, ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações qualificativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico nacional e sim para completar o sistema econômico internacional. (FURTADO, 1974, p. 23)

Neste contexto, as indústrias nascentes se moldavam às necessidades do mercado de forma articulada com o sistema macroeconômico e remetiam às grandes empresas à posição de centro de decisão, com capacidade de influir na dinâmica interna dos diversos países, em âmbitos que extrapolavam a esfera econômica. Com base nessa visão problematizadora, à revelia das consequências do discurso econômico nas esferas socioculturais e ambientais, o traço mais característico do capitalismo seria a inexistência de um disciplinador geral do conjunto das atividades econômicas.
A autonomia da macroeconomia, à medida que fornecia estabilidade às relações comerciais transnacionais, em contrapartida, liberava o Estado para direcionar seus esforços para a esfera social. Essa última, entretanto, necessitava estar articulada com a estratégia econômica, ou melhor, deveria oferecer atratividade ao investimento empresarial (FURTADO, 1974).
[...] o Estado tem [...] grandes responsabilidades na construção e operação de serviços básicos, na garantia de uma ordem jurídica, na imposição de disciplina às massas trabalhadoras. O crescimento do aparelho estatal é inevitável, e a necessidade de aperfeiçoamento de seus quadros superiores passa a ser uma exigência das grandes empresas que investem no país. (FURTADO, 1974, p. 60)

Com base na análise do último autor, as relações entre empresas e Estados nacionais eram condicionadas pelas grandes empresas, com base em quatro fatores: (i) a inovação, principal instrumento de expansão internacional através da introdução de novos processos e produtos, era controlada pelas grandes empresas; (ii) a maior parte das transações internacionais estava sob responsabilidade das grandes empresas; (iii) as grandes empresas operavam de forma a escapar da ação isolada de qualquer governo; e (iv) as empresas possuíam grande liquidez que fugia ao controle dos bancos centrais e tinham fácil acesso ao mercado financeiro internacional (FURTADO, 1974).
Para o autor, tais características das grandes empresas não caracterizavam o declínio da atividade política, mas a “[...] unidade de comando político, apoiado em um sistema unificado de segurança” (FURTADO, 1974, p. 34), que daria suporte à lógica macroeconômica.
Criou-se, assim, uma superestrutura política a nível muito alto, com a missão principal de desobstruir o terreno ali onde os resíduos dos antigos Estados nacionais persistiam em criar barreiras entre os países. A reconstrução estrutural se operou a partir da economia internacional. No plano interno os Estados nacionais ampliaram a sua atuação para reconstruir as infraestruturas, modernizar as instituições, intensificar a capitalização, ampliar a força de trabalho, etc. Tudo isso contribuiu, evidentemente, para reforçar a posição das grandes empresas dentro de cada país. Mas foi a ação no plano internacional, promovida pela superestrutura política, que abriu a porta às transformações de fundo, trazendo as grandes empresas para uma posição de poder vis-à-vis dos Estados nacionais. (FURTADO, 1974, p. 36)

Nessa superestrutura que possibilitava a autonomização da esfera econômica, sob controle das grandes empresas, um Estado nacional isolado pouco poderia fazer, até porque a pressão por inserção no mercado mundial já não vinha apenas dos núcleos de desenvolvimento, mas também das empresas internas a seu território. Nesse sentido, “[...] como tanto a estabilidade e a expansão dessas economias dependem fundamentalmente das transações internacionais, e estas estão sob o controle das grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tendem a ser relações de poder” (FURTADO, 1974, p. 33). As principais repercussões dessa nova dinâmica capitalista baseada em relações de saber-poder podiam, para Furtado (1974, p. p. 42-43) ser traduzidas por
Em primeiro lugar, [...] o processo de unificação abriu o caminho a uma considerável intensificação do crescimento no próprio centro [...]. Em segundo lugar, ampliou-se consideravelmente o fosso que já separava o centro da periferia do sistema, o que em grande parte é simples consequência da intensificação do crescimento no centro. Em terceiro lugar, as relações comerciais entre países centrais e periféricos, mais ainda do que entre países centrais, transformaram-se progressivamente em operações internas das grandes empresas.

As economias periféricas passaram, então, a enfrentar um processo de agravamento das disparidades internas de forma proporcional à sua industrialização, amplamente estimulada pelo capital advindo dos oligopólios internacionais que, ao financiar a produção, buscavam melhores taxas de retorno aos seus investimentos. Nesta dinâmica foi ratificada a demanda aos países periféricos por mimetismo cultural e concentração de renda, de forma a possibilitar a uma minoria privilegiada padrões de consumo similares aos dos países centrais, que se diferenciam daqueles experimentados pela massa populacional.
A integração do centro permitiu intensificar sua taxa de crescimento econômico, o que responde, em grande parte, pela ampliação do fosso que o separa da periferia. Por outro lado, a intensidade do crescimento no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de vida do centro. Em outras palavras: quanto mais intenso for o fluxo de novos produtos no centro (esse fluxo é função crescente da renda média), mais rápida será a concentração da renda na periferia. (FURTADO, 1974, p. 45)

Assim, a crescente influência das grandes empresas se traduzia por uma tendência à homogeneização e disseminação dos padrões de produção e consumo vigentes no centro, que se traduziam na periferia por um aumento da distância entre as condições de vida de uma minoria privilegiada e a massa populacional que vive no limite da subsistência.
Nesse sentido, as práticas discursivas em defesa do desenvolvimento criariam, nos países periféricos, fossos que demonstrariam a insustentabilidade de sua lógica, tanto em termos socioculturais, quanto ambientais, pelo esgotamento dos recursos não-renováveis que fornecem o suporte ao desenvolvimento. Razão pela qual, o autor atribui ao desenvolvimento, sob as premissas do progresso, um status de mito:
A conclusão geral que surge dessas considerações é que a hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas desse sistema. E é essa a razão fundamental pela qual uma ruptura cataclísmica, num horizonte previsível, carece de fundamento. O interesse principal do modelo que leva a essa ruptura cataclísmica está em que ele proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. (FURTADO, 1974, p. 75) 

A pratica discursiva de Furtado (1974), ao defender a tese do mito do desenvolvimento, partiu da premissa de que as estratégias desenvolvimentistas originadas nos países centrais e que têm por base a ampliação dos mercados de produtos e de capitais seriam insustentáveis, predatórias e desiguais. A disponibilização de capitais pelos oligopólios empresariais teria por principal função o financiamento da produção e consumo de forma articulada com o sistema econômico mundial e, principalmente, a busca das melhores taxas de lucro.
O autor assumiu, assim, uma posição de denúncia em relação às estratégias discursivas em prol do sistema produtivo e financeiro impostas pelos países desenvolvidos, enquanto produtores de situações de desigualdade entre nações, no interior das nações e de insustentabilidade socioambiental. As grandes empresas foram posicionadas como estruturantes do sistema macro, a partir de estratégias discursivas de saber-poder, que encontram seu suporte em práticas ligadas ao sistema financeiro, em escala mundial.   
Cabe destacar que, em avaliação retrospectiva sobre a produção ligada ao mito do desenvolvimento, Furtado (1999, p. 98-99) argumentou que
Quando escrevi O mito do desenvolvimento econômico, foi um pouco como provocação. Eu vivia no estrangeiro, estudava o Brasil de longe, e quis mostrar aos brasileiros que, se não encontrassem caminhos próprios, se confiassem completamente nas forças do mercado, nas forças internacionais que atuavam aqui, não teriam saída. Abordei o tema de tal modo que muita gente me disse que eu andava pessimista com respeito ao Brasil. (...) O que eu insinuava é que a classe dirigente brasileira não tem capacidade para enfrentar seus grandes problemas, assim como não teve capacidade para formular uma política de industrialização nos anos 30; esta veio na contramão, mas veio. Só tardiamente o país descobriu sua vocação para industrializar-se.

Em busca de alternativas à situação percebida, Furtado (1998, p. 63) passou a defender que o subdesenvolvimento não seria resolvido pela lógica de mercado, ao contrário, somente haveria superação desta condição “através de um projeto político voltado para a mobilização de recursos sociais, que permitisse empreender um trabalho de reconstrução de certas estruturas”.

O novo e a repetição

Empreender uma analise das práticas discursivas predominantes em termos de defesa do predomínio econômico na atualidade, em escala nacional, levaria a um estudo que considerasse, por um lado, uma leitura do processo de enfraquecimento econômico provocado externamente pela queda do valor das commodities no mercado internacional; por outro, do processo de crise e oportunismo político em parte provocado pelo desequilíbrio da balança comercial brasileira. O que infelizmente, por questões de extensão do texto, foge ao alcance do trabalho.
Entretanto, é necessário salientar que Celso Furtado foi reconhecido e serviu de inspiração aos últimos governos em escala nacional. Bresser-Pereira (2006) reconheceu a influência da prática discursiva de Furtado em suas ideias. Cabe destacar que Bresser-Pereira, mesmo tendo sido Ministro de Estado no governo FHC, por um lado, argumentou que divergia das ideias do ex-presidente no que se refere à importância do planejamento governamental; por outro, como um dos principais idealizadores da formação discursiva ligada ao neo-desenvolvimentismo, influenciou fortemente as práticas discursivas nos governos Lula e Dilma (MERCADANTE, 2010). É interessante lembrar que o livro escrito por Aloísio Mercadante (Ministro de Estado nos governos petistas) e publicado em 2010 tem em seu título (Brasil: uma construção retomada) uma referência a um dos últimos textos de Furtado (Brasil: a construção interrompida). Mercadante (2010), na introdução de seu livro, pressupõe uma retomada da prática discursiva de Celso Furtado.
No que se refere às aproximações com as ideias de Furtado é necessário salientar que os governos petistas incentivaram práticas em defesa do mercado interno, como foi por exemplo a política de conteúdo local (PROMINP, 2017) que define um percentual mínimo de equipamentos e insumos de fabricação nacional com vistas ao incentivo da competitividade da indústria nacional ligada à extração e transporte de petróleo, assim como investiu em políticas sociais que melhoraram os indicadores de qualidade de vida (IPEA, 2011). Entretanto, a ênfase sempre se manteve no aspecto econômico como dispositivo através do qual seriam alcançadas melhores condições para os produtos brasileiros competirem no mercado internacional sob a justificativa de que a disponibilidade financeira determina a capacidade de investimento na esfera social (ROUSSEFF, 2011). Pouca atenção foi dada ou mesmo foram negadas as consequências deste processo de associação ao mercado internacional como argumentado por Furtado (1974).
A negação e inversão – já que o crescimento econômico é posicionado como única alternativa para melhorar as condições de vida da população em médio e longo prazo –  das consequências da estratégia econômica criou as condições para que em um momento de crise houvesse um aprofundamento da lógica economicista que propõe o ajuste estrutural. Estavam abertos os caminhos para o fortalecimento da formação discursiva direcionada ao crescimento econômico.
O direcionamento dado pelo governo nacional, principalmente a partir do impeachment ocorrido em agosto de 2016, remete para o mercado as esperanças por melhores condições de vida à população em geral, primordialmente, por meio dos investimentos privados incentivados em algumas das políticas. Como, por exemplo, na definição de novas regras que reduzem o percentual de conteúdo local para a indústria de petróleo e gás, sob a justificativa de aumento da eficiência da indústria nacional (Agencia Brasil, 2017).
Neste último caso, as alterações nas regras governamentais são justificadas por uma prática discursiva que coloca em primeiro plano o custo de produção dos equipamentos e insumos para a extração de produtos petrolíferos em comparação com o mercado internacional e, consequentemente, o potencial de atratividade de capital externo. Entretanto, desconsidera o potencial desemprego a ser provocado pelo fechamento de indústrias nacionais que fornecem tais equipamentos e insumos; desvaloriza o investimento em pesquisa e tecnologia feito até o momento; assim como nega a impossibilidade das indústrias nacionais concorrerem em pé de igualdade com as estrangeiras em razão dos incentivos fiscais nos países de origem das empresas fornecedoras, que não encontrará mais similaridade no país. (Jornal Agora, 2017).
Assim, de forma a repetir o passado e ocultar riscos como os previstos por Furtado (1974), no atual contexto que valoriza prioritariamente o crescimento econômico em escala global, práticas discursivas que se contrapõem a lógica predominante são desconsideradas, negadas ou sofrem inversão, ao demonstrar as consequências da dependência dos países periféricos em relação aos centros de desenvolvimento e à articulação político-social entre atores economicamente interessados e articulados em escalas global e nacional.
A prática discursiva predominante dissemina uma lógica na qual resta aos sujeitos imersos no contexto fazer uma escolha entre abrir mão de direitos conquistados ao longo dos anos ou a não sobrevivência.

Considerações Finais

A prática discursiva predominantemente disseminada em escala nacional coloca ênfase no aspecto econômico como suporte às políticas de cunho social. Entretanto, o que realmente está em pauta é a adequação da estrutura socioeconômica nacional às demandas do mercado global.
É curioso olhar para este contexto e perceber que o denominado “ajuste estrutural” ganha conotação de prática discursiva em defesa dos interesses da população como um todo. Entretanto, o que se constata com maior frequência é um entrecruzamento de formações discursivas em disputa. Conflito que não é claramente percebido por quem se utiliza exclusivamente dos meios de comunicação de massa mais acessíveis, nos quais predomina a participação de técnicos governamentais que são escolhidos para suas funções, em muitos casos, pela própria identificação com as propostas vigentes.
Práticas discursivas que põem em questão a lógica predominante são frequentemente desqualificadas como provocadoras de estagnação e, consequentemente, identificadas com o aumento da impossibilidade de atendimento das necessidades da população.
O que facilmente é esquecido, negado ou mesmo intencionalmente ocultado se refere às consequências desta lógica em termos de dependência e insustentabilidade do sistema produtivo em posição de fornecedor de commodities. As possibilidades de investimento em políticas sociais estão vinculadas ao resultado econômico e, por consequência, em momentos de crise o atendimento à população perde qualidade em prol dos investimentos necessários para que se revertam os resultados econômicos inadequados. A pergunta que fica é: nos momentos vindouros de prosperidade e melhoria econômica, haverá reversão na qualidade dos serviços?
Ao finalizar este artigo, que tem a pretensão de oferecer um olhar alternativo ao contexto nacional vigente, é importante salientar que a prática discursiva neo-desenvolvimentista que predominou nos governos petistas, assim como a utilização de ideias de Celso Furtado perderam força no atual governo que tem se mostrado de corte mais liberal. Assim, a problematização que esteve na base da construção deste texto pode vir a ganhar novas nuances a partir do momento em que o projeto de desenvolvimento do atual governo venha a ser explicitado. Ou talvez, sob a lógica de mercado global, o próprio plano seja não ter planos. O que para Matus (1996) já se apresentaria como uma estratégia a ser examinada em suas consequências.


AUTOR
* Rogério Faé é professor Adjunto na Escola de Administração / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em Administração pelo PPGA/EA/UFRGS e Pós-Doutorado pela Essex University - UK (Ênfase em Economia Política). Email: rogerio.fae@ufrgs.br.


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FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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