RESUMO: Este texto destaca as reflexões de Michel Foucault acerca de sua história do pensamento nos anos 1980, relacionando-a com os seus estudos genealógicos da década anterior. Ele propõe uma nova política da verdade que permeie não somente o campo da produção do conhecimento, mas também o da prática e o da militância política. A aposta de Foucault é na desestabilização contínua das relações de poder. Por isso, ele aponta para os limites das análises ligadas ao marxismo tradicional, principalmente no que diz respeito às concepções de ideologia, dialética e ciência.
Palavras-chave: Foucault, história do pensamento, genealogia, nova política da verdade.
A história do pensamento e os eixos do saber, do poder e da ética
Em um curso dado entre os anos de 1982 e 1983, O governo de si e dos outros, Michel Foucault fala sobre o seu projeto de uma “história ontológica dos discursos de verdade” (FOUCAULT, 2010: 281), contrapondo-se à história do conhecimento e à história das ideologias. Para ele, um discurso que pretende dizer a verdade não deve ser analisado por uma história do conhecimento que permitiria determinar se ele diz o verdadeiro ou o falso. Esses discursos de verdade também não devem ser analisados por uma história das ideologias, que perguntaria por que eles dizem o falso em detrimento da verdade.
No início do curso, na “Aula de 05 de janeiro de 1983”, Foucault havia feito um balanço de sua trajetória e, assim, explicitou as especificidades de sua “história do pensamento” (FOUCAULT, 2010: 4). Nesse momento, ele diferenciou-se de dois outros métodos muito utilizados no período, a história das mentalidades e a história das representações, propondo um estudo diverso do que a maioria dos historiadores das idéias praticava. De um lado, a história das mentalidades privilegia as análises dos comportamentos efetivos, bem como as expressões que podem tanto preceder, seguir, traduzir, prescrever, quanto justificar tais comportamentos. Foucault também destaca essa diferença na “Introdução” de O Uso dos Prazeres, utilizando a sexualidade para exemplificar a particularidade de uma história do pensamento:
(...) de que maneira, por que e sob que forma a atividade sexual foi constituída como campo moral? Por que esse cuidado ético tão insistente, apesar de variável em suas formas e em sua intensidade? Por que essa “problematização”? E, afinal, esta é a tarefa de uma história do pensamento por oposição à história dos comportamentos ou das representações: definir as condições nas quais o ser humano “problematiza” o que ele é, o mundo no qual ele vive (FOUCAULT, 2006: 14).[1]
Por outro lado, a história das representações ou dos sistemas representativos possui dois objetivos principais: o primeiro é a análise das “funções representativas” ou do papel que as representações podem ter, seja em relação ao objeto representado ou ao sujeito que o representa (uma história das ideologias); o segundo objetivo privilegia o estudo das representações em função de um conhecimento considerado como critério de verdade, como verdade-referência. E é com relação a esse critério que o valor representativo de um sistema de pensamento poderia ser fixado. Entre essas duas possibilidades, Foucault propõe uma história do pensamento. Ele entende “pensamento” por meio da articulação de três eixos: as formas de um saber possível (saber); as matrizes normativas de comportamento para os indivíduos (poder); e os modos de existência virtuais para os sujeitos possíveis (ética).
Foi seguindo essa perspectiva que ele analisou a loucura (FOUCAULT, 2005a), não considerada como um objeto invariante através da história e sobre o qual agiria um certo número de representações. Também não entendeu por história da loucura o estudo de uma atitude que tivemos, através dos séculos ou em um momento dado, sobre a loucura. Em vez disso, estudou-a como uma experiência no interior de nossa cultura, tomando-a, primeiro, como um ponto a partir do qual se formou uma série de saberes heterogêneos, ou seja, a loucura como matriz de conhecimentos. Além disso, entendeu-a como uma forma de saber, uma junção de normas que a recortam como um fenômeno de desvio no interior de uma sociedade. Finalmente, pensou a loucura como uma experiência que define a constituição de um modo de ser do sujeito normal em relação ao sujeito louco. A articulação entre esses três eixos, então, define o estudo da “experiência”.[2]
Dessa maneira, sua proposta de pensamento foi construída a partir de três deslocamentos conceituais. Primeiramente, ao estudar a formação dos saberes, ele desloca o eixo da história do conhecimento em direção à análise dos saberes, e percebe as práticas discursivas como formas de veridicção (FOUCAULT, 2005a). Em um segundo momento, ao analisar as matrizes normativas de comportamento, não descreve o Poder (com um P maiúsculo), as instituições de poder ou as formas gerais ou institucionais de dominação, mas estuda as técnicas e os procedimentos pelos quais conduzimos a conduta dos outros. A questão da norma do comportamento coloca-se nos termos do poder que exercemos, e este, ainda, é analisado como um campo de procedimentos de governo. Ele passa, assim, da análise do exercício do poder aos procedimentos de governamentalidade, seguindo o exemplo da criminalidade e das disciplinas (FOUCAULT, 2005b).
O terceiro eixo analisa a constituição do modo de ser do sujeito. E, aqui, o objetivo foi escapar de uma teoria do sujeito, e analisar as diferentes formas pelas quais o indivíduo se constitui como sujeito. A partir do exemplo do comportamento sexual e da história da moral sexual (FOUCAULT, 2006; 2007a), Foucault tenta entender como, e por quais formas concretas de relação consigo, o indivíduo foi chamado a se constituir como sujeito moral de sua conduta sexual. Trata-se, assim, de operar os seguintes deslocamentos: livrar-se da questão do sujeito e analisar as formas de subjetivação e, além disso, estudá-las a partir das tecnologias da relação consigo, ou da pragmática de si. Para Foucault, esses três eixos constituem uma história das “experiências”. E o percurso seguido por seus estudos privilegiou a experiência da loucura, a da criminalidade e a da sexualidade como fundamentais na constituição da cultura ocidental.
A construção de uma nova política da verdade e os limites da ideologia
Quando Foucault defende uma nova relação da filosofia com o poder, ele também expressa o modo de atuar do “intelectual específico”:
Talvez poderíamos considerar que há ainda para a filosofia uma certa possibilidade de ter um papel em relação ao poder, que não será um papel de fundação ou de recondução do poder. Talvez a filosofia possa ter ainda um papel do lado do contra-poder, com a condição de que este papel não consista em fazer valer, frente ao poder, a lei da filosofia, com a condição de que a filosofia pare de se pensar como profecia (...) como pedagogia, ou como legislação, e que ela se dê por tarefa analisar, elucidar, tornar visível, e portanto intensificar as lutas que se desenrolam em torno do poder, as estratégias dos adversários no interior das relações de poder, as táticas utilizadas, os focos de resistências (FOUCAULT, 1994c: 540).
O papel da filosofia, desse modo, teria um significado outro do que o da ciência, que é o de fazer conhecer o que não vemos. A filosofia não deve descobrir o que está escondido, mas dar visibilidade justamente ao que é visível, fazer aparecer o que é próximo, o que é imediato, o que está intimamente ligado a nós mesmos e que, por isso mesmo, não percebemos. É o que ele chamou de uma “filosofia analítico-política” (FOUCAULT, 1994c: 541).
É nessa direção que Foucault percebe os movimentos sociais a partir dos anos de 1960, como o movimento das mulheres, por exemplo. Eles não visam o poder político ou o sistema econômico, já que os seus objetivos não são os mesmos que os dos movimentos políticos ou revolucionários tradicionais. Eles estão atentos às instâncias próximas de poder, que se exercem diretamente sobre os indivíduos. São “lutas imediatas”, “lutas anarquistas” (FOUCAULT, 1994c: 546). Não se trata, para esses grupos, de seguir o modelo leninista, que via a classe operária como a grande combatente da vanguarda [3], pois suas reivindicações são diferentes das que foram fortemente valorizadas no Ocidente sob o signo da revolução. O papel da filosofia analítico-política é justamente o de avaliar a importância desses fenômenos a que, até o momento presente, foi concedido apenas um valor marginal.
Com o intuito de uma desestabilização sem fim dos mecanismos de poder, essas lutas imediatas merecem, para Foucault, ao menos o mesmo mérito que damos às lutas revolucionárias tradicionais. Foucault, assim, escapa aos signos tão venerados da revolução e privilegia as atuações ligadas a conjunturas particulares, muito semelhantes ao seu modo de entender a figura do intelectual. Trata-se de tomar uma posição específica, que “está ligada às funções gerais do dispositivo da verdade em nossas sociedades” (FOUCAULT, 2005d: 13). A grande questão, portanto, não é criticar os conteúdos ideológicos da ciência, mas “saber se é possível constituir uma nova política da verdade (...) Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade” (FOUCAULT, 2005d: 14).
Lembro, além disso, que a crítica ao marxismo e a recusa de conceitos que o acompanhavam, como o de ideologia dominante, hegemonia, alienação, da revolução pela tomada de consciência, do partido revolucionário, do intelectual orgânico, não eram feitas somente por Foucault, mas por toda uma intelectualidade européia desde os últimos anos da década de 1940. Ressalto, inclusive, que tal problematização partiu de dentro do próprio marxismo, principalmente com o grupo Socialismo ou Barbárie (CASTORIADIS, 1983), criado na França em 1948, e que tinha como integrantes Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, Guy Debord, entre outros. Essas contestações prosseguem também fora do marxismo e intensificam-se cada vez mais nos anos 1950, 1960 e 1970. Nesse sentido, foram fundamentais: o Maio de 1968 não só na França, como no mundo inteiro, os movimentos feminista, hippie, black power e gay, assim como os “civil rights movements”, nos Estados Unidos.[4]
Em uma entrevista de 1978, “A cena da filosofia”, Foucault (1994d: 571-595) indica que “não é competente para fazer a divisão entre o verdadeiro e o falso” (FOUCAULT, 1994d: 571), e pretende descrever o teatro da verdade:
Como o Ocidente edificou um teatro da verdade, uma cena da verdade, uma cena para essa racionalidade que se tornou agora uma marca do imperialismo dos homens do Ocidente, já que (...) a economia ocidental, (...) chegou ao término de seu apogeu (...) Mas há algo que permaneceu, que o Ocidente sem dúvida terá deixado para o resto do mundo: uma forma de racionalidade. É uma certa forma de percepção da verdade e do erro, é um certo teatro do verdadeiro e do falso (FOUCAULT, 1994d: 572).
Foucault encontrou essa mesma racionalidade no marxismo de sua época. Em “Questões a Foucault sobre a geografia” (FOUCAULT, 1994e: 28-40), de 1976, ele mostra como o desagradava o projeto de fazer um discurso de verdade sobre qualquer ciência, pois este era, acima de tudo, um projeto positivista. Essa pretensão científica assemelha-se ao marxismo que, em uma posição de árbitro, juiz, testemunha universal, afirmava que “o marxismo, como a ciência das ciências, podia fazer a teoria da ciência e estabelecer a divisão entre ciência e ideologia” (FOUCAULT, 1994e: 29). Essa é uma posição recusada fortemente por Foucault. Interessava-o alguns combates que envolviam a medicina, a psiquiatria e a penalidade, mas ele nunca quis fazer uma história geral das ciências humanas, nem uma crítica geral da possibilidade de todas as ciências.
Entendo os estudos de Foucault sobre a loucura, a medicina, a prisão, a sexualidade, o neoliberalismo como críticas severas ao modo da ciência moderna lidar com a verdade, como o positivismo lógico, o marxismo, o humanismo, o estruturalismo. Foucault não se aproxima, em nenhum desses casos, de um método científico que se enxerga como neutro, ou dos procedimentos do materialismo histórico marxista que, no entanto, também critica fortemente a sociedade liberal e burguesa. Devo acrescentar que filósofos tais como G. Bachelard e G. Canguilhem, entre os anos de 1950 e 1960, também problematizaram drasticamente essa relação entre a verdade e a produção do conhecimento. Foucault inspirou-se bastante em suas reflexões arqueológicas quando escreveu seus primeiros livros: As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 2007b), A História da Loucura (FOUCAULT, 2005a), O Nascimento da Clínica (FOUCAULT, 1977), A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2008).[5] Mas suas críticas da década de 1980, ligadas aos conceitos de governo de si e dos outros (FOUCAULT, 2010) e de coragem da verdade (FOUCAULT, 2011b), possibilitaram uma nova relação entre a produção de conhecimento e a verdade dentro do seu próprio pensamento.
Foucault inicia o curso Do Governo dos Vivos (FOUCAULT, 2011a) com a descrição de Dion Cássio, um historiador do século II d.C., do exercício de poder no governo do imperador romano Sétimo Severo. Ele começa com esse exemplo para mostrar como manifestação de verdade e exercício de poder se relacionam não apenas por uma necessidade utilitária ou econômica, dizendo: “Trata-se de uma manifestação não econômica da verdade” (FOUCAULT, 2011a: 43-44), indicando como tanto o modo científico, positivista e racional, quanto a forma marxista de se relacionar com a verdade, que entende o exercício de poder como atrelado às relações econômicas, não atentam para a importância dos efeitos de verdade produzidos pelas relações de poder. A manifestação de poder de Severo, portanto, não era destinada a provar, demonstrar, refutar, organizar um conhecimento, pois, para Foucault, o exercício de poder não pressupõe somente um conhecimento útil e utilizável, mas uma manifestação de verdade.
Em Subjetividade e Verdade (FOUCAULT, 2016), Foucault defende que a verdade não é um conceito de conhecimento que podemos considerar como universalmente válido e autorizado. Ela é um sistema de obrigação, e não um conteúdo ou uma estrutura formal de conhecimento. Para ele, a ciência, o conhecimento objetivo é apenas um momento possível entre todas essas formas pelas quais a verdade pode se manifestar (FOUCAULT, 2011a: 46).
Essa noção de governo dos homens pela verdade foi elaborada para Foucault se deslocar da noção de saber-poder. No entanto, não podemos esquecer que ele contrapõe-se, também, em relação ao conceito de ideologia dominante, como havia defendido na entrevista “Verdade e Poder” (FOUCAULT, 2005d), em 1977. Nesse caso, ele disse:
A noção de ideologia me parece dificilmente utilizável por três razões. A primeira é que, queira-se ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade. Ora, creio que o problema não é de se fazer a partilha entre o que num discurso releva da cientificidade e da verdade e o que relevaria de outra coisa; mas de ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos. Segundo inconveniente: refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito. Enfim, a ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Por estas três razões creio que é uma noção que não deve ser utilizada sem precauções. (FOUCAULT, 2005d: 7).
Em Do Governo dos Vivos, ele faz a crítica da análise ideológica a partir das três objeções seguintes: a primeira, porque postula uma teoria imperfeita da representação; a segunda, por estar indexada à oposição do verdadeiro e do falso, da realidade e da ilusão, do científico e do não científico, do racional e do irracional; e a terceira, finalmente, pois recorre a um saber que se pergunta “como e por que em uma certa sociedade alguns dominam os outros” (FOUCAULT, 2011a: 52).
Para escapar desses problemas e desnaturalizar o modo como a relação entre poder e verdade foi pensada na modernidade, ele aponta diversas formas de ligar o exercício do poder à verdade no pensamento moderno, a partir do século XVII. Primeiramente, a verdade que deve ser manifestada é a do Estado como objeto de ação governamental, ou seja, o problema da razão de Estado tratado em Segurança, Território, População (FOUCAULT, 2008b); em segundo lugar, haveria a chegada a um ponto utópico na história em que o império da verdade faria reinar sua ordem sem que as decisões de uma autoridade tivessem que intervir, e o governo seria a superfície de reflexão da verdade. Trata-se da ideia dos fisiocratas, que ele mostrou em O Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2008c).
O terceiro momento reflete sobre o século XIX, em que a arte de governar está ligada à descoberta de uma verdade e ao seu conhecimento objetivo, propiciando a constituição de um saber especializado. Ele dá como exemplo desse princípio o socialista Saint-Simon, que estava ligado à ideia de progresso iluminista. Segundo W. Hofmann (HOFFMANN, 1984: 48-55), Saint-Simon entendia que a história da humanidade era regida pela grande lei do autoaperfeiçoamento, tal como ocorria na história da natureza. Na modernidade, porém, cabia a uma filosofia positiva, que se baseava na experiência, reconhecer as leis ordenadas do período, percebendo quais elementos representavam o progresso objetivo em comparação ao período precedente. Sua crítica da ordem vigente e a sua proposta de uma transformação passavam, portanto, pelo seguinte lema:
Não se trata mais de idealizar intelectualmente uma sociedade do futuro; em vez disso, devem ser já reconhecidas as tendências concretas e elas devem ser promovidas. Assim, no lugar do direito natural em Saint-Simon surge a ciência positiva. Faz parte da lei do desenvolvimento superior que as grandes questões sociais se posicionem (...) de uma maneira (...) cada vez mais generalizada (HOFFMANN, 1984: 49).
Ainda, em um quarto momento, muitos acreditaram que se fosse possível fazer com que os indivíduos conhecessem a verdade, o governo perderia sua legitimidade. E a revolução aconteceria pela tomada de consciência dos mecanismos de exploração e de dominação. Princípio, portanto, da tomada de consciência universal como o meio de perturbação dos governos, dos regimes e dos sistemas, como defendeu Rosa Luxemburgo[6], que foi uma importante teórica e ativista marxista do Partido Social Democrata da Alemanha, no início do século XX, e apareceu como uma das grandes vozes dissonantes da esquerda do período, fazendo críticas severas ao leninismo. Edson Passetti fala sobre a importância dos posicionamentos de Rosa Luxemburgo:
Entre os revolucionários, Rosa Luxemburgo, chamou a atenção, em seu ensaio Revolução Russa, de 1919, para a importância da democracia como forma de educação política do proletariado urbano e do campesinato durante a revolução. Alertou os bolchevistas para o perigo do totalitarismo, da ditadura do proletariado transformar-se em ditadura sobre o proletariado, mas continuou sendo considerada por Lenin como apenas uma anarquista. Teve suas idéias e críticas arquivadas até a segunda metade do século XX, depois da morte de Stalin e do notório massacre das comunas húngaras, em 1954 (PASSETTI, 2002: 149-150).
Apesar dessa posição dissonante, ela apostava, como os marxistas e socialistas, que a revolução não acontecia porque as “massas”, os operários estavam desprovidos da consciência da exploração. Cabia, nesse caso, ao intelectual ou ao Partido levar às classes dominadas a realidade objetiva das condições sociais e econômicas existentes para que, enfim, quando todos estivessem munidos desse conhecimento, lutassem contra a dominação e a opressão burguesa.
Finalmente, a última ideia ressalta que o triunfo dos regimes socialistas se deu exatamente porque todos sabiam a verdade, como disse Soljenítsin [7], que foi preso e condenado a trabalhos forçados pelo estalinismo. Ele ganhou grande destaque nos anos de 1970, denunciando a prática de repressão política soviética. Ou seja, no terror foi a verdade, e não a mentira, que imobilizou as pessoas (FOUCAULT, 2011a: 57-58).
Para Foucault, essas maneiras modernas de refletir as relações entre o governo e a verdade são definidas em função de um real que seria o Estado ou a sociedade. A sociedade é objeto de saber e de processos espontâneos. Além disso, essas análises pressupõem um saber que seria da ordem do conhecimento objetivo dos fenômenos. A ligação entre exercício de poder e manifestação da verdade, porém, é muito mais antiga, e está para além da finalidade de governar de modo eficaz.
É interessante, portanto, perceber como Foucault problematiza o modo como a época moderna pensou essa relação entre o exercício de poder e a manifestação da verdade, indicando as limitações dessas análises. Nem sempre governar significou ter uma relação com o real, entendido como o Estado ou a sociedade, e implicou elaborar uma racionalidade de Estado. As diferenças demonstram a sua particularidade histórica, como também a fragilidade de sua existência. Por isso, a pergunta que norteia o curso: “como, em nossa civilização, funcionaram as relações entre o governo dos homens, a manifestação da verdade sob a forma da subjetividade e a salvação para todos e cada um?” (FOUCAULT, 2011a: 68) é uma recusa à explicação feita pela análise ideológica. Esta defende que quanto mais os homens estão preocupados com a salvação do além, é mais fácil governá-los aqui embaixo (FOUCAULT, 2011a: 68). Ele comenta sobre o significado dessa recusa:
Não é mais a crítica da representação em termos de verdade e ideologia ou de ciência, de racionalidade ou irracionalidade; não é mais a crítica da representação nesses termos que deverá servir de indicador para definir a legitimidade do poder ou para denunciar sua ilegitimidade: é o movimento para separar-se do poder que deve servir de revelador da transformação do sujeito e das relações que ele mantém com a verdade (FOUCAULT, 2011a: 70).
Ao afirmar que nenhum poder é evidente ou inevitável e, assim, não deve ser aceito, Foucault ainda se pergunta:
(...) o que é feito do sujeito e das relações de conhecimento no momento em que nenhum poder é fundado no direito, nem na necessidade; no momento em que qualquer poder jamais repousa a não ser sobre a contingência e a fragilidade de uma história; no momento em que o contrato social é um blefe e a sociedade civil um conto para crianças; no momento em que não existe nenhum direito universal, imediato e evidente que possa, em todo lugar e sempre, sustentar uma relação de poder qualquer que ela seja (FOUCAULT, 2011a: 70-71).
É, nesse momento, que Foucault discute as suas aproximações e diferenças com o anarquismo, ao propor o método da “anarqueologia”. Interessa-me entender como o tema do anarquismo aparece a partir da crítica que ele faz ao conceito de ideologia. A anarqueologia dos saberes implica excluir a divisão entre o científico e o ideológico e, ainda, mostrar como “a especificidade da ciência não seja definida por oposição a todo o resto ou a toda ideologia, mas que sua especificidade seja simplesmente definida entre outros regimes de verdade ao mesmo tempo possíveis e existentes” (FOUCAULT, 2011a: 86). Essa crítica também se estende à discussão do conceito de evidência em relação à verdade (FOUCAULT, 2011a: 80-81), como ao problema da lógica ((FOUCAULT, 2011a: 82-83). Novamente, ele indica a sua preocupação com outros regimes possíveis de verdade:
(...) é preciso compreender a ciência como somente um dos regimes possíveis de verdade e que existem outros modos de ligar o indivíduo à manifestação do verdadeiro por outras artes, com outras formas de ligação, com outras obrigações e outros efeitos além desses definidos na ciência, por exemplo, pela autoindexação do verdadeiro (FOUCAULT, 2011a: 84).
A reflexão em torno da coragem da verdade (FOUCAULT, 2011b) trata claramente dessa problemática, indicando outros regimes de verdade possíveis. Será a partir dessas reflexões sobre o dizer verdadeiro que Foucault perguntará: o que temos para além do sujeito de conhecimento e da sua ligação com a verdade? É uma crítica, dessa maneira, não somente ao pensamento científico ou ao marxismo, mas também a todo um modo de pensar a mudança ou a revolução. A crítica à ideologia aparece novamente no seguinte trecho de Foucault, no qual ele explica seus estudos sobre a loucura:
(...) à série categoria universal, posição humanista, análise ideológica e programação de reformas, opõe-se uma série que seria: recusa dos universais, posição anti-humanista, análise tecnológica dos mecanismos de poder; e, no lugar de um programa de reformas, digamos, relações mais extensas de pontos de não aceitação (FOUCAULT, 2011a: 73).
A genealogia como a metáfora da guerra e os limites da dialética
É no curso dado no Collège de France, em 1976, intitulado Em Defesa da Sociedade, que Foucault trata da concepção da história entendida pela genealogia nietzschiana como relação de forças, como dominação, enfim, como guerra. A questão principal que ele se propõe a estudar em todo o curso é a seguinte:
(…) como, desde quando e por que se começou a perceber ou a imaginar que é a guerra que funciona sob e nas relações de poder? Desde quando, como, por que se imaginou que uma espécie de combate ininterrupto perturba a paz e que, finalmente, a ordem civil (...) é uma ordem de batalha? Quem imaginou que a ordem civil era uma ordem de batalha? (...) quem procurou, no barulho da confusão da guerra, quem procurou na lama das batalhas, o princípio de inteligibilidade da ordem, do Estado e de suas instituições e de sua história? (FOUCAULT, 2005c: 54).
Em outras palavras, muitos poderiam perguntar: como foi possível inverter o princípio de Clausewitz?[8] Para Foucault, entretanto, a pergunta deveria ser formulada de outro modo: qual foi o princípio que Clausewitz, no século XIX, inverteu quando disse “a guerra não passa de política continuada?” (FOUCAULT, 2005c: 54). O princípio contrário – de que a política é a guerra continuada por outros meios – é anterior a Clausewitz e, então, foi ele quem inverteu uma tese, que circulava desde os séculos XVII e XVIII. A genealogia da história como guerra, portanto, da própria genealogia de Foucault, remonta a esse período.
Foucault aponta, na “Aula de 21 de janeiro de 1976”, como o desenvolvimento dos Estados, ao longo de toda a Idade Média e no limiar da época moderna, produziu um paradoxo histórico: com o aparecimento de um poder estatal centralizado, apenas este podia iniciar a guerra e, com isso, foram apagadas as relações belicosas que estavam presentes no corpo social inteiro.[9] O paradoxo surge nesse momento. Ao mesmo tempo em que é proibida a guerra entre os integrantes que compunham o interior de cada Estado, aparece um novo discurso, o da guerra entendida como relação social permanente. Para Foucault, esse discurso tem sua data precisa, depois do fim das guerras civis do século XVI. Esse é primeiro discurso histórico-político da sociedade, em contraposição ao filosófico-jurídico. O primeiro discurso defende que o poder político não começa quando cessa a guerra, pois foi esta que presidiu o nascimento dos Estados. Dessa maneira, o direito, a paz e as leis nasceram no sangue das batalhas, e não são produtos de um contrato decidido harmonicamente por todas as partes.
Segundo esse discurso histórico-político, sob a pretensa pacificação da lei, a guerra continua permeando todos os seus mecanismos de poder. Há uma guerra permanente de uns contra os outros, e essa frente de batalha coloca necessariamente os lados num campo ou no outro. O sujeito neutro, então, não existe, porque um sempre será forçosamente o adversário de outro. Percebe-se que o que perpassa a sociedade é uma “estrutura binária”, e não uma descrição piramidal feita na Idade Média ou as que as teorias filosófico-jurídicas faziam do corpo social, como destaca Foucault:
Uma estrutura binária perpassa a sociedade (...) À grande descrição piramidal que a Idade Média ou as teorias filosófico-jurídicas faziam do corpo social, à grande imagem do organismo ou do corpo humano que Hobbes apresentará, ou ainda à organização ternária (em três ordens) que vale para a França (e até certo ponto para certo número de países na Europa) e que continuará a articular certo número de discursos e, em todo caso, a maioria das instituições, opõe-se – não, exatamente, pela primeira vez, mas pela primeira vez como articulação histórica precisa – uma concepção binária de sociedade. Há dois grupos, duas categorias de indivíduos, dois exércitos em confronto (FOUCAULT, 2005c: 59).
Para esse discurso histórico-político, então, o corpo social não é comandado por necessidades da natureza ou por exigências funcionais. Nele, devemos sempre redescobrir a guerra, seus acasos e suas peripécias. Foucault considera esse discurso importante para a sociedade ocidental, pois ele será o primeiro, desde a Idade Média, que pode ser denominado, rigorosamente, de histórico-político. E por duas razões: a primeira delas refere-se ao sujeito que produz esse discurso. Ele não procura a posição do jurista ou do filósofo, isto é, a posição do sujeito universal, totalizador ou neutro. Quem narra a história e diz a verdade está, necessariamente, de um lado ou de outro, já que batalha para uma vitória particular. Aparece, dessa maneira, não o discurso da totalidade, da neutralidade ou da verdade, mas um discurso de perspectiva, bem ao modo daquela história que defendiam Nietzsche e Foucault (2005e: 30):
(…) sem dúvida, ele faz o discurso do direito, e faz valer o direito, reclama-o. Mas o que ele reclama e o que faz valer são os “seus” direitos –“são os nossos direitos”, diz ele: direitos singulares, fortemente marcados por uma relação de propriedade, de conquista, de vitória, de natureza. Será o direito de sua família ou de raça, o direito de sua superioridade ou o direito da anterioridade, o direito das invasões triunfantes ou o direito das ocupações recentes ou milenares. De todo modo, é um direito a um só tempo arraigado numa história e descentralizado em relação a uma universalidade jurídica. E, se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, de seus direitos) fala da verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do filósofo (...) é sempre um discurso de perspectiva (FOUCAULT, 2005c: 60-61).
A segunda razão destaca a inversão das polaridades tradicionais de inteligibilidade, pois esse discurso postula a sua explicação por baixo (FOUCAULT, 2005c: 63). A parte de baixo, nessa explicação, porém, não é a mais clara e a mais simples, mas o lado mais confuso, mais obscuro, mais desordenado e o mais condenado ao acaso. Foucault fala sobre essa explicação pela parte de baixo:
(…) o que deve valer como princípio de decifração da sociedade e de sua ordem visível é a confusão da violência, das paixões, dos ódios, das cóleras, dos rancores, dos amargores; é também a obscuridade dos acasos, das contingências, de todas as circunstâncias miúdas que produzem as derrotas e garantem as vitórias (FOUCAULT, 2005c: 63-64).
São esses princípios, portanto, que constituem a trama permanente da história e das sociedades. E é acima dessa trama, dessa explicação por baixo, que se constitui algo de frágil e de superficial, para manter a vitória, para conservar ou inverter as relações de força, como explicita Foucault: “(...) é uma racionalidade (...) cada vez mais vinculada também à astúcia e à maldade daquele que, tendo por ora a vitória, e estando favorecido na relação de dominação, têm todo o interesse de não as pôr de novo em jogo” (FOUCAULT, 2005c: 64). Temos, dessa maneira, nessa explicação, um eixo ascendente: enquanto, na base, encontra-se uma irracionalidade fundamental e permanente, na qual irrompe a verdade, em suas partes altas, temos uma racionalidade frágil, transitória, sempre comprometida com a ilusão e a maldade. A verdade, assim, está do lado da desrazão e da brutalidade, enquanto a razão, do lado da quimera e da maldade. É uma inversão do discurso explicativo do direito e da história existente até esse momento. Como bem ressalta Foucault:
(…) o esforço explicativo desse discurso consistia em destacar uma racionalidade fundamental e permanente, que seria por essência vinculada ao justo e ao bem, de todos os acasos superficiais e violentos, que são vinculados ao erro. Inversão, pois, acho eu, do eixo explicativo da lei e da história (FOUCAULT, 2005c: 65).
A última razão para ele considerar o discurso histórico-político importante é que ele se desenvolve inteiramente na dimensão histórica. Para esse discurso, não se trata de tomar a história como um dado superficial, que se deveria ordenar em alguns princípios estáveis e fundamentais. Trata-se, entretanto, de redescobrir o passado esquecido das lutas reais, das vitórias efetivas e das derrotas. Sob a lei, a estabilidade do direito e a verdade, é preciso mostrar os gritos de guerra e a dissimetria das forças. Não se deve, assim, entender a dialética como a grande volta a esse discurso, pois, como aponta Foucault, ela atuou como a retomada e a mutação do discurso filosófico-jurídico. A dialética codifica a luta, a guerra e os enfrentamentos dentro de uma pretensa lógica da contradição e, ainda, retoma a totalização, a racionalidade fundamental e o sujeito universal. Será a genealogia de Nietzsche e de Foucault que retomará esse discurso histórico-político, e fará da história uma guerra constante.
Para Foucault, portanto, essa inversão do problema da guerra no discurso da história, não foi o efeito do controle assumido por uma filosofia dialética sobre a história. A modificação pela burguesia, portanto, de um discurso histórico, dos seus elementos fundamentais que ele possuía no século XVIII foi, para Foucault, uma “autodialetização” do discurso histórico. É a partir do século XIX que aparece essa relação característica entre a filosofia e a história, quando a primeira encontra na segunda e no presente, o momento em que o universal se expressa em sua verdade. No século XVIII, a filosofia da história existia apenas como uma especulação sobre a lei geral da história e, é somente a partir do século XIX que começa algo novo e fundamental, caracterizado pelas seguintes perguntas: “o que, no presente, traz consigo o universal? O que, no presente, é a verdade do universal?” (FOUCAULT, 2005c: 284). Estas são questões tanto da filosofia quanto da história. E é, nesse momento, que Foucault aponta o nascimento da dialética e, com ela, a colonização do discurso da história como guerra.
O par burguesia e dialética, assim, modificou drasticamente o discurso da história. Ao colonizar o discurso histórico-político, a dialética civilizou as contradições, as dominações e a guerra presentes na história. Esse aburguesamento, também, regularizou os diferentes saberes, homogeneizando-os e hierarquizando-os em torno da ciência. Não podemos, entretanto, deixar de perceber que essa “dialetização” da história produziu inúmeros contra-ataques, tal como a genealogia de Foucault no século XX.
A insurreição dos “saberes sujeitados” e os limites do marxismo como ciência
Em 1976, no curso Em Defesa da Sociedade, Foucault entende que seu trabalho fazia parte de problematizações peculiares. Primeiramente, o que ele chamou de a “eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas” (FOUCAULT, 2005c: 8). Com a eficácia dessas críticas descontínuas, particulares e locais, descobriu-se algo fundamental: o “efeito inibidor próprio das teorias totalitárias (...) ou globais” (FOUCAULT, 2005c: 10). Isso não quer dizer que o marxismo e a psicanálise, duas teorias totalizantes, não deram instrumentos localmente utilizáveis, mas só os forneceram com a condição de que a unidade teórica do discurso ficasse suspensa, recortada e deslocada. Privilegiou-se, nesse período, o caráter local da crítica:
(…) caráter local da crítica, o que não quer dizer, creio eu, empirismo obtuso, ingênuo ou simplório, o que também não quer dizer ecletismo frouxo, oportunismo, permeabilidade a um empreendimento teórico qualquer, nem tampouco ascetismo um pouco voluntário, que se reduziria ele próprio à maior magreza teórica possível. Creio que esse caráter essencialmente local da crítica indica, de fato, algo que seria uma espécie de produção teórica autônoma, não centralizada, ou seja, que, para estabelecer sua validade, não necessita da chancela de um regime comum (FOUCAULT, 2005c: 10-11).
Além disso, essa crítica local ocorreu através do que Foucault denominou como “insurreição dos ‘saberes sujeitados’” (FOUCAULT, 2005c: 11). Os saberes sujeitados podem ser designados como os conteúdos históricos que foram sepultados e mascarados em sistematizações formais. Isso porque, para ele, no caso da crítica efetiva da prisão e do hospício, não foi uma semiologia da vida em hospício ou uma sociologia da delinqüência que a permitiram, mas o aparecimento de conteúdos históricos.
Por “saberes sujeitados”, ainda, Foucault entende outra coisa: uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não-conceituais, insuficientemente elaborados, ingênuos, hierarquicamente inferiores e que estavam abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade esperada. Há o reaparecimento, dessa maneira, desses saberes denominados como “de baixo”, exatamente por serem desqualificados, como os saberes do psiquiatrizado, o do doente, o do enfermeiro, o do médico, o do delinqüente, etc. Esse “saber das pessoas” que, segundo Foucault, “não é de modo algum um saber comum, um bom senso, mas, ao contrário, um saber particular, local, regional, um saber diferencial, incapaz de unanimidade e que deve sua força apenas à coincidência que opõe a todos aqueles que o rodeiam” (FOUCAULT, 2005c: 12), que proporcionou a crítica local.
É, nesse sentido, que Foucault denomina esses últimos embates de “pesquisas genealógicas múltiplas”, porque significavam, ao mesmo tempo, a redescoberta exata das lutas e a memória bruta dos combates. Essas genealogias só foram possíveis pela revogação da tirania dos discursos englobadores e de suas hierarquias. Para a genealogia, ainda, não se trata de opor a uma teoria abstrata a multiplicidade concreta dos fatos; também não seria o caso de desqualificar um dado conhecimento disperso, que não é acabado e organizado em torno de um corpus reconhecido e aprovado, opondo-lhe, na forma de um cientificismo, o rigor dos conhecimentos bem estabelecidos. Não se trata, assim, nem de empirismo e nem de positivismo, em seus sentidos comuns. Trata-se, ao contrário, de privilegiar os saberes locais, descontínuos, desqualificados e não legitimados, contra uma instância teórica unitária que tem por função hierarquizar e ordenar em nome de um conhecimento verdadeiro e em nome dos direitos da ciência. As genealogias, nesse sentido, são anticiências, mas em uma direção específica:
As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata. As genealogias são, muito exatamente, anticiências. Não que elas reivindiquem o direito lírico à ignorância e ao não-saber, não que se tratasse da recusa de saber ou do pôr em jogo, do pôr em destaque os prestígios de uma experiência imediata, ainda não captada pelo saber. Não é disso que se trata. Trata-se da insurreição dos saberes. Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa (...) É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar o combate (FOUCAULT, 2005c: 13-14).
A genealogia, dessa forma, tem um empreendimento específico: libertar os saberes históricos, para que tenham a capacidade de lutar contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico que enquadra e formata as multiplicidades. O projeto da genealogia, então, é a reativação dos saberes locais contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos de poder. E o que mais interessa Foucault, nesses estudos, não é dar um solo teórico contínuo e sólido a todas as genealogias dispersas, unificando-as, mas entender o que está em jogo nesse movimento de colocar em oposição, em luta ou em insurreição, os saberes contra a instituição e os efeitos de saber e de poder do discurso científico. De qualquer modo, o que está em jogo em todas essas genealogias é saber: o que é o poder que apareceu com o desmoronamento do nazismo e o recuo do estalinismo?
Para Foucault, nesse caso, interessa problematizar uma dada certeza: a de que a análise dos poderes poderia ser deduzida da economia. Apesar das grandes diferenças, ele destaca essa certeza em comum tanto na concepção jurídica e liberal do poder político, presente nos filósofos do século XVIII, quanto na concepção corrente do marxismo de poder. É um fenômeno caracterizado por ele como o “economicismo” na teoria do poder. Vejamos, primeiramente, o caso da teoria jurídica clássica do poder. Para esta, o poder é um direito que se possuiria como um bem, e que se poderia transferir ou alienar, através de um ato fundador de direito, que seria da ordem da cessão ou do contrato. Todo indivíduo deteria o poder e o cederia, total ou parcialmente, para constituir uma soberania política. Esse modelo de operação jurídica, então, defende que o poder seria da ordem do contrato. Daí as comuns analogias entre o poder e os bens, o poder e a riqueza.
Há, por outro lado, na concepção marxista corrente de poder algo diferente: a sua “funcionalidade econômica” (FOUCAULT, 2005c: 19). Nesse caso, ele teria como papel essencial manter relações de produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma dominação de classe, que as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas tornaram possível. O poder político, assim, encontraria na economia sua razão de ser histórica. Diante dessas duas concepções de poder, Foucault aponta o grande problema de suas pesquisas, de suas genealogias, a partir das seguintes questões:
Primeiramente: o poder está sempre numa posição secundária em relação à economia? É sempre finalizado e como que funcionalizado pela economia? O poder tem essencialmente como razão de ser e como finalidade servir à economia? Está destinado a fazê-la funcionar, a solidificar, a manter, a reconduzir relações que são características dessa economia e essenciais ao seu funcionamento? Segunda questão: o poder é modelado com base na mercadoria? O poder é algo que se possui, que se adquire, que se cede por contrato ou força, que se aliena ou se recupera, que circula, que irriga esta região, que evita aquela? (FOUCAULT, 2005c: 20-21).
Para Foucault, é necessário utilizar instrumentos diferentes para analisar as relações de poder, mesmo que elas estejam profundamente intrincadas com as relações econômicas. O que diz, fundamentalmente, a “hipótese de Nietzsche”, segundo a qual o poder deve ser analisado a partir do modelo da guerra? Primeiro, que as relações de poder se apoiam em uma relação de força estabelecida em um dado momento, historicamente preciso, na guerra e pela guerra. E, além disso, se o poder político pára a guerra e tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da guerra. O poder político, contrariamente, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, em uma guerra silenciosa, tanto nas instituições, nas desigualdades econômicas, quanto na linguagem e no corpo dos indivíduos. A política é a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. Além disso, no interior dessa “paz civil”, as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder e as modificações das relações de força, num sistema político, devem ser interpretados apenas como as continuações da guerra.
Em Segurança, Território, População (FOUCAULT, 2008b: 5-6), Foucault fala da prática filosófica preocupada com uma política da verdade. As suas análises sobre as relações de poder foram de extrema importância para diagnosticar as lutas, os embates, os choques desse círculo da filosofia que compreende o combate em torno da verdade. Mas, a política convencional não lhe provoca empolgações. Decepcionado com os movimentos de extrema esquerda depois do “Maio de 1968”, e cansado das inúmeras discussões em torno do marxismo, ele revela o seu desejo de “nunca fazer política” (FOUCAULT, 2008b: 6). Sua militância, portanto, ocorria em outras frentes: “Tentei fazer coisas que implicassem um engajamento pessoal, físico e real, e que colocassem os problemas em termos concretos, precisos, definidos no interior de uma situação dada” (FOUCAULT, 2008b: 31-32). As análises apresentadas nesse curso sobre o poder pastoral contrapõem-se à concepção de ideologia, quando ele ressalta as estratégias e as táticas:
Em vez de dizer: cada classe, ou grupo, ou força social tem sua ideologia, que permite traduzir na teoria suas aspirações, aspirações e ideologia de que se deduzem rearranjos institucionais, que correspondem às ideologias e satisfazem às aspirações – conviria dizer: toda transformação que modifica as relações de força entre comunidades ou grupos, todo conflito que os põe em confronto ou que os faz rivalizar requer a utilização de táticas que permitem modificar as relações de poder e a introdução de elementos teóricos que justificam moralmente ou fundam em racionalidades essas táticas (FOUCAULT, 2008b: 285).
Por fim, seria fundamental ressaltar que Foucault distingue o marxismo de Marx. O seu problema é com o primeiro, que se tornou uma modalidade de poder na sociedade moderna. Ele emergiu dentro de um pensamento racional, intitulando-se a ciência das ciências e acabou, assim, por ligar-se a toda uma série de proposições coercitivas. E é exatamente o caráter de profecia que possibilitava o exercício dessas forças. Além disso, o marxismo funcionou por meio de um partido político e nunca conseguiu se livrar da dependência em relação ao aparelho estatal. Ele forma, para Foucault, um conjunto de relações de poder, ao se ver como um discurso científico, uma profecia e uma filosofia de Estado ou ideologia de classe. Para Foucault, portanto, é preciso acabar com toda essa dinâmica de relações de poder ligadas ao marxismo e às suas funções.
Obviamente, ele reconhece a grande importância do pensamento de Marx, mas o uso que o marxismo fez de seu pensamento acabou por elegê-lo como um detentor decisivo da verdade. Foucaul critica, então, a ligação entre os efeitos de verdade e a filosofia estatal em que se baseia o marxismo. Para ele, não se deve procurar a autenticidade de Marx, mas utilizá-lo no que ele nos serve, profaná-lo, desviá-lo, até que se possa seguir em frente e inventar novos modos de sonhar politicamente (FOUCAULT, 1994f). Nessa direção, é fundamental prestar atenção à seguinte frase de Foucault: “o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis” (FOUCAULT, 1994g: 67). O que ressoa dessa frase é a insistência de Foucault na invenção de novas formas de militâncias políticas e de artes do viver.
(Este texto conjuga algumas das reflexões que realizei em: (VIEIRA, 2008) e (VIEIRA, 2015). Ambos os trabalhos foram financiados pela FAPESP.)
AUTORA
* Priscila Piazentini Vieira é professora adjunta do Departamento de História da UFPR desde 2015. Possui graduação (2005), mestrado (2008), doutorado (2013) e é pós-doutoranda em História pelo IFCH da UNICAMP, sob a orientação de Margareth Rago. Entre 2010 e 2011, fez Doutorado Sanduíche na Université Est-Créteil, com a supervisão de Frédéric Gros. Em 2005, teve sua monografia Michel Foucault e a História Genealógica em Vigiar e Punir publicada e premiada pelo Concurso de Monografias do IFCH da UNICAMP. Em 2015, teve sua tese A coragem da verdade e a ética do intelectual em Michel Foucault publicada como livro pela Editora Intermeios. Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria da História e História Contemporânea.
REFERÊNCIAS
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[1] Dezessete anos antes, na “Introdução” de Arqueologia do Saber, Foucault define a sua “história do pensamento”, aproximando-a à nova história francesa, como a história das mentalidades, por exemplo. Naquele momento, não se tratava de comparar os diferentes objetos de estudo, mas de ressaltar as noções de tempo descontínuo e de “documento- monumento” partilhadas tanto por Foucault quanto pela historiografia francesa. (FOUCAULT, 2008: 03-20).
[2] Outro texto que trata dessa concepção de experiência é: “Préface à l’Histoire de la sexualité” (FOUCAULT, 1994b: 578-584).
[3] Ver: (LÊNIN, 2006).
[4] Sobre esses movimentos de “Contracultura”, ler: (ROSZAK, 1972); (PEREIRA, 1983); (REIS FILHO, 1998); (KURLANSKI, 2005); (ARTIÈRES, 2008).
[5] Para entender essa discussão, ler: (MACHADO, 1982).
[6] Ver a coletânea de textos de Rosa Luxemburgo em: (CASTRO, 1979).
[7] Sobre Soljenítsin, ler: (CHRISTOFFERSON, 2009: 117-146).
[8] Clausewitz foi um general e estrategista militar prussiano do século XIX. O princípio, referido por Foucault, de que “a guerra é a continuação da política por outros meios” foi desenvolvido em sua obra Da Guerra, de 1874. (CLAUSEWITZ, 1996).
[9] Para entender a importância da guerra para a nobreza, e a identificação desta com a cavalaria, na Idade Média, ver: (DUBY, 1989).
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017
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