Everton Behrmann Araújo*
RESUMO:Este trabalho busca analisar as construções discursivas na imprensa sobre relações de poder e sociabilidades desenvolvidas no espaço urbano da cidade de São Paulo entre 1950 – 1960, mais especificamente a “Boca do Lixo”, lugar que ficou conhecido a partir dos anos 1950 por abrigar uma variedade de marginalizados, onde foram estabelecidas formas de organização e códigos de conduta que insultavam a moral vigente.
Palavras Chave: Discurso. Saber. Chavão. Faits Divers. Marginais.
Em 1954, a cidade de São Paulo comemorava o seu IV centenário. Em torno dos festejos criou-se um ambiente simbólico tão forte que a historiadora Maria Izilda Matos localiza nesse ano o que ela chamou “a invenção da paulistaneidade”. Ela destaca o termo invenção e o conceitua como um processo de construção variável ao longo do tempo, forjado em diferentes espaços, com diversos objetivos e no caso específico da capital paulista, diretamente atrelado aos conceitos de progresso, modernidade e trabalho. (MATOS, 2007, p.71) Devido a esse marco simbólico para a cidade, a década de 1950 foi marcada por uma intensificação do processo de transformações urbanas iniciadas no começo do século. Não por acaso, o lema escolhido para as comemorações do IV centenário foi: “São Paulo: a cidade que mais cresce no mundo”, que sintetiza a perseguição do ideal de progresso e o tom ufanista que se queria imprimir à data. São Paulo estava se abrindo à modernidade e seus moradores, mais do que nunca, estavam se entusiasmando com o progresso capitalista. Para Matos, essa construção do moderno está ligada, também, ao diagnóstico de um presente problemático e foi na projeção de um futuro exemplar que as autoridades da época procuraram justificar algumas ações de intervenção.
Entre as ações de intervenção que necessitavam ser justificadas para que a população pudesse comemorar tranquilamente o IV Centenário da capital bandeirante livre do contato com práticas e sociabilidades consideradas nocivas e degradantes, uma, em especial, era questão de honra para o governo paulistano: a extinção da zona de meretrício do Bom Retiro. Criada na década de 1940, por decreto do então governador Adhemar de Barros, essa “zona” ficava confinada para além das linhas dos trens, nas ruas Itaibocas e Aimorés, no Bairro do Bom Retiro. O aparelho policial via na forma confinada de meretrício uma série de vantagens, entre as quais a possibilidade de um melhor policiamento e higienização, além de expor menos as boas famílias forçadas a transitar pela parte boêmia da cidade. (FONSECA, 1982, p.108).
No entanto, depois de alguns anos, setores da sociedade e da imprensa começaram a cobrar do governo uma atitude em relação àquele antro que se localizava no coração da metrópole. Essa demanda foi concretizada em dezembro de 1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez publicou um decreto colocando fim às atividades da Zona de Meretrício. As intenções do governador e da Secretaria de Segurança, entretanto, não eram somente acabar com a prostituição localizada no Bom Retiro, mas antes, por um fim definitivo à atividade da prostituição na cidade de São Paulo.
Como já podemos supor, não foi bem-sucedida a intenção de extirpar definitivamente, do solo da capital paulista, a prostituição e outras práticas que se desenvolvem em seu entorno. Com a proibição da Zona, as mulheres, sem terem de onde tirar o seu sustento, migraram para as imediações do Bom Retiro, passando a desenvolver suas atividades de forma ilegal nas ruas do bairro de Campos Elíseos, potencializando, assim, a prática do chamado trottoir, atraindo para as imediações todas as atividades e sociabilidades que geralmente se desenvolvem em torno da prostituição. Sobre isso, Hiroito de Moraes Joanides — malandro que viveu na região e que se tornaria notório nas páginas policiais dos jornais — escreve de maneira irônica em autobiografia: “Fechava-se o local, mas não as pernas daquelas mulheres” (JOANIDES, 2003, p.35).
A historiadora paulista Margareth Rago afirma que a atividade da prostituição desempenha certo papel positivo na economia dos afetos em uma sociedade, sendo praticamente impossível domar completamente a inclinação para o que chama de “forças dionisíacas,” que correspondem ao universo do prazer e do lúdico atuantes em seu interior (RAGO, 1985, p.12). Ao tentar reprimir essas forças, corre-se o risco de deixar emergir o lado violento e recalcado da sociedade. Sobre essa tentativa de frear o dionisíaco da alma humana, o lado noturno da vida, o historiador Tony Hara diz:
Seja por sabedoria imitadora ou por estupidez desesperada, os homens tentaram construir também as suas muralhas e domesticar as forças do mal. Ergueram-se assim, os muros do Estado, da Pátria, da família, das escolas, dos conventos, dos hospitais psiquiátricos, das fábricas, da identidade. Os homens construíram todas essas máquinas para barrar as forças malditas que fazem parte do cotidiano de nossa existência. É evidente que todo esse trabalho de esquadrinhamento social não teve o resultado esperado, mas a consequência desses esforços de domesticação da noite, ainda podemos sentir no tempo atual, nesse exato instante que passa.(HARA, 2004, p.26).
A Boca do Lixo surge como refluxo causado pela ação do aparelho repressivo, que na tentativa de extirpar as práticas “sujas” do seio da capital paulista, acabou por espalhar essas atividades pelo centro. De outra forma, o local, também, surge como objeto forjado nas páginas dos jornais, através de um tipo de jornalismo sensacionalista veiculado nas seções da reportagem policial que cunhou o nome do local como “Boca do Lixo”. Pelo fato das atividades ilícitas terem se concentrado no entorno de ruas que formavam uma espécie de quadrado, a crônica policial também se referia à Boca como o “Quadrilátero do Pecado”. Esses termos eram usados para estigmatizar essa área enquanto lugar onde se concentravam os piores sujeitos da cidade, onde se desafia a lei, as convenções morais e onde a legalidade é constantemente desafiada: “seres comparáveis aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade”, conforme observa a historiadora Angela Aparecida Teles (TELES, 2012, p.50).
Faz parte da linguagem utilizada pela reportagem policial o uso exagerado de palavras chave, ou “chavão”, para se referir a objetos, sujeitos, espaços ou temas tratados em suas páginas. O “chavão” e o “lugar-comum” ocupam uma função específica na escrita jornalística. Referem-se, em primeiro lugar, a um nível de comunicação bastante popular: são operações linguísticas perpassadas por um universo folclórico, expressões dessimbolizadas, triviais e usadas à exaustão nas reportagens policiais. O jornalista Claúdio Julio Tognolli pesquisou o uso dessas expressões em seu trabalho de mestrado A sociedade dos chavões: presença e função do lugar-comum na comunicação, pensando na função que eles exercem na escrita do texto do jornal diz:
O chavão se reproduz em todos os grupos, níveis da fala, diferentes esferas sociais e categorias profissionais. Num jogo de linguagem, os chavões têm servido como autênticas peças, ao que alguns chamariam de a mais fina forma de reificação do pensamento, volta e meia sitiado por ofegantes tentativas de criatividade. Temos aqui, diga-se, um terminus ad quem: palavras-peças que dão respostas imediatas a cada jogo, a cada interação, sem que a palavra passe, necessariamente, pelo processo de pensamento, isto é, a simbolização. (TOGNOLLI, 2001, p.17).
Portanto, neste artigo, analisaremos a cobertura jornalística em relação aos acontecimentos na chamada “Boca do Lixo” entre 1953 e 1963, especificamente nas páginas dos jornais Diário da Noite, Notícias Populares e O Estado de São Paulo, no sentido de observar como essas práticas e sociabilidades desenvolvidas nesse espaço eram estigmatizadas e estereotipadas com intenção de enquadrar e normatizar os praticantes que nele viviam. Durante o período que propomos estudar, a reportagem policial cobria diariamente a “Boca do Lixo”, a ponto de ser possível acompanhar nas leituras dessas reportagens os desdobramentos de cada caso, dia após dia; da prisão de um malandro à construção da peça de defesa dos advogados. Era uma cobertura tão detalhada – acontecimento por acontecimento – que podemos comparar ao enredo de uma novela ou romance. A leitura de um jornal e o acompanhamento de um assunto ou objeto específico nas suas páginas não é algo simples. Em um único jornal, sobre uma mesma notícia ou fato, podemos ter a opinião e a análise dos mais diversos sujeitos, que ocupam diferentes territórios de fala e emitem pontos de vista diametralmente opostos sobre um mesmo fato. O historiador José D’Assunção Barros nos alerta que ao fazer o uso do jornal enquanto fonte, devemos levar em conta a multiplicidade de vozes e de lugares de fala que estão presentes nesse tipo de documentação. Assim, o aparecimento dessas outras vozes não deve ser percebido ou analisado apenas sob o ponto de vista de que é o autor quem está falando, mas deve-se levar em consideração, também, que esse autor pode estar representando à fala de uma instituição, de uma comunidade profissional ou uma disciplina e que vai muito além de sua própria fala (BARROS, 2010, p.21).
A forma como essa diversidade de vozes e sujeitos é organizada e distribuída no interior dos jornais lembra o que Michel Foucault chamou de “procedimentos internos” de interdição do discurso, que submete o acontecimento e o acaso do discurso a uma ordem, no caso do jornal, a sua “política editorial”, que tem relação direta com seus interesses no jogo de poder da sociedade. Diz ele: “são procedimentos que funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...]”. Foucault elenca três categorias internas de interdição do discurso, as quais tentaremos resumir conceitualmente. A categoria do “comentário” é o procedimento que permite que seja dito algo além do texto, desde que o texto mesmo seja dito. Sobre isso temos no jornal a seção de “cartas” ou, no jargão jornalístico mais moderno, o “Painel do leitor”, espaço onde os leitores comentam sobre o texto. O segundo princípio, o de “autor”, não deve ser entendido apenas como o indivíduo que produz um texto ou pronuncia um discurso, mas um também “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Já falamos sobre esse aspecto ao citar o exemplo dos sujeitos que escrevem um artigo no jornal representando determinadas instituições, para além de sua fala pessoal. E, por último, a “disciplina”, que seria, grosso modo: um conjunto de métodos, de domínios de objetos ou corpus de preposições consideradas verdadeiras. Não obstante, no jornal, quando se trata de falar sobre saúde, chama-se um médico; sobre criminalidade, um criminalista, advogado; sobre distribuição de renda, um sociólogo ou economista; e, em datas comemorativas, um historiador. Foucault propõe uma análise do discurso enquanto prática instituinte, ou seja, criadora de acontecimentos, imagens e comportamentos, levando-nos a perceber nosso objeto de estudo como um efeito de construções discursivas (FOUCAULT, 1996, p. 26).
Um faroeste sobre o Terceiro Mundo ou toda notícia que couber a gente publica[1]
Decretado hoje estado de sítio no país, o dispositivo policial reforça todos seus órgãos [...] qualquer semelhança com fatos, reais, ou irreais, pessoas vivas, mortas ou imaginárias, é mera coincidência. Trata-se de um faroeste sobre o terceiro mundo (SGANZERLA, 1968).
O trecho citado faz parte da abertura do filme O bandido da luz vermelha do diretor Rogério Sganzerla, o qual é narrado em tom de um programa de rádio policial. As vozes de um homem e de uma mulher em tom apocalíptico e sensacionalista se alternam na narração. O filme é construído através de colagens que abusam dos clichês utilizados nesse tipo de programa. O recurso à linguagem do jornalismo policial utilizado no filme, em certo sentido, serve para criticar e debochar da iconografia conservadora e ufanista que predominava no imaginário cultural da São Paulo dos anos 1950-1960, onde a cidade era representada como terra do progresso, locomotiva do país, cidade que não dorme, a capital bandeirante. Como se a cidade fosse uma ilha de desenvolvimento e progresso, simbolizando o lado moderno de um país atrasado e miserável – uma ilha de “primeiro mundo” dentro do “terceiro”.
Como forma de ironizar essa visão que a elite paulistana tinha construído sobre si mesma, no momento em que o trecho citado do filme é narrado, surge em um letreiro luminoso a seguinte mensagem: “Os personagens não pertencem ao mundo, mas ao terceiro mundo: Guerra total na Boca do Lixo” (SGANZERLA, 1968). A trama é narrada através dessa mistura de vozes de programas de rádio com a do personagem João Acácio, o bandido da luz vermelha, que ficou conhecido nos anos 60 através da crônica policial. Importante situar que a voz do personagem protagonista, o “Luz”, que no modelo convencional de cinema deveria ocupar o primeiro plano da narrativa, é colocada em over, dividindo com os a voz dos apresentadores do programa sensacionalista o protagonismo na construção narrativa. Essa técnica faz com que a construção do personagem se dê em fragmentos contraditórios e disparatados, que são supervalorizados, para mostrar a angústia do personagem marginal, caçado pelo aparelho policial. O filme é na verdade uma paródia à mídia, por isso a mistura, o jogo de vozes entre os narradores do rádio e o personagem, juntando-se, a isso, as imagens e o recurso a uma quarta forma de narrativa, que são os constantes letreiros luminosos que aparecem no decorrer do filme (TELES, 2015, p.231). Em certos momentos, o filme passa a sensação de que todo o seu argumento foi construído através de colagens feitas a partir da seção de fait divers de algum jornal, pois há no filme constantes recursos ao uso dos chavões da reportagem policial e uma exibição excessiva do kitsh, numa clara crítica a essa forma de jornalismo:
O narrador explicita a mediocridade dos meios de comunicação de massa insistindo em escancarar o quanto há de informações precárias e contraditórias circulando pela mídia sensacionalista. O tom irônico do narrador provoca o riso demolidor, expondo a própria mídia em ação. (TELES, op.cit., p.231).
No jornalismo brasileiro, o aparecimento dos fait divers — “fatos diversos”, numa tradução literal — data da virada do século XIX para o XX, com o crescimento de algumas cidades e o aumento de crimes e acontecimentos pitorescos no cotidiano das mesmas. Foi quando os maiores jornais em circulação nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo começaram a dedicar uma seção para notícias sensacionalistas da cobertura policial, importado, como sempre, do modelo de jornais norte-americanos e europeus. Escritos numa linguagem dramática e às vezes com lampejos de comicidade, essas pequenas e violentas crônicas do cotidiano chegaram para ficar e até jornais tidos como sérios, a exemplo de O Estado de São Paulo, passaram a ter uma seção destinada a esse tipo de narrativa jornalística (GUIMARÃES, 2007, p. 323-349).
Em um comentário sobre a estruturação das notícias policiais, o historiador Robert Darnton diz que é um tipo de escrita fortemente perpassada por estereótipos e feita a partir de uma concepção prévia do resultado final da “matéria”. Esse tipo de reportagem faz circular, entre o jornal e os leitores, um repertório conceitual e uma forma de escrita e apuração, de modo que tentar fugir dessa amarra estrutural pode significar um baixo índice de leitores. Segundo Darnton, existe uma epistemologia dos fait divers, que ele descreve nessa passagem:
Converter um boletim policial num artigo requer uma percepção treinada e um domínio do manejo de imagens padronizadas, clichês, “ângulos”, “pontos de vista” e enredos, que vão despertar uma reação convencional no espírito dos editores e leitores. Um redator perspicaz impõe uma velha forma sobre um assunto novo, de uma maneira que cria certa tensão – o sujeito vai se adequar ao predicado? -, e a seguir dá-lhe uma solução voltando ao familiar (DARNTON, 1990, p.91).
Essa tendência de abusar dos estereótipos, apontada por Darnton, faz com que os repórteres policiais optem por uma redução da linguagem utilizada, pelo fato de se propor escrever enquanto “jornalismo popular”, como se o seu público leitor fosse formado por crianças, “o povo essa grande criança”, ironiza o historiador. Segundo ele, é por causa dessa escolha estética que se forma o “caráter sentimental, moralista, com ares de superioridade, do jornalismo popular” (DARTON, op.cit., p. 91).
Embora pequenos fragmentos, escritos em tom romântico, com uso recorrente de recursos textuais oriundos da literatura de ficção, pode-se colocar em questão a veracidade das informações divulgadas nesse tipo de notícia, se lido com certa atenção e técnica, os fait divers podem fornecer pistas importantes sobre aspectos do cotidiano da época em que foram publicadas, bem como ajudar a perceber os valores que circulavam, as angústias e cobranças sociais e morais em relação a determinadas práticas, e até o modus operandi dos aparelhos de repressão.
Embora aliada do aparelho policial no combate aos maus costumes, na manutenção da moral vigente e, às vezes, servindo como porta-voz de cobranças por segurança, moralidade, saúde pública, higienização; ao fazer circular através de suas páginas os discursos de setores conservadores, de órgãos do governo, os jornais e, em especial, a reportagem policial, desempenham um papel político importante na produção da cidade. Quando o objeto em questão é a “marginália”, a “prostituição” e toda sorte de desajustados sociais, esse papel fica ainda mais evidente, pois, quando se trata do “submundo” o texto jornalístico recorre a disciplinas externas a seu saber, como, por exemplo, a criminologia, com o intuito de diagnosticar desvios sociais, atuando no sentido de esquadrinhar e delimitar a cidade, criando áreas “degradadas”, fazendo mapeamento moral dos espaços, escolhendo personagens – alvo para protagonizar diariamente, envolvendo-os em um enredo digno de novela (BENATTE, 1996, p.230).
Foi através dessa atitude de se reivindicar enquanto porta-voz de demandas moralistas de setores da sociedade paulistana, atuando no sentido de estereotipar determinadas práticas e delimitar espaços “marginais” dentro da cidade, que podemos perceber nas páginas do jornal Diário da Noite, a partir de 1951, uma série de reportagens, notas e artigos que cobravam das autoridades competentes uma atitude contra a zona do meretrício do Bom Retiro. Importante lembrar que a criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício na cidade de São Paulo, começou a ser pensado e demandado no final da década de 1930, pois a elite cafeeira queria desfrutar dos avanços arquitetônicos pelos quais a cidade vinha passando e se sentia incomodada em dividir o espaço urbano com esses tipos devassos, tendo que presenciar práticas como a prostituição e as diversas sociabilidades que esta atraía, como por exemplo, o jogo e a malandragem. Portanto, surgia a necessidade de delimitar, de isolar essas práticas em um lugar que ficasse distante do olhar das boas famílias que tinham de transitar por São Paulo (FONSECA, 1985, p.210).
Importante lembrar que no período pré-criação da zona do Bom Retiro, um setor da imprensa paulistana serviu como veículo para a emissão dos discursos a favor da criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício. Nesse sentido, podemos observar o discurso do então Interventor Federal de São Paulo, Adhemar de Barros, publicado no jornal A Platéia, no qual ele profere os motivos e vantagens de se delimitar o espaço de atuação da “zona”: “não só para facilitar o policiamento como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade pública” (A Platéia, 04-12-1940. p.6). Assim, num clima de coesão política que envolvia políticos, empresários e setores da alta sociedade paulistana, Adhemar de Barros publica no final de 1940 um decreto que cria a zona de confinamento no bairro do Bom Retiro.
O local escolhido foi as ruas Itaboca e Aimóres. Não demorou e essas ruas passaram a ser uma das mais movimentadas da capital paulista, principalmente aos finais de semana e vésperas de feriados, atraindo gente de outros bairros e cidades. Após essas datas, as ruas, que durante o dia funcionavam como ponto de comércio tradicional, ficavam muito sujas, por isso, muitos comerciantes e famílias do local começaram a reclamar, e a imprensa, claro, se prontificou a servir novamente como porta-voz dessas demandas. Dessa forma, A Platéia publica a seguinte nota: “o escândalo que se vem verificando, especialmente aos sábados quando a extraordinária multidão que desfila por essas ruas da boemia na falta total de mictórios despeja as urinas pelas ruas” (A Platéia, 04-12-1940. p.6).
Como vimos, não demorou muito para que setores da sociedade e da imprensa mudassem sua opinião a respeito da medida de confinar a prostituição na cidade. A partir disso, todos os dias vários jornais estampavam manchetes na capa narrando a “sujeira”, a “violência” e a “pouca-vergonha” que diariamente tomavam conta de parte do Bom Retiro. Esse clima começa a se acirrar durante a década de 1950, já no Governo de Lucas Nogueira Garcez. Esse governo foi caracterizado, na época, como o governo da limpeza, da moralidade e dos bons costumes. Garcez era muito próximo de setores conservadores da Igreja Católica.
Já em 1951, começa-se uma ação de repressão do aparelho policial na Zona do Meretrício. O Diário da Noite relata um desses momentos. “Pânico no Bas-fond”, era a chamada da matéria:
A polícia cercou o bairro, deteve 500 pessoas e interrogou mais de três mil – Mais de 500 prisões foram efetuadas na noite de sábado, por volta das 23:30 horas, na diligência levada a efeito pela 2ª Delegacia de Polícia da Capital, sob a orientação do delegado Guilherme Pires de Albulquerque. A primeira medida foi mandar fechar todas as entradas que dão acesso à zona, compreendidas pelas ruas Aimorés, Carmo Cintra e Itaboca. Essas vias públicas fervilhavam de indivíduos de toda a espécie, alguns malandros já conhecidos da polícia, exploradores das infelizes que frequentam os lupanares (Diário da Noite, 29-08-1951. p.3).
Nota-se, já de imediato, que o jornalista queria justificar estatisticamente a ação da polícia e já começa explorando a grande quantidade de detenção e interrogatórios que a ação policial gerou. Entre as várias formas de atuação do jornal no sistema de relações de poder em que ele se insere, uma delas é essa de servir como portador de demandas e cobranças da população para o governo e outras instituições, mas também como prestador de contas dos mais diversos aparelhos do Estado e da sociedade. Logo em seguida, justificada a ação policial, o texto focaliza a estigmatização do espaço geográfico e os seus praticantes, daí o uso de termos como “espécie”, “malandros”, “exploradores” e “infelizes”. Na segunda parte do texto, o jornal nos informa quais os tipos sociais que foram detidos nessa diligência. Diz: “Ladrões, “caftens”, “batedores de carteiras”, homossexuais e outros indivíduos, em número superior a 50, que foram reconhecidos pelos policiais, foram detidos e encaminhados para o plantão do D.I.” (Diário da Noite, 29-08-1951. p.3).
Esse clima de cobranças e disputas sobre o que fazer com a Zona do Meretrício só teve desfecho quando o governador Lucas Nogueira Garcez publicou, em 1953, o já citado decreto que colocava fim à chamada “Zona” do Bom Retiro. Ironicamente, no mesmo dia da publicação, foi publicado outro decreto que mudava o nome da rua que mais representava a zona da prostituição do ponto de vista do imaginário cultural, a Rua Itaboca. O governo mudou seu nome para Rua Cesare Lombroso, coroando, com essa homenagem ao criminalista italiano, o seu trabalho para extinguir a prostituição da cidade de São Paulo.
Essa relação de poder que se estabelece e se articula internamente nas páginas de um jornal, articulando dentro das mesmas, conforme já mencionado, diversos saberes, instituições e setores da sociedade, tende a extrapolar o universo discursivo e impactar na vida cotidiana da cidade; e, em sentido contrário, essa relação também se estabelece nas tensões e questões surgidas na vida cotidiana, interferindo na produção discursiva da imprensa.
No material que analisamos e, aqui, especialmente no jornal conservador A Capital, podemos observar a existência de uma insatisfação desse veículo de comunicação — que na época representava os interesses de setores ligados ao mercado financeiro — com as notícias narradas pela reportagem policial, que para os editores romantizava os feitos de criminosos e retratava com glamour tanto a vida da prostituição quanto a do crime, que segundo o jornal, acaba por incentivar a entrada de mais e mais pessoas na vida dos delitos e do pecado, ofendendo assim, a moral do povo bandeirante. O jornal, que se apresentava como “jornal-magazine”, era publicado mensalmente. Podemos notar em três editoriais diferentes, a preocupação com a chamada imprensa marrom; nesses editoriais, o jornal se valia do auxílio de outros saberes, a medicina e a criminologia, por exemplo, para sustentar sua tese de que a reportagem policial era um mal a ser combatido e extirpado. Também, pode-se observar a tentativa de mobilizar diversas instituições da sociedade para sua causa, como se percebe em constantes apelos ao clero, a polícia e aos políticos. Na edição de janeiro de 1962, o jornal publicara editorial com o título “O noticiário criminoso e dissolvente”; o uso do adjetivo dissolvente já deixa claro a posição contrária do jornal à forma de narrativa veiculada nas seções dedicadas à reportagem policial dos outros jornais; e mais, afirmava que as mesmas atuavam no sentido de dissolver determinados valores caros para a visão de mundo de A Capital, nesse sentido o editor prossegue:
Afinal, “água mole em pedra dura…”, aqui está uma das manifestações mais merecedora de acatamento e gratidão: o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, prof. Flaminio Favero, apresentou-lhe a proposta que estudada em plenário em sua 205ª reunião, em 14 de março, foi POR UNANIMIDADE APROVADO, e deliberado transmitir a todos os jornais de São Paulo e autoridades competentes.
Essa proposta refere-se ao noticiário policial, e, sendo esta folha a única que, na imprensa nacional tem movimentado uma persistente campanha contra tal sistema de noticiário sensacional é com a maior satisfação que transcrevemos o texto integral do protesto, hipotecando – lhe integral solidariedade (A Capital, janeiro de 1962. p.1).
O texto trata de uma proposta apresentada pelo presidente do Conselho Regional de Medicina, em reunião do citado órgão, no sentido de tentar frear a disseminação de notícias jocosas nas páginas de jornais paulistanos. O editor de A Capital faz o uso da metáfora “água mole em pedra dura...” para ilustrar a luta e protagonismo do seu jornal na batalha contra o sensacionalismo e ao mesmo tempo para salientar que enfim, depois de tantas insistências e batalhas, algum órgão respeitável da sociedade resolvia se pronunciar. O texto prossegue com a publicação na integra da nota do Conselho de Medicina, eis o texto:
De ordem do Conselheiro Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, conselheiro Flaminio Favero, cumpre-me apresentar a v.s, proposição estudada pelo plenário em sua 250ª reunião, realizada em 14 último e por ele aprovada unanimemente, que se relaciona com publicações noticiosas de natureza policial insertas de frequente nos jornais desta capital.
“Assistimos no momento ocorrência social demasiado desagradável. Habitantes de vários bairros da cidade vivem sobressaltados pela ação criminosa do “bandido mascarado”. Toda a população se inquieta e se comove pela natureza dos crimes cometidos. ” Ninguém ignora os objetivos do referido malfeitor.
Para aumentar a intranquilidade e piorar o trauma emocional, a polícia e a imprensa fazem questão de identificar as vítimas mesmo quando há dias o fato delituoso ocorreu com uma menor. Embora o nome não tivesse sido citado, cuidou a policia e a imprensa de anunciar a residência da vítima, identificando-a de maneira indireta, mas sem dúvida, realizando o sádico desejo de denunciar de modo claro quem era a vítima.
Nos médicos, Sr. Presidente, compreendemos a necessidade de se guardar segredo a respeito de certas ocorrências, porque sabemos da possibilidade de tais revelações concorrer para agravar traumas psíquicos, tornando – os irreparáveis. Nestas condições, propomos que o Conselho de Medicina proteste, em defesa das vítimas e do sentido de humanidade que nunca deve abandonar o profissional de medicina, contra tal proceder da policia e da imprensa (A Capital, janeiro de 1962. p.1).
Trata-se aqui, como podemos observar, do embate de uma entidade representativa de um saber, no caso o Conselho Regional de Medicina, que se utiliza do espaço discursivo de outro tipo de instituição, o jornal, para emitir uma opinião contra um tipo de linguagem, a reportagem policial veiculada em jornais concorrentes de A Capital. A nota é endereçada a outra instituição, a Presidência da República. No texto a entidade médica toma para si o direito de falar em nome de moradores inconformados com a forma que imprensa veicula notícias sobre os feitos do Bandido da Luz Vermelha, e reclama sobre a identificação das vítimas nas páginas dos fait divers; termina reafirmando a posição do Conselho contra a imprensa e a polícia, mas não sem antes recorrer ao saber psiquiátrico para justificar seu argumento.
Ao que parece, o apelo às instituições laicas não foi suficiente para que a sua cruzada contra a reportagem policial obtivesse sucesso, em outubro de 1962 A Capital resolve buscar ajuda junto ao clero para continuar sua batalha conta o sensacionalismo. Dessa forma, estampa no título de seu editorial a frase “Contra a perversão e a degeneração”, o texto é endereçado ao Cardeal Dom Câmara, Archebispo de São Paulo. Na argumentação, como recurso para obter a imediata simpatia do Cardeal, o editor enfatiza a atuação do jornal no que chama de causa santa contra o comunismo e o jornalismo marrom que seriam responsáveis por dilacerar os costumes e a moral cristã da sociedade paulistana:
A coleção desta folha, em seus 45 ou 46 anos da atual orientação, (facilmente compulsável no Arquivo do Estado) atestará aos seus leitores sua indefectível batalha contra a degeneração, perversão de costumes reclamando providencias enérgicas das respectivas autoridades, além de intervenção salutar de autoridades, inclusive da Eclesiastica... Acompanha esta alguns exemplares da “A CAPITAL”, órgão independente que mantém a santa batalha contra o comunismo e dissolução de costumes de forma enérgica e permanente (A Capital, 01/1962. p.1).
Ainda nesse artigo continua-se a mobilização de poderes e instituições para extirpar os relatos degradantes e obscenos da imprensa policial, que expõem constantemente a formação moral da população da cidade. Dessa vez, o editor faz menção a carta enviada ao Presidente da República, reportando-se à época em que o mesmo foi designado pelo clero para compor um conselho econômico sobre assuntos de interesse do Brasil junto a Europa. Temos, portanto, o entrelaçamento de três poderes que atuam no sentido de interditar o discurso emitido pelas seções dedicadas à reportagem policial na São Paulo da década de 1960, podemos observar a mobilização da Igreja e do saber religioso, da Presidência da Republica, além de fazer referência a uma delegação que atuava no debate sobre economia e comércio. Como podemos observar na seguinte parte do editorial:
Num dos números encontrará V. Emiin os relatórios enviados ao Sr. Presidente da Republica, relativo aos trabalhos na qualidade de membro da Delegação Economica Comercial do Brasil na Europa que me coube desempenhar por ordem de S. Exa. ( A Capital, Outubro de 1962, p.2).
Após desenvolver toda sua argumentação com o intuito de mostrar ao representante da Igreja todo o esforço feito pelo jornal no sentido de combater a proliferação dos discursos sensacionalistas nos jornais em circulação, o editor conclui seu raciocínio afirmando que se não houvesse um enquadramento e uma normatização por parte do poder-saber jurídico, via a inclusão de um artigo específico na Lei de Imprensa, artigo esse que proíba a divulgação de notícias sobre crimes, bem como fotos consideradas obscenas, seria inútil todo o esforço feito ao longo do tempo, pelo jornal e pelas outras instituições envolvidas na cruzada contra o sensacionalismo. No final, ele ainda se vale de um recurso retórico, ao usar o termo “infância” como um dos setores que clamam por essas medidas:
Aproveito a oportunidade para relembrar que todos os esforços contra o sensacionalismo e dissolução de costumes, não serão profícuos se não tiverem que na Lei de Imprensa seja incluído o artigo proibindo tal divulgação do noticiário policial e fotografias obscenas. Nossa infância clama por essas medidas e só V. Emin poderá consegui-la. Com elevado respeito e acatamento de V. Emin devotissimo patrício J. C. (A Capital, outubro de 1962, p.2).
A preocupação corrente era que os constantes relatos sobre os feitos criminosos dos malandros e da vida libidinosa das prostitutas, contadas através da linguagem romantizada e adornada por recursos como o chavão, utilizados pelos repórteres policias, influenciassem de maneira negativa os leitores, principalmente a juventude.
Sobre isso, Ramão Gomes Portão[2], repórter que atuou com frequência na Boca do Lixo, chama atenção para o que ele denomina de “influência” que os meios de comunicação de massa, especialmente a reportagem policial, exercem sobre a opinião pública. Ele diz que esse tipo de relato contribui na formação da chamada “opinião pública”, pois ele cria questões de interesse público, e que a ação do repórter ao cobrir determinados locais onde a população por diversos motivos não tem acesso, acaba por “formar” o conhecimento das pessoas sobre a “criminalidade”, influenciando também as atitudes a serem tomadas pelas “instituições de defesa social” em relação aos marginalizados. Como vimos, essas relações se estabelecem e podem ser percebidas diariamente na prática de informar-nos através da leitura do jornal (PORTÃO, 1980, p.13).
Outra forma de atuação da reportagem policial, no sentido de pressionar as autoridades e aparelhos de Estados a se posicionarem em relação a determinadas sociabilidades consideradas “marginais”, é quando essa se comporta como uma espécie de “tribuna de debates” sobre o que se considera um problema social a ser enfrentado. Nesse caso, é recorrente encontrar nas páginas dos jornais no período pesquisado, entrevistas com agentes do governo intimados a prestar contas de suas ações para combater o crime e os maus costumes, como é o caso da entrevista encontrada no Jornal Diário da Noite, em agosto de 1963, com o então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, na segunda gestão de Ademhar de Barros, o General Adelvio Barbosa de Lemos. Na ocasião, o então Secretário havia sido convocado pela Assembleia Legislativa para prestar alguns esclarecimentos sobre os acontecimentos “ultrajantes” da Boca do Lixo. O jornal se antecipa à sabatina da Assembleia e o convoca para uma entrevista onde o título já oferece ao leitor a opinião do entrevistado sobre os principais assuntos pautados, diz: “Sou pela regulamentação do jogo e da prostituição”; porém, logo em seguida, o jornal procura desqualificar a opinião do secretário “Digressões filosóficas do velho General” (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5).
A entrevista segue com o secretário descrevendo como se comportaria perante os questionamentos que iria receber na casa legislativa: “Responderei com lealdade e franqueza a todas as perguntas que me forem dirigidas pelos ilustres deputados da nossa Assembleia Legislativa. Direi inclusive os motivos pelos quais sou pela regulamentação do jogo e do difícil problema do sexo”. Logo em seguida, ciente do jogo de forças e de poder ao qual estava prestes a ser submetido, diante do desafio de entrar nessa “ordem arriscada do discurso” (FOUCAULT, op.cit. p.7), o secretario estabelece de imediato uma separação, uma distinção, entre sua opinião pessoal sobre as práticas do jogo e da prostituição na Boca do Lixo e seu dever enquanto agente do Estado, como podemos observar:
Faço absoluta questão de frisar que, como secretário de Estado, coíbo a contravenção penal a qualquer preço. Todavia, como cidadão, homem particular, sou pela existência legal de ambos. Em todos os regimes, em todos os tempos, jogo e questão sexual foram duramente combatidos, no entanto, tidas como autentico calcanhar de Aquiles de todos os governos (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5).
Em seguida, o secretário se despe totalmente da postura de cidadão com opinião progressista em relação ao jogo e à prostituição para descrever em detalhes como se daria sua atuação na repressão aos praticantes da Boca do Lixo. Nessa descrição recorre a termos utilizados pelos repórteres policiais para se referir aos habitantes do local e ao seu cotidiano, como por exemplo, o uso das palavras “degradante”, “intolerável” e “desajustadas”, como podemos observar:
Como auxiliar de um governo que me honrou com a direção desta importante pasta, cumpre-me combater a contravenção e o crime. Isso o farei de qualquer forma. Quando assumi a SSP tive a cautela de mandar filmar e fotografar o aspecto degradante da chamada “Boca do Lixo”. O espetáculo triste de filas de mulheres prostradas na via publica em atitude de deboche vai acabar. Até aqui, o delegado Milton Martins de Lara, titular da Delegacia de Costumes, autoridade das mais dignas, tem se portado como um herói na repressão aos delitos atinentes à sua Especializada, em fato dos parcos recursos do que ela dispõe. Todavia, tão logo aquela Delegacia receba os reforços que objetivo fornecer, espero que os lamentáveis espetáculos daquelas ruas desapareçam. O delegado Milton Martins de Lara continua a merecer a minha confiança. Estamos em plena batalha e, em tal fase, não se troca de comando. Acredito, também, que a Delegacia de Costumes, uma das mais importantes da nossa Polícia especializada, elimine, quando estiver devidamente equipada, o intolerável e conhecido “trottoir” de mulheres desajustadas (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5).
Ele encerra a entrevista descrevendo a situação e a estrutura utilizada pela polícia para reprimir esse tipo de contravenção. Não sem antes, apoiar o seu enunciado na incorporação de estudos realizados e no planejamento das ações de repressão que seriam desenvolvidas. No final, faz questão de lembrar a responsabilidade e o papel da imprensa no sentido de fiscalizar e pressionar o Estado para que tome as providências cabíveis:
Até aqui a nossa posição foi de estudos e de observação, agora, com tudo devidamente planejado, vamos avançar no sentido da trincheira do inimigo comum, isto é, a delinquência. Em cada posto chave da Polícia coloquei o homem adequado. Todos estão colaborando com dedicação. As delegacias especializadas, as distritais, as regionais do interior do Estado passaram a funcionar entrosadamente. Espero que a imprensa continue firme na sua função fiscalizadora. As portas da minha secretaria estão abertas aos jornais. Recebo a critica como subsidio ao meu trabalho, nunca como ofensa à minha administração (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5).
Sobre essa “confusão” que é a leitura diária de um jornal, o antropólogo Bruno Latour faz uma descrição interessante, e a partir de uma notícia sobre o “aumento do buraco na camada de ozônio” ele descreve que no mesmo artigo encontrou várias falas, desde opiniões de químicos à de executivos de empresas produtoras de pesticidas, passando por chefes de estados e ecologistas, além é claro, da visão do próprio jornal através do jornalista designado para produzir a matéria principal. Diz ele: “O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas [...]. As proporções, as questões, as durações, os atores não são comparáveis e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história”. Ele conclui seu raciocínio de forma cômica e irônica: “Se a leitura do jornal é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos. Toda cultura e toda natureza são diariamente reviradas aí” (LATOUR, 1994, p.7).
O produto das reportagens produzidas no jornal é nomeado por “informação”, o historiador Frank Ankersmit diz que causa estranhamento as metáforas utilizadas para se referir a este conceito, como se a informação fosse algo físico: “A informação ‘flui’, ‘se move’, ‘se espalha’, é ‘trocada’, é ‘guardada’ ou é ‘organizada’” (ANKERSMIT, ano, p.120). Voltando ao debate sobre a linguagem do jornalismo policial, lembramos que os chavões e o lugar-comum são artefatos da escrita jornalística, orientados, em muitos casos, pelos manuais de redação dos jornais; eles cumprem uma função de sobrepor a descrição dos fatos, o que dá aos títulos das reportagens uma materialidade própria, como diz Tognolli:
No caso de um crime já disponho de todas as aberturas de matérias possíveis realizadas pelo jornalismo policial. No caso de economia tenho todo um componente técnico e reprodutível da linguagem a meu serviço; os candidatos que “não alçam voo”, os partidos que “não aquecem as turbinas” [...] para descrever a briga entre dois políticos, me basta adotar todo o referencial da linguagem bélica: os “flancos expostos”, os “pelotões de fuzilamento” e o “entrincheiramento” de políticos num determinado partido” (TOGNOLLI, ano, p.161).
Conforme apresentado no decorrer do artigo, a cobertura dos jornais analisados funcionou como suporte discursivo de aparelhos do Estado, instituições sociais e de saberes, que viam nas práticas “marginais” desenvolvidas no cotidiano da Boca do Lixo uma ameaça para os valores e costumes que queriam fazer circular no imaginário cultural da época. Para isso, se utilizaram das diversas seções dos jornais analisados, transportando para suas páginas os discursos de diferentes campos do saber, sempre na direção de esquadrinhar, separar, estereotipar e estigmatizar o cotidiano do local e seus praticantes. Frisando sempre a sujeira, a violência, a promiscuidade, utilizando sempre adjetivos negativos, como se o cotidiano dessas pessoas fosse o tempo inteiro perpassado por essa aura sombria, como se no local, não existisse outras formas de se relacionar que não as descritas nas páginas dos jornais.
AUTOR
Everton Behrmann Araújo é graduado em História pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia (2010). Mestre em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015), e Doutorando em História pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa em História Cultural, nas seguintes áreas de interesse: história dos marginais, urbanidade, heterotopias, escrita de si e estética da existência.
Referências
Filmes:
SGANZERLA, Rogério; O Bandido da Luz Vermelha. Vídeo Interamericana, 1968.
Jornais:
A Platéia – 1940
A Capital – 1962
Diário da Noite – 1951/1963
Bibliografia:
BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos. In: Revista Alburquerque. Vol.3, n.1, 2010.
BENATTE, Antônio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital mundial do café”(Londrina 1930-1970). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1996.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FONSECA, Guido. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.
GUIMARÃES, Valéria. “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX” IN: Revista Brasileira de História (Impresso), v. 27, p. 323-349, 2007.
HARA, Tony. Saber Noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese de Doutorado apresentado ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2004.
JOANIDES, Hiroito de Moraes. Boca do Lixo. São Paulo: Labor Texto Editorial, 2003.p. 35.
TELES, Angela Aparecida. Ozualdo Candeias na Boca do Lixo: a estética da precariedade no cinema paulista. São Paulo, EDUC: FAPESP, 2012.
LATOUR, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. Carlos Irineu da Costa.Rio de Janeiro: Ed.34, 1991.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru: Edusc, 2007.
PORTÃO, Ramão Gomes. Criminologia da Comunicação. São Paulo: Traço Editora, 1980.
RAGO, Margareth. Os prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1980 – 1930). São Paulo: Paz e Terra, 1985.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 2003.
TOGNOLLI, Claudio Julio. Sociedade dos Chavões: presença e função do lugar- comum na comunicação. São Paulo: Escrituras Editora, 2001(Coleção Ensaios Transversais).
[1]O título dessa seção é uma alusão e colagem de trecho retirado do filme O Banido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla e do artigo Jornalismo: toda notícia que couber a gente publica de Robert Darnton; IN: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
[2]Ramão Gomes Portão era formado em Direito, mas atuou como editor de polícia do famoso jornal Notícias Populares durante 20 anos e conhece bem os melindres da feitura desse tipo de reportagem.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017
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