Rodrigo Araújo*
Carla Milani
Damião é professora da Universidade Federal de Goiás (FAFIL-UFG), doutora em
Filosofia pela Unicamp e concluiu seu
pós-doutorado na Universidade de Amsterdã (UvA) em 2014. Em 2006,
publicou pela editora Loyola o livro “Sobre o declínio da sinceridade:
Filosofia e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin”,
resultado de sua tese de doutorado. Pesquisadora dos escritos do filósofo
alemão Walter Benjamin, sua trajetória é marcada por intensa investigação em
estética e filosofia da arte. Coordenou o GT de
Estética da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), é
participante da Associação Brasileira de Estética (ABRE) e atualmente desenvolve uma pesquisa sobre Teoria
Crítica, Gênero e Estética, além de coordenar o Grupo de Estudos Kinosophia,
relativo à Filosofia do Filme. Publicou inúmeros trabalhos sobre estes
temas.
Numa
dentre outras quentes noites da cidade de Goiânia (GO), Carla Damião,
generosamente, nos recebeu em sua casa para uma conversa sobre estética, Walter
Benjamin e, particularmente, sobre Filosofia do Filme. A filosofia e o cinema
estão desde muito cedo presentes em sua trajetória, ao menos desde o período em
que ainda cursava a graduação em filosofia e trabalhava na Secretaria de Cultura Municipal de
São Paulo com pesquisa e documentação em cinema. Vivenciou de perto a cena do
cinema alternativo feito em São Paulo e a lendária Boca do Lixo, de onde
despontaram cineastas como Carlos Reichembach e Mojica, entre outros. Carla estava especialmente feliz naquela
noite: vinha de uma reunião na qual o colegiado de pós-graduação da FAFIL-UFG
acabara de aprovar a inclusão da linha de Estética e Filosofia da Arte no
Programa.
Você tem nos falado nos últimos anos sobre uma recente
tendência na filosofia contemporânea que é a “filosofia do filme”. Poderia nos
falar um pouco sobre o significado e o valor dessa pesquisa para a filosofia e
para o cinema?
A própria terminologia
“filosofia do filme”, film-philosophy,
em inglês, corresponde um pouco a necessidade de separar o que seria o meio (o
filme) da função do espectador, isto é, da recepção do filme. Trata-se de
pensar por meio do filme como meio, como veículo e não na relação com o público
primeiramente. Josef Früchtl publicou um livro em 2004 no qual situa três
gêneros de filme; o western (o faroeste ou filme de cowboy), o filme de gângster e o filme
de ficção científica. Ele associa estruturas de pensamento, digamos assim, a
esses gêneros. Em comum nesses gêneros há a apresentação de um “herói
problemático”, ou seja, uma acepção moderna de herói. O título de seu livro é –
Das unverschämte Ich (o eu
impertinente ou sem vergonha). Quem é
esse herói que ainda ousa “dar as caras” na tela de cinema e ao que ele está
relacionado? É muito interessante verificar nos três gêneros uma interpretação
que passa pela decadência da figura do herói. Do filme de fronteira à constituição ao
vilarejo, à fase em que, dentro do mesmo gênero, o western, surge uma tendência psicologizante, que caracteriza com
clareza aquele herói que decididamente deixou de ser o herói dos primeiros
filmes, aquele que já era distante do herói antigo. Früchtl cita como exemplo o
filme High Noon (Matar ou o morrer,
de 1952) dirigido por Fred Zinnemann, sobre o sujeito que quer ser herói e a
cidade diz “não, a gente não precisa mais de herói, está tudo bem aqui, saia
daqui com a sua esposa e seja feliz, a gente não quer confusão”. Há um limite,
portanto, daquilo que já deixou de ser herói e que se torna cada vez mais moderno.
Sua referência é Hegel e a ideia da consciência dilacerada. Não vou repetir a interpretação
pertinente e primorosa que ele desenvolve, mas podemos dizer que a tese central
de seu livro é a ambiguidade do herói, que – na modernidade - já não existe em
sua inteireza, mas que ressurge no cinema, ao constituir um tipo de personagem
que vive o conflito de não poder ser mais herói. O romantismo, associado ao
filme de gângster, corresponde àquele herói desorientado que busca algo, mas
decididamente não sabe mais o que é. Uma fome por algo que se revela como uma
espécie de vício; vício por alguma coisa que ele não sabe o que é, porque
deixou de reconhecer o objeto de sua procura. O gângster é a figura do
capitalista às avessas, já dentro do contexto social da cidade – não mais do
vilarejo -, da metrópole, diferentemente do cowboy que vive no ambiente
inóspito da grande planície, imerso em sua solidão, eventualmente enfrentando
regiões de fronteira, na construção e estruturação de vilarejos, micro modelos de
constituição da sociedade moderna. Früchtl acaba fazendo uma leitura da
modernidade e do que seria o heroísmo na modernidade associado a esses gêneros
de filme que comportam estruturas filosóficas que primeiro notaram os sintomas
da modernidade e a crise da subjetividade. O último gênero considerado, da
ficção cientifica, surge em conjunção com Nietzsche, Deleuze e a pós-modernidade. É possível ver o quanto a ficção
cientifica se constitui como gênero híbrido em relação aos outros gêneros, já
que nela, em Matrix, por exemplo,
vemos verdadeiras cenas de duelo, de reconstituição do agonístico romântico, nas
cenas de embates, também existentes nos filmes de gângsters. Quer dizer, pode
ser visto como uma reunião de outros modelos e gêneros. Alguns dos
exemplos de correspondência citados, como o Exterminador
do futuro, são de filmes produzidos para o grande público, não são filmes
de arte, caracterizados pela busca por uma imagem com valor de autenticidade.
São filmes muitas vezes rejeitados pelos intelectuais mais acostumados à
crítica do espetáculo, da imagem-clichê ou da indústria cultural. Tais filmes,
conhecidos como blockbusters, são
vistos por Früchtl como portadores de temas que projetam essa figura de um “herói
impossível”, mas que insiste em se colocar em cena, num futuro que repete
modelos, ações e situações de outros gêneros. Sua teoria do filme não trata,
portanto, do que se vê ou se gosta, de sermos guiados por um sentimento em
relação ao filme, mas do que existe num filme que leva a pensar e que pode se
relacionar com o pensamento já existente. Também não se trata de uma falsa
relação na qual exista uma sobreposição da filosofia ao filme, mas estruturas
de pensamento que acabam por ser representadas nessa figura de um herói
fracassado, por princípio, que é o herói moderno.
O livro
de Josef Früchtl se chama O eu
impertinente. Uma história heroica da modernidade[1] (Das unverschämte Ich. Eine Heldengeschichte der Moderne), seguindo a tradução de língua inglesa, pode ser
traduzido como impertinente. Poderia ser também aquele que é sem vergonha, aquele
que perdeu a vergonha, uma referência à Mínima
moralia, de Adorno, em referência ao eu que perdeu todo o pudor de falar o
que quer: o eu fascista. Penso que quando Früchtl escolheu esse título para
falar do cinema, não estava pensando exatamente no valor moral ou político, no “eu”
fascista moral e politicamente localizado, mas naquele que ainda ousa dar as
caras nas grandes telas do cinema, por isso “impertinente”, por ousar dar as
caras no local ao qual ele não mais pertence. Pertinência como sinônimo de
pertença, como condição de pertencer plenamente a um contexto. O comportamento
impertinente revela moralmente o desajuste ao meio, mas queria que fosse
entendido de maneira tão neutra quanto seu antônimo: pertinente. É pertinente,
ou seja, cabível naquela circunstância ou local. Na contramão do que seria a
morte do herói da pós-modernidade, Früchtl afirma e assume a pós-modernidade
como mais uma faceta da modernidade, uma subjetividade que ainda se afirma no
cinema. Digamos que o filme se constitui como prova de que a subjetividade
moderna – entendida como frágil, num mundo no qual o sentido não é mais
revelado – não está superada. Recentemente, Früchtl retomou o sentido moral da
palavra, tal qual aparece em Minima
Moralia, aforismo 29, como o “eu sem-vergonha”, em consonância com uma
reflexão sobre a política desenvolvida no projeto “A arte da democracia
emotiva”. Sua mais recente palestra tem por título, justamente, “Democracia
para cidadão sem-vergonha”.
Voltando
aos filmes, podemos assistir aos mesmos filmes que Früchtl assistiu e não concordar
com absolutamente nada do que ele diz, mas se lemos ou conhecemos Hegel e as
fontes sobre as quais ele fala, você pensa “faz sentido” no espírito da
“filosofia do filme”. Associações que são feitas e que nos dá a pensar por meio
do filme, saindo um pouco das teorias de cinema que ficam preocupadas com o
aspecto mercadológico de produção, ou artístico - elenco, ator, diretor,
fotógrafo -, no limite a construção do show
business com calçadas da fama, culto ao estrelato, o glamour dos festivais
de cinema e seus tapetes vermelhos com as estrelas servindo de modelos a grandes
costureiros e joalherias, etc. Esse ambiente de sedução e de espetáculo diminui
consideravelmente quando nos atemos ao nexo filme e filosofia. Há um professor
escocês (o professor David Sorfa)[2] que criou uma
pós-graduação em “filosofia do filme” na Universidade de Edimburgo, na Escócia.
Fiz uma entrevista com ele interessada na maneira como ele formou este curso. E
ele dizia: “nós não estamos interessados na figura do diretor”. Isso é também um
pouco radical porque se considerarmos um diretor como Lars Von Trier ou um Béla
Tarr, como poderemos ignorar o que eles pensaram ao criar estéticas e filmes como
Dogma 95 ou O Cavalo de Turim (Tarr)?
Se pensarmos na estética da fome de
Glauber ou nos filmes ensaios de Sganzerla, é impossível não considerar o
diretor. É provável que Sorfa estivesse referindo à indústria do cinema e ao
filme do grande produtor, no qual o diretor é parte executora.
Existem pesquisas de “filosofia do filme” em torno do
cinema brasileiro?
Existem muitas teses, muitos
trabalhos sobre o cinema marginal, o cinema novo, sobre Glauber Rocha, mas
quase sempre tentando enxergar em Glauber um estilo, se é barroco, se é
trágico, se é Trauerspiel, mas ainda
assim com essa dúvida: o que estou fazendo é filosofia ou é teoria do cinema? E
aí as referências bibliográficas que encontramos têm sempre uma tendência maior
em lidar com teoria do cinema. Ismail Xavier, Jean Claude Bernardet e Paulo
Emílio são as fontes de pesquisa que orientam a dissertação como um corpus de
referência sobre o assunto. As pessoas têm um pouco de acanhamento teórico no
Brasil, embora não exista acanhamento na prática de realização de filmes. Acho
que a tradição anglo-saxã ousa ter uma liberdade de pensar o que bem queira em
relação ao filme, por isso a tendência maior de utilizar o termo “filosofia do
filme” venha desses lugares. Existem muitos encontros a este respeito. Tem um
grupo que vi há pouco em Portugal, um grupo, digamos, mais continental, que
trabalha “filosofia e filme” pensando o documentário, trazendo os realizadores
para o evento, ouvindo o que eles têm a dizer, sem que sejam grandes teóricos
de sua própria obra ou em geral, inserindo os artistas no debate com os teóricos
mais acadêmicos, filósofos ou mesmo
profissionais de outras áreas, o que confere um caráter interdisciplinar e
possibilita ouvi-los sem endeusá-los. Até porque geralmente a realização ganhou
um sentido mais amplo com o meio digital e os realizadores são produtores ou
diretores de filmes de produções pequenas, o que permite um diálogo mais
modesto, digamos assim, sem tapetes vermelhos, ao se buscar, junto com os
realizadores, pensar o alcance filosófico do próprio filme, ampliando o alcance
filosófico em relação à obra.
Cumprir um pouco do que o próprio Benjamin pensa a
respeito da tarefa da crítica...
Exato. Para pensar
conjuntamente, ir além do próprio objeto. Recentemente organizamos o II Colóquio
Internacional de Estética – Estética em Preto e Branco e fiquei muito feliz em
trazer o Adirley Queirós, assim como foi o teu caso[3], foi muito bacana porque
as pessoas discutiram... É isso, pensar com o realizador sem endeusá-lo, sem
criar aquela falsa aura em torno da produção e também não ficar falando apenas sobre
o orçamento, a produção do filme.
Recuando um pouco em suas pesquisas, em seu livro Sobre o declínio da sinceridade, baseada
no texto de Walter Benjamin A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica, você sugere haver dois tipos
de filme. Aquele que gera o efeito da distração, mas que produz algum tipo de
aprendizado em relação à técnica; e outro que produz empatia, que mantém a
ilusão de identidade por meio da projeção ou transferência. É possível manter
essa fronteira tão claramente? Quero dizer, é possível identificar com clareza
esta divisão entre um e outro tipo de filme?
Muito do que falei no meu
livro foi seguindo Walter Benjamin, que compactua com Brecht da crítica ao
espetáculo que gera empatia. Neste caso menos focado no próprio filme e mais na
recepção, aquilo que ele julga ser o aprendizado por meio do filme é mais ou
menos o que ocorria no teatro épico, só que no cinema ele diz não ser possível
parar para pensar. Enquanto no teatro épico você tinha interrupções mais
claras, no filme você tem, pela montagem, uma sequência que parece golpear o
sujeito na cadeira, impossibilitado de parar para pensar, atordoado com a
mudança rápida de fotogramas em movimento sequencial. Ele está falando do
início da recepção do cinema, claro, que geraria, inconscientemente, uma
espécie de catarse vingativa da opressão da técnica. Então o sujeito aprenderia
no cinema a reagir à opressão da técnica do lado de fora da sala de cinema.
Esse seria um lado positivo, de aprendizagem, etc, que não é de empatia e que
também não é de estranhamento, como no teatro brechtiano, mas de tensão e
relaxamento ao mesmo tempo, dependendo do filme, já que não é todo filme capaz
de criar esse efeito. Marcar essa diferença é difícil mesmo porque o filme está
mexendo com as emoções o tempo todo. Eu não concordaria com os extremos, mas
acho que quando ele lida com os extremos ele também está jogando com duas
possibilidades para que o leitor faça uma mediação: esse aqui é de empatia e
esse aqui é de estranhamento, mas no cinema é difícil separar os dois. O que
ele quer dizer do dadaísmo, do teatro épico em relação ao cinema tem a ver com
o efeito da montagem, de acostumar o sujeito com as interrupções “contínuas” ou
frequentes, mas que no fim causaria um relaxamento psíquico que seria uma
reversão, uma pirueta contra aquilo que o oprime no mundo do trabalho
industrializado e da vida nos grandes centros urbanos. Ele vai longe nessa
interpretação que é do coletivo, do público massivo e não do indivíduo separado
e é por isso que não dificilmente podemos falar em juízo estético. Trata-se de
um mecanismo que ele enxerga, trazendo os filmes grotescos que causam o riso e favorecem
o reverso relaxante daquilo que seria a opressão por meio da técnica.
Falávamos
hoje sobre outro assunto, sobre esses dispositivos de vigilância de todos os
tipos. Benjamin lida o tempo todo com essa ambiguidade da técnica. Ao mesmo
tempo em que o facebook por meio dos algoritmos, dessas combinações em que as
pessoas fazem aqueles testes e pensam “puxa, como sabem que sou isso? É isso
mesmo que sou!”..., e por meio deles tornam-se informações a serem
comercializadas; é também, por meio das redes sociais, por exemplo, que a nova
onda feminista pôde se afirmar. Há outras manifestações como o próprio Wikileaks... Ou seja, existem furos
nessa rede “big brother” de dominação que mostra de novo a ambiguidade da
técnica. Qual é a proporção de liberdade? Difícil determinar, mas cada vez
menor aos comuns dos mortais e cada vez mais beligerante na prática que burla
os mecanismos e compartilha do lado criminoso que permeiam as redes, sistemas,
causando ameaças como a mais recente que paralisou os serviços de saúde do Reino
Unido. Da mesma maneira que a técnica elaborada pode iludir por meio da
empatia, podendo levar o sujeito a concordar com Leni Riefenstahl, no filme Triunfo da vontade, no qual se constrói
a imagem do salvador, o pai de todos, na pessoa de Hitler, podemos também
pensar criticamente sobre aquilo que aparece como opressão, por meio do
trabalho, e também por meio da crítica jocosa que é feita por Chaplin, em O grande ditador. Há sempre o uso de
extremos, de ambiguidades e nunca certezas absolutas, Benjamin leva a pensar
que tem isto, mas que também tem aquilo... nunca um ou outro filme, é um e
outro filme.
Você coordena um grupo na Universidade Federal de Goiás
que discute a filosofia do filme, o “Kinosophia”. Poderia nos falar um pouco
dessa sua experiência com os estudantes de filosofia?
Ele teve início com alguns
queridos estudantes – um inclusive que nem estudava aqui, a exemplo de Jadson
Teles, que estudava em Brasília e é de Sergipe – que tinham em comum a paixão
pelo cinema, cinéfilos incorrigíveis (e eu nem gosto muito de cinéfilos),
cinéfilos que gostavam de teoria sobre o filme. Eles vinham com Deleuze, Bazin
e eu com Benjamin. Começamos a nos reunir para discutir as teorias, só que as
pessoas que se agregavam, que chegavam ao grupo não conheciam muito as
referências dos filmes de referência nas discussões. Então começamos a fazer
ciclos de filmes em torno de um tema, particularmente após a visita de Josef
Früchtl em 2013, que nos ofereceu um minicurso sobre o livro já mencionado e
foi em torno da visita dele que publicamos três artigos, em seções especiais na
revista Inquietude, a revista dos
alunos da FAFIL-UFG. Este estudo foi
muito instigante para pensar um repertório que muitas pessoas hoje em dia recusam
assistir. Por exemplo, o gênero do Western,
faroeste em nossa tradução ou filme de cowboy, do “cara pálida” exterminador de
índios; ou o outro tipo de exterminador, de “caras verdes”, Exterminador do futuro, ficção
cientifica, não, o que é isso? As pessoas não queriam assistir por uma espécie
de novo preconceito. Se formos negar a existência desses conflitos históricos,
sabendo-os em perspectiva racista e etnocêntrica, não deveríamos ler uma boa
parte dos escritos de grandes filósofos como Hume, Rousseau e Kant. Há uma
perspectiva e contexto histórico a ser pensado. Mas quando passávamos esses
filmes geradores de antipatia, lotávamos as plateias, submetidas ao sentimento
de empatia gerados pelos filmes. Os que resistiam ao processo de sedução e não
assistiam os filmes, criticavam: “filme americano, a filosofia foi vendida!” “O
imperialismo, a indústria cultural!” e assim por diante... Aí no ciclo seguinte
resolvemos falar de cinema brasileiro, de 2001,
uma odisseia no espaço, ficção científica... Mostramos o avô da personagem-inteligência-artificial
Hall, de 2001..., que é Alphaville, resultado: terminou o filme
e ficamos eu e Fernando Ferreira, que projetava o filme, na sala vazia.
Passamos O bandido da luz vermelha,
de Rogério Sganzerla, e o Sganzerla já parece estranho à plateia mais jovem...
Agora, o filme do Godard é insuportável para essas pessoas, elas não conseguem
assistir o filme Alphaville, de
Godard, não conseguem. Isso foi interessante porque nesse processo percebemos o
quanto as pessoas estão instruídas a assistir certo tipo de filme, e mesmo
aquelas que condenam politicamente o enlatado, aquele que recebemos diariamente
na televisão e no cinema, não têm paciência de assistir outro tipo de filme considerado
“mais difícil”. E algo interessante a notar nisso, é o que Früchtl e outros
teóricos dizem, é que o cinema está para o nosso século, mais ou menos como a
literatura no século XX. Os grandes romances que orientaram o século XIX, no
século XX as pessoas passaram a ler menos e ver mais filmes. Hoje em dia, as
pessoas assistem episódios, séries, não suportam assistir filmes inteiros, pois
os meios que elas assistem não é mais o da grande tela. Então essa paciência de
assistir um filme como Alphaville –
imagina assistir num celular – mostra como a recepção mudou. Precisamos pensar
o tempo, o espaço e a recepção, principalmente o espaço e o meio em que está
sendo exibido o filme.
E as séries mudaram o tempo também, não é? Há pouco tempo nós tínhamos séries de 20min,
mas hoje temos episódios de 50 min. Não é um longa-metragem, mas também não é
mais um curta.
Sim, você vai ao cinema e
tem filmes de 4 horas, 3 horas, eles estão criando outra temporalidade para
provocar o espectador, ou o 3D, como este último de Godard[4]. Quer dizer, cria-se
estranheza e isso continua sendo genial porque esse é o efeito que Benjamin
esperava de um espectador que pode ser motivado a pensar.
A gente sabe que você teve uma experiência fora da
academia com o cinema feito em São Paulo. Certamente essa sua vivência
despertou seu interesse pela “filosofia do filme” e, consequentemente, a levou
a construção do “Kinosophia”, onde você também fala em partir para a realização
de algo prático. Como o grupo tem projetado esta realização?
Durante minha
formação filosófica, durante a graduação, eu trabalhava na Secretaria de
Cultura (Municipal de São Paulo) com pesquisa e documentação em cinema. Eu era
muito jovem e aprendia com pesquisadores formados e cineastas como Olga Futemma,
Inimá Ferreira Simões, Albert Roger Hemsi
e Rubens Machado... Nós acompanhávamos, assistíamos filmes brasileiros do circuito, escrevíamos
comentários críticos, discutíamos os comentários em reunião e eu vivi a cena
que ainda existia no cinema em São Paulo, do cinema alternativo ao da produção
da Boca do Lixo, dos cineclubes, havia muitos cineclubes e de lá para cá nunca
deixei o cinema... Quando terminei a graduação, pensei que fosse trabalhar com
cinema e aí veio o governo Collor e fechou a Embrafilme e quase acabou a
produção de filmes, com aquilo que mantinha o cinema. As grandes salas de
cinema fecharam ou foram fragmentadas em pequenas salas. Surgiu o vídeo. Eu
tinha uma produtora, trabalhei muito com vídeo, mas era o VHS, era muito ruim a
qualidade, tinha o Betamax, mas era caro, então era toda aquela coisa de sempre
trocar equipamento... O trabalho em grande parte era técnico, sem grandes voos,
cansativo e, de certa forma, burro. Então voltei para a filosofia e meu projeto
de mestrado que apresentei à professora Jeanne Marie (Gagnebin) era voltado
para a resenha A crise do romance...
(de Walter Benjamin) e dela (da resenha), na qual aparece o romance Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin,
iria para a série televisiva transformada em filme de Fassbinder, Berlin, Alexanderplatz. Mas parei na
literatura, na pequena resenha A crise do
romance”, na qual, além da presença do conceito de montagem como um forte
elemento de elogio, havia uma comparação estranha, entre o escritor francês
André Gide a Alfred Döblin . Aí a Jeanne Marie disse: “estranho como Benjamin gosta do André Gide”. Concordei, fui
atrás e agora estou traduzindo os textos que ele escreveu sobre Gide – e ele
realmente tinha uma verdadeira paixão pelo Gide, que hoje em dia não é bem um
escritor muito querido. Então isso tudo do cinema ficou em segundo plano, mas
eu sempre trabalhei com o ensaio sobre A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e principalmente sobre essa recepção e sobre
o que ela significava. Acho que o ponto de vista de Benjamin é mais sociológico
do que de alguém que faça “filosofia do filme”, ele não se concentra tanto nas
questões formais, embora tenha contribuído para distinções importantes na
transformação que o aparato técnico do cinema realiza na cena, na atuação, na
recepção do filme, e na vontade de
exposição das pessoas que torna qualquer ser humano em ator. Então nisso ele é
super atual, a alta exposição pessoal o
tempo todo sem a necessidade de estudar para ser ator, numa distinção com o
teatro. E a montagem, quer dizer, o que ele vê no romance de Berlin, Alexanderplatz, como principal,
como um “sal épico”, como ele diz, é a montagem. E pela ideia de montagem nos aproximamos novamente do filme. São
mecanismos internos, mas ao mesmo tempo uma sociologia e psicologia da recepção
que é formada a partir daí. Com isso, acho que ele consegue antever aquilo que podemos
perceber na mudança de recepção dos
meios mais recentes, como é que as pessoas se habituam à nova tecnologia, como
as crianças se relacionam com ela e isso em relação à plateia e ao filme. Não há mais
distanciamento. A proximidade é cada vez maior e a rapidez da montagem,
no sentido amplo de como isso é veiculado, torna as pessoas cada vez mais
distraídas e, ao mesmo tempo, concentradas na distração, mas não no sentido da
imersão absoluta, como concentração absoluta numa única coisa. Hoje eu estava
conversando com uma pessoa que trabalha num consultório médico e ela dizia;
“estou ficando esquecida, não me lembro de mais nada. Antes eu anotava aqui e
lembrava, agora eu vejo o computador e o whatsapp,
não lembro mais das coisas”. Não é uma questão de memória, ela está lidando de
maneira esforçada, porque não é natural para ela isso, diferente da criança que
já está fazendo uma tarefa, e olhando aqui e ali, ela tem uma concentração
diferente e distraída ao mesmo tempo. E a pessoa um pouco mais velha, que
começou a lidar com esses meios agora, pensa: “eu perdi a concentração, não
consigo mais lembrar”! A memória está relacionada com a intensidade da
experiência ainda aurática, então você quer fazer só aquilo naquele momento.
Benjamin viu isso e isso só se intensificou de lá pra cá.
Mas
retomando o “Kinosophia”, eu nunca deixei de relacionar o filme e a filosofia,
assistia muitos filmes, afinal a praia do paulistano era o cinema, então eu
tenho um repertório muito vasto, mas sentia dificuldade aqui em falar sobre
filmes que ninguém sabe, ninguém viu. Ao mesmo tempo, ficar só passando filme
demora e sabemos que as pessoas não têm mais tempo para ver. Ficar dando sua
versão sobre o filme é como falar com as paredes, então pensei numa maneira de
criar uma motivação, por exemplo, em torno do filme preto e branco ao
apresentar Limite, de Mário Peixoto,
que é um grande filme, um ensaio fotográfico belíssimo do cinema nacional. E
lidar com situações de outros filmes – não sei porquê quase todos são em preto
em branco –, situações aporéticas, situações que colocam certas pessoas em
risco, uma encruzilhada, um beco sem saída. Começamos a observar que isso
ocorre com três personagens, que existe uma triangulação na composição e só
então depois disso (dessas percepções) começaríamos a exercitar a criação de um
roteiro e sua filmagem. Não pensando em fazer um grande filme, mas em criar
alguns episódios que pudessem lidar com situações aporéticas, uma ideia a ser
concluída ainda. Outra atividade foi a
criação de um tipo de oficina, principalmente para professores do ensino médio
e que foi muito interessante, que era lidar com conceitos e fazer um filme no
papel por meio de um storyboard. Fiz uma
oficina desta no Rio de Janeiro, na UFRJ, sobre o feminismo em torno de um
conceito x e então os grupos trabalhavam algo em torno de quatro horas, eles
faziam algo e, claro que eu falei um pouco sobre a linguagem, qual o efeito que
se vai buscar com esse enquadramento, ângulo ou aquele movimento, dada a
dificuldade de se fazer algo assim. Aqui eu fiz com uma classe grande de cem
alunos e com uma oficina para professores de ensino médio e foi muito
interessante porque as pessoas falavam “ah, nós vamos fazer um filme”, mesmo
não sabendo desenhar, mas tentando. Então você joga com um conceito como
“alienação” e pergunta: como que você conta uma história em imagens que traduza
este conceito? Ao final nós “passamos” o filme na parede e as pessoas viam, avaliavam
e escolhiam qual era o mais criativo. Eu me lembro que os professores adoraram,
então foram essas tentativas que aconteceram. Os alunos, principalmente da
licenciatura, aproveitaram a ideia em oficinas para estudantes na disciplina de
filosofia.
Há
também eventos no Brasil, com pessoas muito interessantes, uma delas é Maria
Cecília de Miranda Nogueira Coelho, professora de filosofia antiga da UFMG, que
faz eventos muito interessantes sobre filme e estudos da antiguidade. Recebemos
a visita do professor grego Konstantinos Nikoloutsos, que mostrou filmes em que
a antiguidade era representada na década de cinquenta aqui no Brasil. Ele
conhecia mais os filmes do que os alunos, filmes produzidos pela Atlântida em
que Oscarito, por exemplo, fazia Romeu e Grande Otelo, Julieta. Uma maneira de
lidar com a referência da antiguidade nos filmes, não no sentido de tornar o
filme um substituto da epopéia, mas de ver como a indústria cinematográfica
acaba mostrando a antiguidade no cinema. – Maria Cecília esteve na UFG, a
convite do Kinosophia para ministrar um mini-curso sobre Elektra: “Três versões
de Elektra no cinema”, versões que não são literais, mas são versões nas quais
ela reconhece o mito de Elektra, explica a razão disso e como os mitos são fontes
de muitas histórias ainda, disfarçados na estória, e de como a força dele é que
chama a atenção do público. São pesquisas aprofundadas que parecem infinitas
porque também as referências em filmes são igualmente infinitas. Agora é muito
interessante que um professor grego, da Universidade da Filadélfia, venha falar
de filmes brasileiros que não despertam interesse em nenhum brasileiro! Ele
poderia estar só falando dos filmes dos grandes diretores gregos, que
obviamente estão mais ligados à tradição. Outro evento que Maria Cecília de
Miranda Nogueira Coelho organiza, e do qual participei[5] provocou uma série de reflexões, ao relacionar determinados filmes de escolha
do conferencista com uma ou mais paixões que Aristóteles distingue em sua obra Retórica das paixões. Foram os mais
variados filmes e as mais variadas associações. Em agosto haverá um outro
encontro, no qual faremos relações com o conceito de Enargeia na antiguidade clássica e em filmes. Entre os estetas
analíticos, alguém como Noël Carroll, por exemplo, apresentou no Colóquio
“Filme e Filosofia”, em Lisboa, 2014, um trecho de um filme, mostrando um
corredor e um movimento de zoom; com
base nesta cena ele escolhe falar de tempo e espaço por meia hora. A estória
não importa, o filme e tudo o que o envolve não importa, não importa se tem
mito ou não, nem a recepção do público, mas apenas uma divagação sobre tempo e
espaço com base naquele trecho de filme. Trata-se de uma espécie um minimalismo
teórico que utiliza uma cena apenas de um filme para refletir sobre as
categorias de tempo e o espaço. O segundo Colóquio Internacional - Filosofia e
Filme que ocorreu em Karlsruhe, Alemanha, em 2016, mostra a tendência da
estética analítica, sem perder de vista a abrangência dos temas que envolvem a
discussão sobre a relação proposta, incluindo diretores e escolhendo um foco de
análise, sendo o documentário o foco da última edição.
Em
resumo, podemos repetir com Josef Früchtl que o cinema está para o século XXI
como a literatura do século XIX para o século XX. Um meio de expressão transformado
em várias dimensões, seja a física na criação – da película ao meio digital -,
ou na recepção – que se desprendeu da sala grande do cinema e se fragmentou em
telas de diferentes tamanhos; seja a disposição estético-reflexiva alterada
pela mudança física do meio. Refletir sobre as mudanças não conflita com o
pensar por meio do filme, mas embasa e alimenta o próprio modo de pensar.
[créditos de imagens: Mariana Andrade]
ENTREVISTADORES
*Rodrigo Araújo é professor de filosofia do IFBA e doutorando em filosofia pela UFBA,
onde desenvolve uma pesquisa sobre a escrita na obra de Walter Benjamin, sob a
orientação da professora Dra. Silvia Faustino. Na área do cinema, é autor,
dentre outros trabalhos, do curta-metragem Show
de calouros, co-dirigido por Diego Haase.
**Leidiane Coimbra é doutoranda em filosofia pela UFG,
onde desenvolve uma pesquisa sobre técnica e estética na obra de Martin
Heidegger sob a orientação da professora Dra. Carla Damião. Vem desenvolvendo
instalações artísticas com fotografias instantâneas que remontam ao seu
trabalho em torno da natureza da técnica e suas imbricações na
contemporaneidade.
[1] A tradução é da própria Carla
Damião, conforme pode ser conferida em DAMIÃO, Carla Milani. Inquietude: revista dos estudantes de
filosofia da UFG, Vol. 3, n. 2, 2012. <acessado em 19.05.2017>.
[2] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. Revista Trama, Vol. 6, n. 1, 2015,
<acessado em 19.05.2017>.
[3] O filme Branco sai, preto fica (2014),
dirigido por Adirley Queirós, foi exibido durante o “II Colóquio internacional
de estética: estética em preto e branco” (UFG, 2017), como parte das atividades
do “Kinosophia”, grupo de pesquisa sobre “filosofia do filme”, coordenado por
Carla Damião. A edição seguinte exibiu o curta-metragem Show de calouros (2016), dirigido por Diego Haase e Rodrigo Araújo.
Em ambos os casos, as sessões foram seguidas de conversas entre os realizadores
e a plateia sobre o processo de criação e produção fílmica.
[4] Adeus à linguagem, de Jean Luc Godard (2014).
[5] Cf. DAMIÃO, Carla Milani. ‘O
desprezo, a cólera e o riso: o filme ‘The Butcher Boy’, de Neil Jordan sob uma
perspectiva aristotélica’. Nuntius, v. 11, p. 33-46, 2015.
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