RESUMO: O artigo desenvolve alguns aspectos do conceito de multidão, elaborado por Antônio Negri e Michel Hardt, com ênfase nos aspectos da criação e da comunicação. Essa abordagem serve de base para analisar certa produção na rede social Twitter: os memes que são construídos com apropriação de fotografias e textos em até 140 caracteres. Faz-se uma análise de algumas postagens de cunho político que foram realizadas ao longo de dezembro de 2016 no Brasil. Esse tipo de produção parece ir ao encontro do projeto político reivindicado por Negri e Hardt, a multidão.
Palavras-chave: Multidão; Twitter; Meme; Negri; Hardt
Preâmbulo
Um olhar atento lê uma reportagem em um portal de notícias na Internet. Os dedos rolam a tela em busca de um parágrafo mais interessante. A fotografia que ilustra a reportagem é salva na memória do dispositivo. Encerra-se a leitura. Na seleção de aplicativos distribuídos na tela do aparelho, toca-se no ícone do Twitter. A sessão “início” contempla os posts de perfis que o usuário segue. Os dedos atravessam a tela, o olhar segue atento na leitura de textos e imagens. Com um toque no ícone de pena, que faz referência à escrita, outra tela é aberta. Nesse espaço, a imagem salva há pouco é inserida juntamente a um texto. O botão “tweetar” é apertado, e a publicação entra em rede para outros tantos usuários.
O Twitter é uma ferramenta de mensagens curtas lançada em outubro de 2006, e que obteve um rápido crescimento no Brasil e no mundo. Nela, o usuário segue e é seguido por outros perfis. O Twitter convida os usuários a responder à pergunta “o que está acontecendo?” em até 140 caracteres. Dentre outras possibilidades do aplicativo, estão a conversação entre os atores e a apropriação relacionada ao acesso à informação.
Quem é esse usuário? Como caracterizar sua atividade? De saída, pode-se dizer que para existir esse “usuário” em rede, é indispensável a existência de tantos outros “usuários”. A rede que os conecta fornece uma estrutura que perpassa condutas, modos de ação e pensamento. Pode-se dizer também que Pode-se dizer também que nessa produção, troca e propagação existe um bem valioso: a informação. A produção imaterial de ideias, códigos, imagens, e até mesmo afetos parece ser um traço característico daquilo que é produzido e consumido entre eles. Essas características parecem estar no centro da questão daquilo que Antônio Negri e Michel Hardt chamam de multidão, principalmente, quanto ao uso daquilo que os autores chamam de a produção do comum por meio da linguagem.
Sendo assim, a proposta deste artigo é explorar a ideia de multidão no ambiente do Twitter. O enfoque se dá na relação entre a multidão e as criações com imagem e texto do aplicativo. Essa prática é uma forma linguística usual dentre outras utilizadas cotidianamente no Twitter. Os efeitos desse modelo de ressignificação de fotografias também podem ser diversos. Fez-se então um recorte de tweets do mês de dezembro de 2016 que utilizam fotos e textos para a construção de uma crítica de cunho político. Tenta-se explorar o próprio conceito de multidão pelas práticas de criação desses memes.
De saída, reforça-se a noção de multidão. Em seguida, aproxima-se o Twitter desse conceito por meio de um de seus aspectos mais instigantes: sua monstruosidade. Esse percurso serve de base para a análise de alguns posts publicados recentemente por usuários. Acrescentando texto à fotografia, esses posts podem ser visto como memes que alimentam a rede e conformam a comunicação entre seus usuários.
No caminho da multidão
O conceito de multidão trabalhado por Antonio Negri e Michel Hardt permite leituras profícuas acerca de alguns predicados subjetivos, políticos e tecnológicos que se configuram nas sociedades mais fortemente tocadas pela lógica informacional do capital. A complexidade do conceito, entretanto, traz consigo uma dupla dificuldade, própria de grandes teorias: não ser reducionista, a ponto de desperdiçar as saborosas suspeições dos autores; tampouco prolixo, de modo a reescrever repetidamente aquilo que os autores já o fizeram de forma exemplar. No limite do interesse deste artigo, segue-se aqui então uma indicação feita pelo próprio Antônio Negri (2009), em um artigo conciso, intitulado Para uma definição ontológica da multidão. Nesse artigo, Negri elenca de forma didática três aspectos centrais na ideia de multidão.
O caráter imanente da multidão seria o primeiro aspecto. Esse primeiro ponto possibilita a inserção dos autores em um terreno filosófico e epistemológico específico. Trata-se de uma demarcação teórica importante, que aposta em um projeto político para além do terreno da representação. A multidão como imanência garante a validade política das relações entre múltiplas singularidades. No mesmo gesto, postula uma crítica ao pensamento político moderno dominante, que foi construído nas ideias de representatividade e unidade, tão caras a Hobbes, Rousseau e Hegel. Abole-se na multidão uma ideia de povo assentado na transcendência do soberano. Para Hobbes, por exemplo, a multidão não é apta a governar. O múltiplo não conseguiria decidir, sendo necessário assim a unidade. É a representação da multidão que conduz à necessária unidade. A unidade, portanto, é considerada um pressuposto para a existência da paz e do governo civil. Do contrário, subsistiria a guerra e a discórdia. A virtude política se encontra na construção de uma unidade política. Disso resulta a importância que Hobbes dá à noção de representação, tendo em vista que em torno dela se constitui e se garante a unidade. A multidão, na perspectiva de Negri e Hardt (2005), não deve ser domada mediante os mecanismos representativos. Ao contrário, trata-se do protagonista fundamental do cenário político, ao qual se subordinam os dispositivos de representação. Não é a representação que organiza e confere sentido à multidão, e sim a multidão que constitui o sentido do mundo, que determina a produção do direito no espaço político.
Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe. Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática. O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente “biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse elemento comum produzido por cooperação e comunicação.
Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe. Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática. O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente “biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse elemento comum produzido por cooperação e comunicação.
Ao longo da obra Multidão, os autores enfatizam as dimensões biopolíticas como centrais nos atuais processos de produção. Trata-se de uma relação de poder que está centrada na dimensão biológica, da vida. Na reconfiguração do capital e do Império, calcados nos processos de financeirização, o biopoder é centrado nas dimensões de comunicação e cooperação, ou seja, nas dimensões cognitivas e imateriais, retirando daí sua mais-valia. Nesse sentido, a força do capital não seria expropriada de um indivíduo, mas das singularidades da multidão, de suas formas de comunicação e cooperação.
A multidão é então um conceito de classe na medida em que se constrói pela exploração desse comum biopolítico. A multidão é, efetivamente, a classe que produz o comum. Isso permite dizer que a multidão não é apenas explorada em sua produção – como trata a definição de classe trabalhadora -, mas uma exploração da própria cooperação. Assim, entender a multidão como classe, é colocar as singularidades como centrais nos processos de produção. Nas palavras de Negri e Hardt (2005, p. 156):
A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de organização. Assim é que os sistemas técnicos de produção correspondem estreitamente a sua composição social: de um lado, as redes tecnológicas, e de outro a cooperação dos sujeitos sociais que trabalham. Essa correspondência define a nova topologia do trabalho e também caracteriza as novas práticas e estruturas de produção.
Da capacidade de comunicação e cooperação aparece também a terceira característica da multidão: sua potência. O mais importante nessa questão é notar que o comum que é apropriado pelo capital é também o que possibilita certa resistência, ou algo que escapa à lógica produtiva. Negri e Hardt (2005) argumentam que somente analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades produz além da medida. Trata-se de uma fragilidade do comando capitalista, na medida em aposta na hegemonia “virtual” do trabalho coletivo, na cooperação produtiva. Esse terceiro ponto será mais explorado neste artigo. Nele, a Internet aparece como elemento de análise. Conforme argumenta Negri e Hardt (2005, p. 14):
Uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de base ou modelo para a multidão, pois, em primeiro lugar, os vários pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo constantemente acrescentados.
A Internet, em relação a esse terceiro ponto, fornece alguns exemplos de subversão e inventividade. Se as práticas e os processos que constituem a Internet estão na base de produção do capital, são neles que também aparecem formas de resistência e criação.
A criação monstruosa da multidão
De acordo com as características descritas acima, nota-se como a multidão é explorada em suas relações de cooperação entre singularidades. Trata-se, na visão de Negri e Hardt (2005), de uma exploração das redes que compõem o conjunto. De outro lado, os autores enxergam uma potência nesse modelo, na medida em que aquilo que é explorado ultrapassa as capacidades de controle do sistema. Se a comunicação é apropriada pelo capital, ela tem a potência de ser reapropriada na dinâmica comunicacional das redes. Cria-se aí um elemento inesperado, uma espécie de dobra. Os autores enxergam, nessa agonística própria desse modelo capitalista, a força para o surgimento da multidão como realidade histórica, da multidão como um corpo político.
Nos dias atuais, o que os autores conseguem perceber são apenas alguns sintomas desse projeto político que nomeiam como multidão. Por isso trabalham com a ideia de carne da multidão. Os autores constroem assim uma relação polissêmica interessante entre o corpo político global do capital e a carne da multidão. A carne parece operar, na teoria dos autores, como um estágio anterior, do corpo como virtualidade. Para evidenciar a existência dessa carne da multidão, os autores iniciam uma argumentação sobre a crise ou dissolução dos corpos sociais tradicionais.
Para muitos, essa carne é monstruosa, porque ela é fugidia, e não pode ser enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político tradicional. Para os autores, “essas multidões que não são povos nem nações ou sequer comunidades constituem um exemplo da insegurança e do caos que resultaram no colapso da ordem social moderna.”(NEGRI e HARDT, 2005, p. 251). Os autores, assim, parecem apostar na potência do monstro: “precisamos encontrar os meios de realizar esse monstruoso poder da carne da multidão de formar uma nova sociedade”. (p. 253)
Um dado interessante da carne é que ela é comum, assim como o ar, o fogo, a terra e a água. O monstro não seria um acidente, mas a possibilidade sempre presente capaz de destruir a ordem natural da autoridade. Daí os autores sugerem uma relação ambivalente com os monstros, pois essa carne monstruosa deve atacar o mundo horrível e monstruoso do corpo político global do capital. Para eles, é preciso usar as expressões monstruosas da multidão para desafiar as mutações da vida artificial transformadas em mercadorias, pois é no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o seu futuro. Por meio então desse pensamento metafórico da carne do monstro, ou mais precisamente dessa condição latente de uma possível multidão, que os autores desenvolverão alguns cenários já em curso nos dias atuais.
As expressões monstruosas da multidão podem ser entendidas, na teoria dos autores, como elementos de criação próprios à multidão. Aqui, não se trata de uma criação hierarquicamente estabelecida, mas de um elogio às capacidades inventivas dos pobres. O conceito de pobre é amplo: pobre aqui são os países periféricos, como o Brasil; pobres são aqueles sem emprego fixo e garantido nessa era de flexibilidade no trabalho. Para Negri e Hardt (2005, p.182), “a criatividade e inventividade dos pobres, desempregados, parcialmente desempregados e migrantes são essenciais para a produção social”. Trata-se de um aspecto daquilo que não tem forma certa, nem pode ser apreendido com harmonia e unidade: a criação. Para os autores, “apesar de sua pobreza e de sua falta de recursos materiais, alimentos, habitação e assim por diante, os pobres efetivamente dispõem de uma enorme riqueza em seus conhecimentos e poderes de criação.” (NEGRI e HARDT, 2005, p.182)
As práticas sociais possibilitadas pelo uso de uma plataforma como o Twitter integram esse cenário monstruoso atual, na medida em que participam de revoltas, debates e, em certa medida, atuam efetivamente na condução de questões políticas importantes. As micronarrativas em disputa no Twitter também parecem contribuir para a dissolução da grande narrativa histórica. Obviamente, o Twitter não deve ser visto como uma plataforma revolucionária, mas elemento central do próprio capital, e com possibilidades que ultrapassam sua apropriação capitalística. No limite deste artigo, não se estuda nenhuma mobilização específica ou revolta que faz uso do Twitter, mas um uso cotidiano, que parece trabalhar exatamente nessa agonística entre exploração da cooperação entre singularidades e potência comunicacional e criativa daquilo que se produz.
Criações no Twitter: memes com apropriação de fotografias
A fim de evidenciar e tornar mais concreta esta abordagem, pretende-se analisar a reapropriação de imagens com a criação de textos realizada por alguns usuários na rede social Twitter. Não se trata, contudo, de uma análise estritamente linguística, mas sim de uma aproximação às ideias e conceitos trabalhados pelos autores de Multidão. Um primeiro ponto a ser notado, por exemplo, é que os usuários que produzem esse conteúdo com reapropriação de imagens e produção textual, em sua maioria, não carregam a autoridade da representação, e podem ser vistos como singularidades que possuem uma força na realização do múltiplo. De acordo com Negri e Hardt (2005, p. 283), “a mobilização do comum demonstra, finalmente, que os movimentos que fazem parte desse ciclo global de lutas não são apenas movimentos de protesto (embora seja a face que aparece mais claramente na mídia), mas também positivos e criativos”.
Além disso, o Twitter atesta, por meio da linguagem, duas características da produção do comum: o hábito e a performance. Para Negri e Hardt, outro modo de compreender a produção e a produtividade do comum seria exatamente o hábito, pois ele seria o comum na prática. Uma das vantagens em trabalhar com o termo é porque ele desloca a ideia da pura subjetividade (as profundezas do eu) ou do sujeito político tradicional (ideia transcendental). O hábito traz uma ideia de atravessamentos de subjetividades, de imanência, na medida em que estamos constantemente criando hábitos que servem para nossa vida prática. Essa construção surge de forma cotidiana, através de trocas comunicacionais, através do comum, e nunca de forma realmente individual ou pessoal. Mistura-se assim hábitos, conduta e subjetividade individual na constituição de nossa natureza social. Além disso, não estariam apenas vinculados a repetições mecânicas de atos passados, mas seriam meios ativos, maneiras enérgicas e dominadoras do agir. Ou seja, uma prática viva de criação e inovação, na qual os autores identificam a própria ideia de multidão. Nas palavras dos autores, “as singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum, e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge dessa dinâmica de singularidade e partilha” (NEGRI e HARDT, 2005, p.258). O que está em jogo nessa produção do comum é a participação mais ativa das singularidades, desejos, afetos dos indivíduos na construção de um corpo, o qual seria mitigado pela lógica capital que, num plano macro, ainda constrói uma sociedade à revelia dessas vontades, hábitos. A produção da linguagem cômica utilizada nas reapropriações de fotos no Twitter parece entrar nesse jogo subjetivo de produção de hábito. Os próprios assuntos do momento no Twitter surgem nessa dinâmica, com contaminações que encaminham determinadas ações. O uso de determinadas fotos “do momento” atesta esse movimento, como veremos adiante.
A ideia de performance é um outro elemento trazido pelos autores para ilustrar a produção e a produtividade do comum. A performatividade, a comunicação e a colaboração seriam a chave do paradigma imaterial da produção. Dentre essas performances está a performance linguística, pois se no trabalho fabril o trabalhador é mudo, agora ele tem necessidade de habilidades linguísticas, afetivas e de comunicação. E como a linguagem é sempre produzida em comum, ela pode ser um elemento de criação, ou seja, uma aliada da Multidão. Entretanto, como sabemos, é exatamente no controle do comum que o capital tem agido atualmente. O projeto de Multidão seria possível exatamente por ter seu motor no comum. Para os autores, “essa natureza comum da atividade social criativa é ainda mais destacada e aprofundada pelo fato de que hoje a produção depende cada vez mais de competências e comunidades linguísticas” (NEGRI e HARDT, 2005, p.179)
Os memes, em particular, podem ser vistos como uma produção performática que já se tornou habitual e se configurou como um gênero linguístico. Trata-se de uma forma de expressão que se estabelece por meio de novas tecnologias num determinado período histórico, juntamente a todas as transformações culturais que sua inserção acarreta. Para Lima e Castro (2016, p.39), “pode-se dizer, então, que novas formas de ‘querer-dizer’ implicam novos comportamentos comunicativos, consequentemente, novos gêneros textuais”. Uma forma usual de meme no Twitter é a postagem de uma foto que ganha certa visibilidade, mas que, porém, é ressiginificada por um texto que o usuário produz, geralmente, com uso de ironia.
Como corpus de análise, buscou-se a página Melhores do Twitter, que faz uma seleção sistemática das postagens. Optou-se por analisar apenas as postagens do mês de dezembro que integravam memes com fotografia e texto e que faziam referência ao atual cenário político. O conteúdo das postagens analisadas fazem referência, em sua maior parte, à situação política no Brasil. Porém, nota-se alguns atravessamentos próprios à globalização. Para Negri e Hardt (2005, p.179), “essa comunidade linguística vem antes do lucro e da construção de hierarquias locais e globais.” O post abaixo (Figura 01), por exemplo, diz: “Depois desse cartaz na Paulista acho que agora o Estado Islâmico vai dar uma trégua” (sic). A fotografia mostra um cartaz de fundo amarelo com a frase “Estado Islâmico / Pare!” escrita em azul e vermelho, respectivamente. Na disposição do cartaz, há ainda um ícone que lembra uma placa de trânsito, com uma mão.
A legenda da foto, de forma irônica, critica a ineficácia e a ingenuidade da ação reivindicada pelo cartaz, colocado na Avenida Paulista, um dos principais locais de manifestação política da cidade de São Paulo. Interessante notar aqui como a linguagem do texto do autor do post se relaciona com o texto presente na fotografia. O resultado dessa intersemiose é o humor crítico, que parece ser, a propósito, elemento comum em todas as postagens analisadas. Trata-se de um comum linguístico que se tornou, no mesmo gesto, habitual e performático.
A foto (Figura 2), do atual presidente Michel Temer com a primeira-dama, algumas crianças e um Papai Noel, também rendeu inúmeros memes cômicos. No dia 16 de dezembro, a página analisada publicou um desses posts, que trazia a seguinte legenda: “Michel Temer distribui talões do INSS a crianças. Confira!”. A crítica aqui se refere ao projeto de reforma da previdência, que demandará mais anos de contribuição aos trabalhadores. Como na referida foto, as crianças que estão à frente do presidente e da primeira-dama estão sérias, o texto confere sentido a essas expressões faciais.
Figura 2 |
O usuário que publicou esse post, como pode ser notado, é @avaaaifelipe. Uma breve investigação nesse perfil permite aprofundar a ideia de multidão como classe. Nota-se, no Twitter, que diferentes perfis, de adolescentes e idosos, jornalistas e estudantes, ou ainda perfis de viés feminista, ou esportivo, ou político, todos habitam as possibilidades de comunicação e cooperação oferecidas pela ferramenta, ainda que os poderes e influências de cada um deles dependam de outros fatores. O ponto em “comum” entre eles é o resultado de suas relações intelectuais e cognitivas com a máquina, que gera informação que alimenta o todo. O perfil @vaaaifelipe, que fez a referida publicação, conta em sua descrição apenas com a frase “não repara a bagunça”. Com efeito, a bagunça, a bricolagem e a gambiarra são traços da multidão que o perfil exemplifica muito bem. Note-se que esse perfil possuía 8.868 seguidores à época da postagem. Trata-se do número de usuários que, idealmente e diretamente, entraram em contato com as produções feitas por ele. Entretanto, como redes como o Twitter funcionam com re-postagens, elemento que caracteriza bem a cooperação, esse número deve ser bem maior.
As questões políticas configuradas por toda a complexa crise brasileira que atravessou 2016 encontra sua expressão linguística do comum em praticamente todos os posts de viés político. As críticas às medidas tomadas pelo recém-empossado presidente são alvos de montagens humoradas. Ainda em relação ao projeto de reforma da previdência, o post do perfil @chatolino integra a foto (Figura 3) de uma criança com uma roupa de gari (possivelmente de um carnaval) com o texto: “Trabalhador deverá contribuir por 49 anos para receber teto da aposentadoria pelo INSS”. A reapropriação da foto, a partir dessa legenda, coloca em questão a ideia de trabalho. É interessante notar que o projeto da reforma da previdência, após muitas críticas como essas aqui analisadas, foi estrategicamente postergado pelo governo.
O uso das aspas no Twitter, reproduzindo um texto tal como ele foi divulgado na grande mídia ou como fala do senso comum, torna-se uma ferramenta expressiva e linguística própria da ferramenta. Geralmente, após o uso das aspas com tal texto, inicia-se um texto que o contraria, o ridiculariza, ou demonstra contradições. A foto do menino vestido de gari possui essa função de complemento, dando outro sentido ao texto com aspas.
Esses casos demonstrados são similares em sua linguagem comum, e exemplificam bem algumas produções que tratam de criticar e questionar, e certamente influenciar, as decisões políticas por meio de uma linguagem que integra apropriação de fotos com a produção de um texto de até 140 caracteres. Esse comum, segundo Negri e Hardt (2005), é uma produção e um processo. Os memes são amplamente difundidos na rede e atestam um potencial inventivo e de criação da multidão. A potência dessa multidão é um fato atestado por vários casos recentes. As hashtags mais comentadas tem a capacidade de induzir e modificar uma realidade. “Hoje, criamos como singularidades ativas, cooperando nas redes da multidão, vale dizer, no comum” (p. 182). Resta saber como utilizar esse potencial de criação na conformação de uma verdadeira democracia, onde as criações do comum assumam um papel central na condução das vontades políticas.
AUTOR
* Gabriel Malinowski é Doutorando em Comunicação pela UERJ-RJ. Mestre em Comunicação pela UFF-RJ (2010). Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-RJ (2008). Graduado em Cinema pela UNESA-RJ (2006). Entre 2009 e 2016, foi docente em cursos de Cinema, Artes Visuais e Comunicação Social; coordenou o projeto de extensão Crescendo com Arte, que oferecia oficinas de cinema para alunos da rede pública do município de Barra Mansa; e foi integrante do projeto de extensão Cinema Encena, que trabalhava na relação vídeo-performance-dança. Atualmente é bolsista FAPERJ de Doutorado. Possui artigo publicado no livro anual da SOCINE, além de outras publicações em revistas acadêmicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NEGRI, Antonio e HARDT, Michel. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
NEGRI, Antonio. “Para uma definição ontológica da multidão” In Lugar Comum, número 19-20, p.15-26, 2009.
LIMA, Geralda de Oliveira Santos e CASTRO, Lorena Gomes Freitas de. “Meme digital: artefato da (ciber)cultura” In Revista (com) Textos Linguísticos. Volume 10. Número 16, 2016.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017
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