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A escrita como cuidado de si na obra tardia de Michel Foucault

Roberto Kennedy de Lemos Bastos*


RESUMO: Michel Foucault realizou um deslocamento teórico até a antiguidade clássica com o intuito de abordar textos prescritivos da conduta do homem grego, nessa pesquisa atenta para o preceito do cuidado de si como princípio regulador de uma espécie de razão prática do homem grego. A escrita se exerceria aí como importante alternativa instrumental para o autoconhecimento tão necessário ao efetivo uso coerente da razão no tocante ao uso dos prazeres, portanto, de um ethos anterior ao modo do dispositivo moderno da sexualidade. Evocamos o texto L’écriture de soi (A escrita de si) como um “mapa” para a localização do problema da escrita como cuidado de si na obra tardia de Michel Foucault, enquanto uma tecnologia de si que dispõe o ser para uma condição de ascese no pensamento e, por conseguinte, em uma excelência de vida no sentido do conceito de estética da existência, isto é, a vida como uma obra de arte. 
Palavras-chave: escrita de si, cuidado de si, hypomnemata, estética da existência.
1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é comentar as reflexões contidas na obra tardia de Michel Foucault acerca de temas como subjetividade e modo de subjetivação, servindo-se para tal de um texto menor, qual seja, A escrita de si, como um “mapa” onde o leitor toma conhecimento dos novos contornos tomados pela pesquisa do autor e do rumo que essa inflexão dos temas da modernidade (saber/poder) para a antiguidade greco-romana.  Esse é um texto menor. Figura entre outros textos produzidos por Foucault nos anos oitenta na esteira das suas pesquisas acerca da história da sexualidade por intermédio dos ditos jogos de verdade através dos quais o ser humano se reconheceu como “homem de desejo”, conforme Jean-François Pradeau, “as regras de conduta às quais os antigos buscavam submeter suas práticas sexuais e os discursos com os quais eles demandavam uma compreensão, um entendimento dessas práticas[2]”. A escrita de si segundo o método arqueológico-genealógico é um modo de subjetivação que, enquanto uma forma de tecnologia de si, interessa Foucault nesse momento[3]. Acreditamos que as grandes escolhas se iniciam por pequenas e esclarecidas fontes escolhidas, aqui e ali, e pensamos demonstrar a importância deste texto – publicado pela primeira vez na revista Corps Écrit[4] – cujas páginas saem desta pesquisa cujo lema “é preciso dizer a verdade sobre si mesmo”[5], concede mais fomento para o curso que aborda temas relacionados com a cultura do cuidado de si[6] na antiguidade e no início da nossa era em função da noção (nomeada pelo autor francês) de estética da existência[7]. Dito ainda de outro jeito, mas sem sair da cartografia proposta por ele, de como as práticas de si – do jogo entre o conhecer e o cuidar – expressam na forma da escrita de si uma resolução estética e ética enquanto um poder “subjetivador” que a escrita representa.

A escrita de si foi publicada em fevereiro de 1983 (portanto um ano e cinco meses antes de sua morte) junto com outros cinco artigos que compõem a produção do autor no hiato que sucedeu ao lançamento de A vontade de saber (1976), e que, segundo o autor, faz “parte de uma série de estudos sobre as ‘artes de si mesmo’, isto é, sobre a estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do Império” [8]. É sabido que a obra que aqui tratamos é o resultado de um arriscado [9] deslocamento teórico feito rumo à antiguidade, e cuja alusão aqui tem um significado igualmente arriscado[10]. Aliás, com efeito, o risco é a condição de todo empreendimento filosófico, diria Foucault no prefácio de O uso dos prazeres, obra que, junto com O cuidado de si, representam a materialização do esforço do autor em conceber uma ontologia do presente partindo de experimentos no campo da ética greco-romana. Mais especificamente romano uma vez que a utilização da escrita como gênese ethopoiética [11] só fora posta em prática, segundo o pensador francês, no período imperial. Conforme Foucault:

Parece não haver dúvida que, entre todas as formas que tomou este adestramento (o que comportava abstinência, memorizações, exames de consciência, meditações, silencio e escuta do outro), a escrita – o fato de se escrever para si e para outrem – só tardiamente tenha começado a desempenhar um papel considerável. Em todo o caso, os textos da época imperial que se referem às práticas de si concedem uma grande parte à escrita. É preciso ler, dizia Sêneca, mas escrever também. É Epicteto, que, todavia não ministrou senão um ensino oral insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: deve-se “meditar” (meletan), escrever (graphein), treinar; “possa a morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo, leio” (FOUCAULT: 2009, pg. 133).

A escrita tem uma função transformadora do indivíduo e, na tradição cristã – que no texto de Foucault é expresso pela transcrição de um trecho da vitae antonii de Atanásio[12] –, possui seu sentido principal numa relação de complementaridade com a anachoresis [13], i.e, atenuar os perigos da solidão e realizar um “trabalho não apenas sobre os atos, mas, mais precisamente, sobre o pensamento”. Portanto, “aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, Sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”. Trata-se de um debate sobre a forma como a askésis [14] grega ganha importância junto à tradição cristã ainda procurando por uma identidade.

Há uma análise da oposição entre o ascetismo cristão e a ascética pagã, ambas possuindo estreita relação com o cuidado de si, instituindo um campo prescritivo moral com o qual o indivíduo irá constituir uma espécie de “armadura da conduta cotidiana”[15]. Onde está, com efeito, a diferença uma vez que o sentido do ascetismo é sempre um domínio sobre o desejo e o controle sobre o uso dos prazeres no sentido de um cuidado de si? Em que sentido se pode dizer que a prática da escrita serviria, enquanto princípio racional, para o controle do pensamento, isto é, dos movimentos da alma? A seguir, portanto, apresentaremos estas questões dimensionando como Michel Foucault vira no uso que os pensadores da antiguidade faziam da escrita uma forma de cuidado de si, i. e, conforme A escrita de si:

Constituir a si próprio como sujeito de ação racional pela apropriação, a unificação e a subjetivação de um “já dito” fragmentário e escolhido; no caso das notações monásticas das experiências espirituais, tratar-se-á de desentranhar do interior da alma os movimentos mais ocultos, de maneira a poder libertar-se deles. No caso da narrativa epistolar de si próprio, trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e aquele que se volve para si próprio quando se aferem ações quotidianas às regras de uma técnica de vida.

A apropriação do sujeito do “já dito” e sua consequente utilização em uma prática de si, i. e; um exercício (que é um modo de subjetivação) concebido conforme o entendimento que os antigos (seja grego, seja romano) tinham do papel da escrita como exercício de si no pensamento, tinha duas formas, segundo Foucault, quais sejam, o hypomnemata e a correspondência. A função que vão cumprir é da ordem de uma tekne tou biou, uma arte de viver, “que é preciso entender como um adestramento de si por si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 132).

2. A ESCRITA DE SI: HYPOMNEMATA

A leitura produz no leitor um movimento, em sua alma, que pode ser utilizado tal qual uma “ferramenta” para auxilio na sua disposição de vida. Fazer coleta de fragmentos dos textos lidos sugere algo de peculiar, i. e; com a coleta de citações, “reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória” se forma um conjunto de elementos componentes de uma “memória material das coisas ouvidas ou pensadas” que um “público cultivado” chamará “livro de vida” ou “guia de conduta”: o hypomnemata.

Assim, conforme o Vocabulário de Foucault[16] define o caderno de notas grego, hypomnemata, tem por característica estar á mão, tal qual uma ferramenta, conforme já dito acima, para qualquer das vicissitudes da vida que se apresente tais como “um luto, um exílio, uma ruína, a desgraça” de um lado; e de outro, combater “este ou aquele defeito como cólera, a inveja, a tagarelice, a bajulação” dentre outras formas de vícios constantes na condição humana. Foucault afirma,

Não haverá que considerar esses hypomnémata como um simples suporte de memória, que poderia consultar a cada tanto, caso se apresentasse a ocasião. Eles estão destinados a substituir a recordação eventualmente débil. Eles constituem, antes, um material e um quadro para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar, conversar consigo mesmo e com os outros etc. Trata-se de constituir um logos boéthikos; um equipamento de discursos que servem de ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz e de fazer calar as paixões, como um amo que com uma palavra aplaca o latido dos cães (FOUCAULT, 2009, p. 221).

O hypomnemata serve de “base” para a escrita das correspondências que serão enviadas em auxilio dos amigos-discípulos, nesse sentido, podemos dizer que não apenas o ler é fundamental para a constituição de um hábito a tornar-se um ethos, mas uma associação deste com o ato de escrever-para, que, se por um lado favorece, em complementaridade com a anachorese (aqui tratando da tradição asceta cristã supracitada), uma forma de disciplina e ascese; por outro lado, suscita a meditação que, conforme Foucault, citando Epicteto, diz, “esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reativa o que ele sabe, se faz presente como um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real” (FOUCAULT, 2009, p.133). Portanto, há um sentido “prático” da leitura que não apenas o aumento da cultura – ou como dissera Heráclito da polimathia.  

Convém pensar no hypomnemata como uma ferramenta para as circunstancias mais variadas (sobretudo as adversas) como dito acima, mas, vislumbrar que o fim é um só, qual seja, a produção de um corpo estético-ético possível segundo a prática de exercícios ascéticos. Sêneca, por exemplo, é um dos autores mais apropriados por Foucault, e, este estoico romano, verteu, por exemplo, da tradição grega para a latina, a chamada paraskeué[17] (em latim instructio) que era a preparação para um acontecimento[18] vindouro possível. No curso de 1982, A Hermenêutica do sujeito, na aula de 17 de março (primeira hora), Foucault trata das técnicas utilizadas pelos filósofos que prescrevem que a vida tal qual uma regula (uma regra), deve ser dotada de uma estilística. Vejamos como ele expõe a questão.

A obra bela é a que obedece à ideia de uma forma (um certo estilo, uma certa forma de vida). Esta sem dúvida é a razão pela qual jamais encontramos na ascética dos filósofos aquele mesmo catálogo tão precioso de todos os exercícios a serem realizados, em cada momento da vida, que encontramos entre os cristãos. Portanto, estamos diante de um conjunto bem mais confuso, cuja elucidação podemos tentar iniciar da seguinte maneira: detenhamo-nos em duas palavras, dois termos que se referem ambos a este domínio dos exercícios, da ascética, mas que designam, creio eu, dois aspectos, ou se quisermos duas famílias. De um lado, temos o termo meletân e, de outro, gymnázein (FOUCAULT: 2004, 514).

A reflexão de Foucault demonstra como a práxis dos filósofos não era regida por qualquer forma de breviário[19] (catálogo dos exercícios a serem realizados em cada momento da vida), e sim, por técnicas (tékhne) cujo sentido era expressar uma vida bela, exemplar. Há, contudo a distinção entre dois termos, quais sejam, melete e gymnázein que em alguns filósofos estão separados e noutros seguem quase como sinônimos. Na palavra grega que tem a correspondência com cuidado, epimélia, há uma junção entre uma preposição epi que diz através de, acerca de, e, mélia que tem relação com meléte, isto é, exercício que implica uma energia intensa, atenção constante. Jean-Pierre Vernant, no seu livro Mito e pensamento entre os gregos, esclarece que:
O que caracteriza, no entanto, a meléte filosófica é que à observância ritual e ao exercício militar ela substitui um treinamento propriamente intelectual, uma adestragem mental que acentua antes de tudo, como no caso da mélete poética, uma disciplina de memória. Virtude viril, a mélete filosófica, como a mélete guerreira, implica uma energia intensa, atenção constante, epiméleia, duro esforço. (VERNANT, 2002, p. 169/70)

Podemos concluir, portanto, que o exercício da escrita coletora, na forma do hypomnemata, era uma prática ascética, portanto, uma meléte?

Temos duas tradições, a grega e a latina, que Foucault usou como fontes para suas investigações sobre a forma como se instituir a si mesmo como um experimento ético-moral (cuidado de si). A tradução que os latinos vão fazer, segundo Foucault nos diz em A hermenêutica do sujeito, do termo meletân é meditari, e do termo meléte é meditatitio. O que de significativo essa tradução nos indica? Foucault nos chama a atenção para não perdermos de vista que:

Tanto meletân-meléte (em grego) quanto meditari-meditatio (em latim) designam uma atividade, uma atividade real. Não se trata simplesmente de uma espécie de enclausuramento do pensamento lidando livremente consigo mesmo. Trata-se de um exercício real. Em certos textos, a palavra meletân pode perfeitamente designar, por exemplo, a atividade agrícola. A meléte, situação de meletân é um verdadeiro trabalho. Meletân é também um termo empregado na técnica dos professores de retórica para designar aquela espécie de trabalho de preparação ao qual o indivíduo deve submeter-se quando precisa falar livremente, improvisando, isto é, quando não tem diante dos olhos um texto que leria ou que declamaria depois de tê-lo decorado. É uma espécie de preparação, preparação muito restritiva, concentrada em si mesma, mas que ao mesmo tempo prepara o individuo para falar livremente. É a meléte dos retóricos. Creio que, quando os filósofos falam de exercícios de si sobre si, a expressão meletân designa algo como a meléte dos retóricos: um trabalho que e pensamento exerce sobre si mesmo, um trabalho de pensamento, mas que tem essencialmente por função preparar o indivíduo para aquilo que ele em breve deverá realizar. (FOUCAULT, 2004, 515)

O termo Meléte citado acima compõe o que chamaremos aqui, para favorecer didaticamente o entendimento, um binômio, qual seja meléte/gymnázein. Sendo que o outro termo, gymnázein, evoca a relação existente entre o exercício na forma intelectual, exercício de adestramento do pensamento como prática de si, e o exercício ginástico determinado (leitura, escrita) que é, também, da ordem de um adestramento do corpo. O hypomnemata é um exercício de adestramento na forma da compilação. Vejamos o que Foucault nos diz acerca do segundo termo do binômio.  

Gymnázein (...) indica o fato de se fazer ginástica para si mesmo, significa propriamente “exercitar-se”, “treinar-se” e que, parece-me, reportar-se mais a uma prática em situação real. Gymnázein é estar efetivamente em presença de uma situação, situação que é real, quer se tenha artificialmente provocado e organizado, quer se a depare na vida, e na qual se põe à prova aquilo que se faz. Esta distinção entre meletán e gymnázein é ao mesmo tempo clara e bastante incerta. Incerta porque há vários textos nos quais manifestamente não existe diferença entre os dois termos, como em Plutarco, por exemplo, que emprega meletân/gymnázein quase que um pelo outro, sem diferença. Em outros textos ao contrário, é muito claro que a diferença existe. Em Epicteto temos pelo menos duas vezes a série meletân/gráphein/gymnázein. Assim, meletân é meditar, é, se quisermos, exercitar-se em pensamento. Pensamos em coisas, pensamos em princípios, refletimos sobre eles, preparamo-nos pelo pensamento. Gráphein é escrevê-los (portanto, pensamos em algo e o escrevemos). (ibid, ibidem. P. 515/6)

Existe uma sutil distinção dos termos do binômio, mas nada que não corroborasse a ideia de que o exercício do pensamento para o filósofo está numa ordem de relação e equivalência ao do trabalho sobre o corpo na prática do exercício ginástico e que a grafia é a terceira via, terceira forma de trabalho sobre si que caracteriza a askesis[20] filosófica.

A redação dos hypomnemata, segundo Foucault segue um ordenamento de acordo com três princípios fundamentais, quais sejam:
  1.       “A pratica de si implica leitura, pois não é possível tudo tirar do fundo de si próprio nem armar-se por si só com os princípios da razão indispensáveis à conduta: guia ou exemplo, o auxílio dos outros é necessário”.
  2.            “Embora permita contrariar a dispersão da stultitia[21], a escrita dos hypomnemata é também (e assim deve permanecer) uma prática regrada e voluntária da disparidade”.
  3.           “O contraste desejado não exclui a unificação. Esta, porem, não se realiza na arte de compor um conjunto; deve estabelecer-se no próprio escritor, como resultado dos hypomnemata, da sua constituição (e portanto no próprio gesto de escrever), da sua consulta (e portanto nas respectivas leituras e releituras)”.


Esse exercício, essa ginástica do pensamento, por fim, culmina num formato de escrita, o caderno de notas, regido por dois princípios: “a verdade local da máxima” e “o seu valor circunstancial de uso”. Os três princípios acima aliados a essas duas regras vão originar um corpo correspondente, conforme diz Foucault,

“o papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um “corpo” (quicquid lectione collectum est, stills redigat in corpus). E, este corpo, há que entendê-lo não como um corpo de doutrina, mas sim – de acordo com a metáfora tantas vezes evocada da digestão – como o próprio corpo daquele que, ao transcrever as usas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em forças de sangue” (in vires, in sanguinem). Ela transforma-se, no próprio escritor, num princípio de ação racional” (FOUCAULT, 2009, p.143)

Escrever tem um caráter de subjetivação conquanto seja esta escrita algo que se insurja enquanto um “protocolo de experimentação”. Como diz Deleuze, em crítica e clinica, “são acontecimentos na fronteira da linguagem. Porém, quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se ouve nem se vê coisa alguma através dela, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos. A literatura é uma saúde” (DELEUZE, 2011, p. 143).

3. A ESCRITA DE SI: A CORRESPONDÊNCIA ESCRITA/CUIDADO

A correspondência é uma via de “mão dupla”, vai para o destinatário carregando “em forças e em sangue” palavras de zelo e de estímulo ao cuidado de si, mas, não sem antes voltar-se para o remetente fazendo-o, no gesto da escrita, escutar-se a si mesmo. Como diz Foucault, “a carta que se envia age, por meio do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, age sobre aquele que a recebe. Nessa dupla função a correspondência está bem próxima dos hypomnemata, e sua forma muitas vezes se assemelha a eles” (FOUCAULT, 2004, p. 153).

As cartas que Sêneca envia para seus correspondentes funcionam, por um lado como exercício de uma escrita de si, portanto como cuidado de si, e, por outro, como uma direção – que no caso de um Sêneca já idoso e retirado de suas funções públicas – é exercida enquanto auxílio ao discípulo que, esse sim, exercendo função pública, é requerente de uma demanda do velho mestre. É, portanto, pra falar nos termos de Plutarco, a função ethopoiética (no dito de Sêneca, “ofícios recíprocos. Quem ensina se instrui”) da escrita, na forma de lembrar-se de praticar os preceitos enquanto os invoca para outrem.

Existe, com efeito, algo em comum com o hypomnemata, mas, segundo Foucault, não deve ser considerada como “simples prolongamento” da prática dos mesmos. Ele diz,

Contudo, e apesar de todos os pontos comuns, a correspondência não deve ser considerada um simples prolongamento da prática dos hypomnemata. Ela é alguma coisa mais que um adestramento de si mesmo pela escrita, através dos conselhos e advertências dados ao outro: constitui também uma certa maneira de se manifestar para si mesmo e para os outros. A carta torna o escritor “presente” para aquele a quem a envia. E presente não simplesmente pelas informações que ele lhe dá sobre sua vida, suas atividades, seus sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente com uma espécie de presença imediata e quase física “Tu me escreves com frequência e te sou grato, pois assim te mostras a mim [te mihi ostendis] pelo único meio de que dispões. Cada vez que me chega tua carta, eis-nos imediatamente juntos. Se ficamos contentes por termos os retratos de nossos amigos antigos ausentes [...] como uma carta nos regozija muito mais, uma vez que traz os sinais vivos do ausente, a marca autentica de sua pessoa. O traço de uma mão antiga, impresso sobre páginas, assegura o que há de mais doce na presença: reencontrar” (FOUCAULT, 2004, 155/6)

Escrever, com efeito, é “fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro”, e, nesse sentido, de novo se apresenta a “mão dupla” na via expressa do “dito” que oferece ao destinatário um “olhar omnipresente” sobre ele que é, igualmente, “uma maneira de se oferecer”, a si mesmo que escreveu, “ao seu olhar através do que é dito sobre si mesmo” um autorretrato. Se instala uma ação de reciprocidade naquele que escreve, bem como naquele que lê, que é da ordem de um exercício (eis aí, de novo, o supracitado binômio melete/gymnázein agora transformado no trinômio com a junção do graphein) que “trabalha para a subjetivação do discurso verdadeiro, para sua assimilação e elaboração como “bem próprio”, constitui assim, ao mesmo tempo, uma objetivação da alma”. O preceito estoico suscitado por Sêneca nas epistolas a Lucilius sempre é uma constante, ele diz que “devemos pautar nossa vida como se todo mundo a olhasse”. Poderíamos ilustrar esta passagem com uma aproximação ao imperativo categórico kantiano. Diz Foucault:

O trabalho que a carta opera no destinatário, mas que também é efetuado naquele que escreve pela própria carta que ele envia, implica portanto uma “introspecção”; mas é preciso compreendê-la menos como um deciframento de si por si mesmo do que como uma abertura que se dá ao outro sobre si mesmo. Não resta a menor dúvida de que estamos diante de um fenômeno que pode parecer pouco surpreendente, mas que é carregado de sentido para aquele que quisesse escrever a história da cultura de si: os primeiros desenvolvimento históricos do relato de si não devem ser buscados do lado das “cadernetas pessoais”, dos hypomnematas, cujo papel é o de permitir a constituição de si a partir da coleta do discurso de outros; podem-se em contrapartida encontra-los do lado da correspondência com outrem e da troca da assistência espiritual” (FOUCAULT, 2004, P.157).

Finalmente, a relação entre os meios, quais sejam, o hypomnemata e as correspondências, são de complementaridade; uma conduz à outra, no sentido da constituição a si de um experimento ético-estético, da construção de um corpo não apenas teórico, mas, sobretudo, prático, de uma subjetivação dos discursos não, como diria Foucault (no prefácio de O uso dos prazeres), como “uma apropriação dos outros para fim de uma comunicação”, mas, sobretudo, para constituir um indivíduo portador de uma estilística que lhe atravessasse a vida exprimindo-a como uma obra de arte; enfim, como numa estética da existência.      

4 CONCLUSÃO

Michel Foucault percebeu na forma como o público cultivado da antiguidade se relacionava com a escrita enquanto sendo uma forma de subjetivação deveras diferente da modernidade; havia uma intenção de dispor desta escrita como uma ferramenta para agir sobre si mesmo de forma ética. Já havia visto nos exemplos de figuras da literatura – nomes como Raymond Roussel, Blanchot, Kafka, Bataille, para citar apenas alguns – como a escrita estabelece uma relação de subjetivação absoluta, isto é, como, para usar uma formula de Nietzsche, se tornar o que se é. Esse é o sentido da escrita como cuidado de si, tornar-se o que se é na medida em que se escreve com sangue, palavras essenciais para conferir ao existir uma forma apropriadamente estética, ou, dito de outra forma, como uma estética da existência. O próprio Foucault, diz Ortega, se utilizou dessa forma de escrita, quando:

a situação existencial, que foi sempre para Foucault origem e causa de cada um de seus livros, volta-se agora contra ele, pois observa-se, precisamente em seus últimos livros, uma espécie de Philosophiae consolatio, uma tentativa de fazer uma bela obra de uma vida ameaçada pela presença constante da morte pela AIDS – em concordância com a filosofia antiga, o que representa uma atualização do estoicismo. (ORTEGA, 1999, p.23).

Por fim, a coerência desse autor com a sua escrita sempre foi a marca presente na forma como atuou enquanto intelectual engajado nas causas em que acreditou, independente da história demonstrar que ele estava certo ou não[22]. No seu trabalho, pode-se ouvir sub-repticiamente uma contraposição ao dito: “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, com outro, mais afeito à estilística da existência, que diz: “faça o que eu digo, faça como eu faço”.

AUTOR
Roberto Kennedy de Lemos Bastos é licenciado em Filosofia pela UFBA, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 2011.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Veja, 2009.
_____. Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____. O Governo de si e dos Outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____. A Coragem da Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_____. História da sexualidade vol. II O uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2001.
_____. História da sexualidade vol. III O cuidado de si. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2007.
_____. Ética, Sexualidade, Política. Col. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
GROSS, Frédéric. Foucault a coragem da verdade. São Paulo: Parábola editorial, 2004.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações editora, 2014.
ORTEGA, Francisco. Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1999.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os Gregos. Rio de janeiro: Paz e Terra, 2002.
VEYNE, Paul. Foucault seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.




Notas:
[2] Ver: PRADEAU, J-F. O Sujeito antigo de uma ética moderna: acerca dos exercícios espirituais na História da Sexualidade de Michel Foucault. In: GROSS, F. Foucault a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editora, 2004. P. 131/ 153.
[3] A recepção da obra de Foucault convencionou dividir a démarche em três momentos que corresponderiam ao objeto de investigação: arqueologia do saber, os saberes; a genealogia do poder, os poderes disciplinares instaurados a partir dos saberes; e, finalmente, uma terceira via a estética da existência cuja série de pesquisas corresponderia à fase final, tornando-se assim os três pilares do método. A via arqueológica (saber); a genealógica (poder) e a via estética (sujeito). A esse respeito, conferir os cursos de 82,83 e 84, respectivamente, A hermenêutica do Sujeito, O governo de si e dos outros, e, A Coragem da Verdade (O governo de si e dos outros II). Todos se encontram publicados em língua portuguesa (vide referência bibliográfica deste artigo).
[4] Posteriormente, após sua morte, reuniram-se artigos, entrevistas, ensaios, em dois volumes chamados ‘ditos e escritos’. No Brasil encontra-se publicados em diversos volumes.
[5] A fala franca (parresía), que Foucault dedicará seus últimos cursos no Collègè de France, seria a forma oposta à verdade epistemológica consubstanciada na “analítica” dos saberes aduzido do homem, trata-se de uma espécie de “imperativo” que instaura no ser o ardor da obrigatoriedade moral da ação refletir o belo. Estaria, com efeito, a fala franca relacionada com uma virtude cardeal, isto é, a coragem (andreia), que lhe aufere uma beleza ethopoiética.
“Podemos citar, em apoio e ilustração dessa importância na cultura antiga, práticas tão frequentemente, tão constantemente, tão continuamente recomendadas [como] o exame de consciência prescrito pelos pitagóricos ou estoicos, de que Sêneca deu exemplos tão desenvolvidos e que voltamos a encontrar em Marco Aurélio”. (FOUCAULT: 2011, pg. 5)
[6] “Esse princípio – creio ter tentado apresenta-lo no curso dado a dois anos [A Hermenêutica do Sujeito] – é o da epiméleia Heautoû (do cuidado de si, da aplicação a si mesmo). Esse preceito tão arcaico, tão antigo da cultura grega e romana, e que encontramos regularmente associado, nos textos platônico e [mais] precisamente nos diálogos socráticos, ao gnôthi seautón, esse princípio (sautoû epimelê: ocupa-te de ti mesmo) deu lugar, creio, ao desenvolvimento do que poderíamos chamar de “cultura de si”, uma cultura de si na qual se vê formular, se desenvolver, se transmitir, se elaborar todo um jogo de práticas de si”. (FOUCAULT: 2011, pg. 6)
“essas espécies de diários que recomendavam que as pessoas escrevessem sobre si mesmas, seja para coligir e meditar as experiências tidas ou as leituras feitas, seja também para contar a si mesmo, ao despertar, [seus] sonhos” (FOUCAULT: 2011, pg. 5).
[7] Foucault na última fase do seu trabalho, interrompido prematuramente pela sua morte, cunhou esse noção, tal diz Castro em seu vocabulário de Foucault, que, “por estética da existência, há de se entender uma maneira de viver em que o valor moral não provém da conformidade com um código de comportamentos, nem de um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita. A estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida como jogo de poder. Nesse sentido, haveria que caracterizar o modo de sujeição da moral grega dos aphrodisia não só como estético-político. A problemática da liberdade, entendida como não escravidão, encontra-se no coração dessa ética: não ser escravo dos outros, não ser escravo de si mesmo ou, em termos positivos, governo dos outros e governo de si mesmo” (CASTRO, 2009, p. 150/1).
[8] Foucault, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2009. p. 129.
[9] O risco segundo Foucault era o de “retardar e desorganizar o programa de publicações previsto”; além disso, abordando textos e documentos de autores de um período distante do seu horizonte de investigação usual e, não sendo nem latinista nem helenista, podendo incorrer no equívoco de, conforme o diz, “submetê-los sem me dar conta, a formas de análise ou a modos de questionamento que, vindos de outros lugares, não lhe convinham”. Equívoco que, segundo Pierre Hadot, Foucault comete quando da sua análise acerca do comportamento ético dos estóicos. Para esclarecimentos sobre esse ponto, ver HADOT, Pierre. Reflection about the notion of care of the self. In: The Cambridge companion to Foucault, ed. Gary Gutting. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
[10] O risco de toda hipótese é não ter bases suficientes para dar consistência à mesma, contudo, fazemos coro com Foucault, “para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar de cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietação equivale a demissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo planeta” (FOUCAULT, 2001, p. 12), e mais, como ele mesmo disse na sua última entrevista ao Le Monde, em junho de 1984, concedida a A. Fontana: “para alguns, escrever um livro sempre implica correr algum risco. Por exemplo, não conseguir escrevê-lo. Quando se sabe de antemão onde se quer chegar, falta a dimensão da experiência, a que consiste em escrever um livro correndo o risco de não chegar ao fim” (FOUCAULT, 2004, p. 288), sempre há o risco de não conseguir terminar.
[11] Michel Foucault usa o termo ethopoiese que retira da obra do filósofo romano Plutarco autor de biografias de indivíduos famosos no seu tempo e noutros tempo.
[12] Atanásio de Alexandria foi um bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, depois tornado santo, que viveu no século IV d. C, e era defensor da vida ascética. Foi o defensor da consubstanciação das Três Pessoas Divinas na Santíssima Trindade, tal como definido no pelo Primeiro Concílio de Niceia em 325. 
[13] Anachoresis no contexto da prática do cuidado de si, “significa ausentar-se do mundo no qual alguém se encontra imerso, interromper o contato com o mundo exterior, não sentir sensações, não se preocupar com o que se passa à nossa volta, fazer como se não se visse o que acontece” (CASTRO: 2009 pg. 30); dito em outras palavras, um retiro espiritual.
[14] Askésis são todos os exercícios empreendidos por quem procura uma ascese espiritual. São bastante conhecidos pela tradição monástica e a confissão é uma das que possuem mais reputada importância.
[15] O tema da cavalaria, por exemplo, remonta a uma organização de mundo conforme a ordem dos costumes rígidos imposta numa conduta específica e característica, geralmente, monástica. Podemos, no tocante à armadura, apresentar os significados simbólicos que organizam esse mundo. Um forte assento na fé cristã e no salvacionismo. Não são homens comuns, mas, heróis. Lembramos que os heróis são a representação divina no humano, são dotados de virtudes, armas contra a vicissitude humana. A espada de Teseu, o escudo, o elmo, as pederneiras, enfim, “as roupas e armas” do divino para a realização da hierofania, do cântico dos heróis.
[16] Uma ferramenta à mão (procheiron) é esse Vocabulário de Foucault escrito por Edgardo Castro. Um ótimo exemplo de como funcionava o hypomnémata. Servia para a produção de tratados sobre os mais variados temas, nesse caso, essa ferramenta serve para familiarizarmo-nos com o conjunto dos conceitos de que Foucault se utiliza para pensar e realizar o seu diagnóstico do presente, dito de outra forma, a sua ontologia do presente.  
[17] Segundo Foucault, paraskeué “é o que se poderia chamar de preparação ao mesmo tempo aberta e finalizada do indivíduo para os acontecimentos da vida. Quero com isso dizer que se trata, na ascese, de preparar o indivíduo para o futuro, um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos, acontecimentos cuja natureza em geral conheçamos, os quais porem não podemos saber quando se produzirão nem mesmo se se produzirão” (FOUCAULT, 2004, p.387)
[18] E sabemos que a tradição filosófica da antiguidade nos diz que não podemos evitar acontecimentos, contudo podemos lidar com a seleção dos encontros.
[19] Nome dado ao livro onde se encontra os textos que se destinam a cumprir uma “liturgia das horas” para todo o momento do dia, no sentido de fazer com que os que se ordenarão na vida religiosa (monástica ou não) cumpram suas funções sem jamais, contudo, esquecer-se de parar em meio a toda a agitação da vida e recordar que a obra é de Deus.
[20] É sabido que o termo ascetismo deriva do termo grego askesis que quer dizer exercício.
[21] O termo significa, em algumas circunstancias tolice, parvoíce, noutras loucura e insanidade. Contudo, aqui, a stultitia “é definida pela agitação do espírito, a instabilidade da atenção, a mudança das opiniões e das vontades, e, consequentemente, a fragilidade perante todos os acontecimentos que possam ter lugar” (FOUCAULT, 2009, p.139).
[22] Como no caso da simpatia do autor pelo oriente (oriunda da sua busca por uma forma de vida alternativa ao modelo ocidental) e seu posicionamento favorável à revolução do Irã que Depois o Xá Reza Pahlevi e ascendeu o Aiatolá Khomeine ao poder espiritual. A respeito desse assunto há o livro de Jane Afary e Kevin B Anderson Foucault e a revolução Iraniana.  

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 5 | vol. 1 | Ano 2017

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