Paulo Manaf (ZooMM)*
Andreia A. Marin (UFTM)**
De um ponto (aleatório) de partida... (introdução)
para além da borda pretensamente humana, para além dela, mas de forma alguma sobre uma única borda oposta, no lugar do “Animal” ou da “Vida-Animal”, há, de antemão, uma multiplicidade heterogênea de viventes... (DERRIDA, 2011, p.60).
O texto é tecido com fragmentos de diálogos, em cartas imaginárias, tratando de seres imaginários e perfeitamente existentes, com a devida licença poética que dá vida a qualquer ser no momento de sua invenção. Da concepção ao nascimento desses seres, já parece haver uma sutil intencionalidade, ainda que a arte jamais possa pautar-se em intenções carregadas de sentidos pré-definidos. Tal intencionalidade é produtiva, quer tornar o que existe em dimensões não facilmente perceptíveis, no mundo diminuído por nossas pretensões racionalizadas, visíveis e, por que não, palpáveis.
Não é incomum que esses seres causem repulsa ou atração, ou ambos e a um só tempo. Dão indícios de algo que tendemos a evitar: a suspeita de que são partes nossas materializadas em imagens estranhas. Em outros termos, eles parecem carregar os estranhamentos que pressentimos em nós e dos quais um movimento de projeção à dimensão que denominamos imaginária parece nos libertar. Essa não é uma tentativa incomum: muito já se falou sobre os artifícios humanos para apartar de si o animal, depurar suas forças instintivas que impedem a formação de uma integral humanidade. Recuperemos o discurso sobre o corpo dos ressurretos, tão bem discutido por Agambem (2013, p.35-38): nesse corpo, já liberto das restrições de uma humanidade encarnada, tudo o que simboliza sua animalidade foi extirpado: produção, reprodução, alimentação, defecação, em síntese, o seu devir orgânico. Doravante, pode viver a essência humana para a qual sempre estivera destinado esse ser para além dos outros seres... É fácil desdobrar: o devir orgânico prende e demoniza; a santificação se livre dos limites de sua corporeidade, de sua finitude. O homem “pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominá-lo e de destruir sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2013, p.26).
A pulsão própria do devir orgânico, materializada a todo o momento e de infinitas formas – produção, excreção, nudez, contaminação, hibridização – está estampada em esculturas de arquitetos medievais e das criações contemporâneas de Piccinini. As fêmeas aí hibridizadas são também, recorrentemente, imagens embebidas na dimensão do sagrado e, muitas vezes, demonizadas. O duplo destino: na linguagem antropocêntrica-androcêntrica[1], o animal e a mulher são contidos em seus devires orgânicos, ao mesmo tempo em que mergulhados no sagrado. Seus corpos, substratos do funcionamento da vida, ganham asas de anjos, traços grotescos e demoníacos.
É com essas imagens que queremos “falar”, provocando um movimento filíaco com a bios, e confusões entre humanidade e não humanidade. Para isso, precisaremos contornar a reprovação do não-humano, do visceral, do descontrole, representados nas fêmeas demonizadas em gárgulas, e a repulsa diante do estranho, do misto, do corpo producente de Piccinini. Os seres de Piccinini não são humanos, tampouco inumanos. Eles habitam um mundo que poderia ser o nosso mesmo, como uma das muitas possibilidades, um lugar onde as fronteiras são delicadamente destroçadas pela potência da obra de arte. Síntese do trajeto: a intenção é colocar em evidência o que falha no projeto existencial humano; o encontro entre gárgulas e híbridos leva à positivação de uma zona de compartilhamento que é comprovada na apelação ao imaginário, mas negada pelo discurso moralizante e androcêntrico; a meta é a reconciliação, como se as imagens de Piccinini legitimassem as gárgulas, os grotescos, fazendo o humano se transpor para a fronteira, a zona de compartilhamento, conciliado com sua animalidade.
Encontro com gárgulas...
Era uma experiência de melancolia. Sentia-me desencarnada vagando pelas ruelas de uma cidade desconhecida. Grupos de turistas invadiam espaços curiosos, amplas praças onde desembocavam ruas estreitas e interiores sombrios de igrejas. Eu, do fundo do meu nada não queria sair para explorações históricas, humana ou arquitetônica. Queria somente perder-me.
Perdi-me, de fato... Olhando para o alto para tentar localizar algum marco referencial, ou talvez o destino do bonde que atravessava caoticamente as ruas em direção do Mosteiro de São Jorge, encontrei as figuras intrigantes. Eram muitas e espalhadas por todos os lados onde se pudesse avistar uma torre, um telhado, despencando das alturas para um voo que começava a me alucinar. Meus olhos, nos primeiros instantes, as tinham visto imóveis, irresolutas, mas, em questão de minutos, já se moviam, sobrevoando, confusas, os jardins internos e becos por onde cada vez mais me embrenhava na experiência de deriva. Devaneei absorta nas imagens errantes, no balé de formas bizarras e indeterminadas. Eram asas imensas que, no movimento de abertura, deixavam à mostra corpos fortes, mas flexíveis, aparentemente capazes de uma grande destruição caso se pusessem em ataque. Mas continuavam, com suas formas diversas, apenas assemelhadas pelas asas e pela força, em um movimento per si, sem qualquer intenção insinuada, e com uma destreza surpreendente que evitava os choques.
Depois de algum tempo, o devaneio cedeu ao comportamento teórico e comecei uma observação mais acurada tentando identificar, onde só haviam quimeras, panmorfismos, um animal não humano ou um humano ou um demônio ou um deus ou... Uma mulher! E isso me devolveu um estado melancólico agravado por uma curiosidade senil e a preguiça de ser enredada em academicismos, que eu queria evitar. Tarde demais. O balé foi logo dando espaço a mil questões e, por que não admitir, a um certo temor infundado que reverberava da tradição judaico-cristã em que fora mergulhada minha existência, me forçando a evitar as feições demoníacas dos seres voadores de meu devaneio, agora novamente imobilizados nos cantos dos telhados, ameaçadores.
Saí dos jardins internos, dos becos enigmáticos, das ruas confusas em busca de uma biblioteca, de algum acesso ao mundo seguro dos conceitos, onde pudesse entender em que momento, e por quais motivações, o humano aventurara-se nas formas aberrantes, sempre impressas com traços animais, nos cantos do mundo que desenhara para abrigar seus projetos existenciais. Aceitei, de bom grado, os primeiros contatos com um acervo literário que ia anunciando, em minha busca teórica, as gárgulas femininas apresentadas por Catarina Barreira e as harpias.
Curiosamente, um animal humano, distante um oceano de mim, era atravessado por inquietações muito próximas das minhas, além do compartilhamento de algum estado melancólico. Observava, intrigado, as fêmeas mutantes da artista Patricia Piccinini, com as quais passou a compor um texto que, quimericamente, vai penetrando nessa escrita.
Dear Patricia,
Hoje de manhã aconteceu uma coisa muito estranha. Tudo começou quando eu estava breaking my fast com café, bolo e frutas - coisa que, imagino, você também coma - sob o lento sol de outono do Cerrado. Por sinal, Patricia, devo revelar a todos, o quanto antes, que, embora suspeite que caminhões betoneira estejam se reproduzindo, hibridizando em gárgulas globalizadas, geneticamente modificadas para vomitar concreto movediço sobre o Cerrado, sinto cada vez mais o calor do vento, o doce das flores, a cor guará do crepúsculo varando tudo o que é urbano e me arrebatando para si, talvez um paralelo com o que a savana australiana faça com você de vez em quando.
Estava conversando baixinho com o Cerrado, ele sussurrando em meu ouvido histórias tão antigas quanto o mar e eu, admirado, murmurando coisas que virão e coisas que existem no coração dos homens. Ao morder uma maçã, veio à lembrança a imagem de uma mulher alta, esbelta, cabelos lisos grisalhos presos em um rabo-de-cavalo, falando com a plateia. Os olhos eram astutos, os gestos contidos, porém contundentes. Era alguém influente, só não me recordava quem exatamente. Lembrei então que a imagem se parecia muito com Donna Haraway. Uma nova mordida na maçã e, então, percebi que poderia não ser Haraway, mas sim Jane Goodall. Satisfeito, estava me preparando para continuar com minha maçã quando, subitamente, tive um pensamento incomum: na verdade, a imagem que vi não era Donna Haraway ou Jane Goodall, mas sim Haraway e Goodall. Duas mulheres diferentes eram uma só matéria ambivalente. É assim, Patrícia, como as coisas dos sonhos, as coisas imaginadas às vezes possuem propriedades totipotentes e podem se transfigurar em coisas derivadas.
Suponho que nem mesmo você, minha querida artista, tenha a medida exata de quanta ambiguidade somos capazes de negligenciar. Coloquei mais um pouco de café na xícara, afaguei a gata em meu colo e imaginai o impacto que algumas de suas obras causam nas pessoas. Nem sempre é fácil reparar no quanto nossa sociedade se esforça para eliminar totalmente as ambiguidades do mundo. Certezas científicas, dogmas religiosos, maniqueísmos sociais, precisões técnicas, assertividades corporativas, estatísticas exatas, notícias incontestáveis, medicamentos seguros, emoções catalogadas, enfim, parece haver toda uma gama de estratégias para criarmos asserções artificiais, de forma cada vez mais incisiva e a cada dia mais dependente da tecnologia. Imprecisões e ambivalências podem causar desconforto e, portanto, devem ser desbastadas ao máximo, de jovens adestrados para entrevistas de trabalho a doutorandos cerceados a papers pragmáticos, enfim, imprecisão e acaso, embora substrato do mundo, não são bem-vindos na execução do protocolo de previsão e controle. Talvez porque ambiguidades demandam tempo: quando o cérebro é confrontado com informações ambíguas, reage recrutando um número maior de áreas neurais; ele tenta engajar setores cognitivos superiores mais sofisticados, na ânsia de capturas padrões e buscar significados que realizem nossa necessidade de entendimento. Como resultado, o tempo de processamento da informação aumenta sensivelmente. Só isto já é o suficiente para que empresas sejam obrigadas a gastar bilhões com campanhas publicitárias cada vez mais rápidas e certeiras. Se tempo é dinheiro, então a ambiguidade é o que me mantém pobre e, portanto, incompetente para o mundo da tecnocultura. Purificados do incômodo da ambiguidade - e, por conseguinte, dos resultados inesperados das nossas ações - podemos projetar, enfim, uma tecnologia em termos valorativos absolutos: boa, acessível a todos e em constante movimento linear ascendente rumo à plenitude; a tecnologia má e apocalíptica é então expurgada para a ficção e circunscrita nos filmes de ação.
Retorno à ambiguidade talvez não seja um termo apropriado para uma reflexão a partir da sua obra, Patricia, mas não posso deixar de notar que ele expressa, de certa forma, a ideia de resistência contra ilusões visuais e sonoras meticulosamente arquitetadas - e muito bem pagas - para um mundo entulhado de certezas sintéticas. Nunca saímos daqui e continuamos sendo o que somos. Em suas obras de arte, você nos apresenta narrativas carregadas de ambiguidades pungentes, frente às quais não somos mais capazes de negligenciar nossas próprias narrativas e ambiguidades da experiência com o outro - mesmo quando este outro é um artefato tecnológico. Em suas mãos, o hiper-realismo torna-se um meio eficaz para criar um mundo atual e absolutamente factível de desdobramentos que irradiam a partir de um núcleo efervescente de potencialidades, em especial as potencialidades de conexão entre os seres. Como disse Giovanni Aloi (2012, p.83), “Piccinini’s works are open texts carefully balanced to encourage a sympathetic bond with her hybric creatures – after all, they are not wholly monstruous”. A ambiguidade inflama nossa percepção na medida em que suas obras se abrem para leituras pessoais e comunitárias concomitantes, onde a possibilidade de conexões emocionais inesperadas entre espécies recebem atenção pungente. A propósito, só para que saiba, adorei aquilo que você disse: "the world that I live in but cannot totally understand or control" (PICCININI, 2007, s/p). Passamos então a suspeitar da integridade das fronteiras que havíamos traçado entre um ser humano, um caminhão e um porco. Não temos mais certeza se a tecnologia é boa ou má, ou se é boa e má ao mesmo tempo, ou talvez não seja nem boa e nem má. Em meio a esforços para solidificar convicções, as esculturas de silicone carnal e latarias reluzentes nos impactam com a potência da conexão, com suas ambiguidades e com as responsabilidades decorrentes do ato de criar.
Ao terminar meu café, tive outra visão, desta vez muito mais extraordinária do que a anterior. Entendi então que não se tratava da fêmea que você criou em The Young Family; contudo, tampouco da Vênus de Willendorf[2], mas sim desta e daquela, as duas uma só mulher totipotente, transmutando-se ao longo dos séculos.
Dear Patrícia, precisamos falar sobre isto.
Me fale mais de estranhos...
A carta compartilhada, meu amigo, me despertou muitas inquietações, mas também algum conforto. Bom saber que as formas se hibridizam, percebamos ou não, e que outras são criadas espontaneamente pelas mãos de quem transvê o mundo para além dos conceitos.
Queria falar demoradamente com você sobre estranhos. Eles capturam minha atenção com crescente força. De pronto, te envio, além dos meus relatos bizarros, o material reunido na minha busca conceitual, que surpreendentemente, não destoava da matéria da minha experiência sensível-devaneante: transmutação e composição de formas mistas, onde o limiar entre animais, incluindo entre animais humanos e não humanos, ruía. Ao mesmo tempo, algo que emanava de minhas inquietações atuais se misturava às novas experiências: meu incômodo sobre os conceitos excludentes de mulher se alimentava das novas imagens de gárgulas parturientes, fêmeas encerradas em seu devir orgânico e imobilizadas nas torres de instituições responsáveis pela contenção moral da vida e de seus pulsos.
Cara Catarina,
Escrevo para contar-lhe como você me deslocou e me fez viajar por terras portuguesas em busca das gárgulas parturientes de seu texto.
Rizo (2014, p.56) também me fez notar o destaque para o misto de seres humanos e animais nessas imagens que misturam bodes diabólicos e mulheres sorridentes, de uma sensualidade rude: “o repertório formal da maioria das gárgulas se constituía de bestas bizarras, desconhecidas e desprovidas de nome e identificação”. Notemos que se trata de estranhos sem nomes e recordemos a discussão feita por Derrida (2011, p.26) que vê na identificação e nomeação do outro uma forma de contê-lo, enquanto o seu olhar insiste em mostrar uma existência rebelde a todo conceito. O olhar do que chamamos animal é anterior a conceitos e nomes. As gárgulas não identificadas, não descritas, sem nome, permanecem como zonas de escape.
Não é impressionante ver as figuras grotescas, detalhadamente esculpidas e colocadas nos pontos mais altos dos edifícios, onde não só se tornam permanentemente visíveis, como parecem nos inquirir sobre o que são e quem somos diante delas? Há, ao que parece, um desejo humano de ir além de seus limites, projetando a si mesmo em seres estranhos, de um lado denunciando seus demônios e suas potências animais, de outro anunciando um poder de depurar o humano que é, apartando-os de si e contendo-os no território imaginário, onde podem ser justificados. Não deixa de ser paradoxal: para compor tais seres foi preciso que o homem encontrasse em si a animalidade e imediatamente a repelisse para outros domínios.
Chamou-me especial atenção a Igreja da Nossa Srª do Pópulo (BARREIRA, 2010, p. 185), em Caldas da Rainha: a fêmea de aspectos negroides que você associou à imagem da tela O Inferno (Autor desconhecido, 1510-20). Nua, a fêmea pousa a mão sobre o púbis, lá onde está retida em algo como um devir orgânico, todo corpo explícito, como em qualquer vivente animal. Ocorre-me já aí a insinuação de um duplo preconceito: é mulher, é animal. Não me furto a denunciar um preconceito mais velado, do qual retiro evidências da própria história: é negra, é escrava, submetida pela força como qualquer outro vivente animal. Ambos, mulher e animal, encerrados em algo que não se pode contornar: o corpo e sua pulsão erótica, perdido nas forças de sua animalidade. Em Leiria, na Batalha, busquei as formas nuas que você destacou (BARREIRA, 2010, p.185) e a interessante mistura de formas animais e de fêmeas humanas. Nas Capelas Imperfeitas (BARREIRA, 2011, p.113), a fêmea humana encarna o sagrado e o profano, colocando as mãos em reverência devocional e, ao mesmo tempo, expondo seus órgãos sexuais, como você mesma observou.
Você comentou bem o corpo das luxúrias que precisaria ser contido na mulher, objetivo pelo qual se mostram as gárgulas nuas como exemplo de perdição, imagens que coagem moralmente as fêmeas humanas. Ocorre-te que a nudez não quer mais que devolver o suposto humano dessas fêmeas a uma animalidade condenável? Não é só o erotismo, a luxúria, a devassidão da mulher, mas também o apagamento do refinamento de um suposto humano que é mais que animal, mais que corpo, humano em que as forças orgânicas, especialmente as sexuais, faz perder a suposta essência moral e racional que o homem quis conservar, a todo custo, no ser que autodenomina humano. O termo animalização é usado toda vez que se vai mencionar a fusão visceral com o mundo, com todo caráter negativo com que se associou, secularmente, o corpo e suas pulsões a desgoverno do humano. Esses movimentos, na idade média, são interpretados como inclinações a forças demoníacas, em uma aproximação definitiva entre animalização e demonização do corpo.
Já leu Beauvoir (1970)? A ideia do destino existencial do homem, em detrimento do destino orgânico da mulher, é dela e, se parece não fazer muito mais sentido em nossos dias, se prova na história de constituição e usos dos conceitos de mulher. O homem esteve cuidando de sua existência, tentando afirmar nela todo seu potencial humano, e tomando a mulher como coadjuvante de sua própria história: precisa dela para garantir a vida encarnada em sua existência. Não se trata de perceber a natural condição de compartilhamento, mas de tomar a fêmea com as mesmas intenções com que se toma o animal, ainda que de modo mais sutil, para submetê-los a um projeto autorreferente. Ambos preenchem uma lacuna fundamental no projeto antropo(andro)cêntrico: nada se poderá garantir sem a matriz orgânica da mulher e do animal. No entanto, do mesmo modo que o tolo animal humano pensa que todo o universo converge para si (provocação nietzscheana), tangenciando-o todas as formas viventes que, ao alcance de suas mãos, podem estar submetidos, o homem pensa que todas as forças convergem para um ponto falocêntrico. Animais e mulheres geram vida, homens a tomam e organizam em projeções existenciais... Mulheres perdem-se, como os animais, em seus corpos. Homens superam a pura animalidade e fazem nascer em perfeição e esplendor sua humanidade. Animais são instintos; homens são razão. Mulheres se perdem em emoções, pervertem; homens modulam seus afetos, moralizam. Não posso deixar de lembrar o comentário de Flória Emília na sua carta ao amante Aurélio (Santo Agostinho): “Tenho medo, Aurélio. Tenho medo do que os homens da Igreja possam fazer a mulheres como eu. Não pelo fato de sermos mulheres, mas porque Deus criou-nos assim, e porque assim seduzimos os homens” (GAARDER, 2006, p.88).
Mas, voltemos à sua imagem: as mãos da gárgula nua estão em gesto devocional. Aí encontramos o outro destino que o homem julga poder permitir à mulher: quando esgota os sentidos de sua existência, chama a mulher para cavar no sagrado algo mais que o permita contornar sua condição efêmera. As mulheres historicamente protagonizam os rituais de nascimento e de morte. Quando gestam, já não são apenas um corpo gerando vida, mas uma matéria tomada como uma essência sagrada que fará convergir para a existência humana uma vida já cheia de sentidos. E, em outra peculiar condição, se algum sacrifício é necessário para trazer para si a força de presenças ocultas, os favores dos poderes divinos, é vida que precisam ofertar, retirada do sangue pulsante dos animais e das virgens. Cidre (2014, p. 22) nos lembra que muitas mulheres foram igualadas a animais nos rituais de sacrifício, havendo uma inequívoca simbologia que aproxima o sangue da mulher e do animal. Note, Catarina: prevalece o devir orgânico, do qual se retirará o animal e a mulher não para elevá-los a uma existência humana, mas para conduzi-los, sem desvios, ao sagrado, extraindo sua forças e transmutando-as em linguagens acolhidas pelas divindades. Não te parece curioso que justamente o sangue se volatize em poder de acesso à dimensão sagrada?
A essa altura, minha cara, não seria proveitoso pensarmos que, para além da função pedagógica e moralizante das gárgulas, dadas como exemplos de desumanização, há um complexo substrato de representações que tornam a recorrente presença do corpo nu, testemunho da condição orgânica e da permanência da animalidade, nos espaços sagrados como catedrais e mosteiros, algo perfeitamente compreensível? São os domínios edificados e adornados para garantir uma existência para além, um monumento em prova de sua super-humanidade. Ali, aprisionou o que escapa a sua compreensão, às suas determinações morais. Não é sempre um contraexemplo? Em suas análises, você enfatiza que, para além da função estrutural dessas imagens, quer seja, o de escoar água dos telhados das catedrais, há sempre uma intenção de colocar em foco a perdição, a imoralidade, para suscitar o senso de correção e conversão. O modelo exemplar negativo parece ter tido mais força no imaginário medievo que o da mulher casta, sempre dedicada à família e tendo, sob controle, as inclinações sexuais. As imagens reforçam justamente o oposto, aquilo que escapa, que subtrai do humano sua suposta humanidade, que o aproxima do animal.
A essa altura já não me parecem mais estranhas as imagens que você descreve, e que infelizmente ainda não pude observar, tiradas de Santa Maria de Alcobaça e do Mosteiro de Sta. Maria de Belém: as gárgulas híbridas (BARREIRA, 2010, p.185). Nelas, misturam-se mulheres e animais: uma delas, segundo sua descrição, um corpo de mulher com cabeça de cão, manipulando os mamilos; outra com caracteres animais e longos cabelos, pernas cruzadas, uma das mãos sobre os genitais. A aproximação entre os destinos da mulher e animal são inquestionáveis e você coerentemente cita São Basílio para explicitá-la ainda mais: essas gárgulas representariam “um tipo de vida dominado por pecados como a luxúria e a gula”, o que “aproxima o homem dos animais” (BARREIRA, s/d, p.12).
Li um texto seu por esses dias em que, de outra perspectiva, você apresenta justamente os extremos dessa dualidade no destino da fêmea humana: ora a imagem da mulher tem significado religioso, como as imagens relacionadas à Virgem Maria, ora a mulher plenamente inserida no projeto existencial masculino, pertencente a um grupo social destacado ou, simplesmente, contida em um modelo familiar após converte-se da experiência do pecado. No outro extremo, você menciona a mulher descendente de Eva, tentadora e pecadora, associados a figuras mitológicas como sereias e harpias. Veja, novamente: a mulher que foge da contenção ganha caracteres animais, transmutando-se em imagens híbridas. Estão, agora, no campo da perdição, onde impera a animalidade, mais próximas de um corpo demoníaco.
Sei que o que era para ser uma breve comunicação já muito se alongou, mas não posso deixar de relatar o último ponto das minhas experiência exploratórias, no seu rastro: as parturientes no Convento de Nossa Senhora da Conceição e em Santa Clara do Porto. As gárgulas parturientes deixam à mostra o incontornável do devir orgânico: a geração da vida. Nesses casos, o paradoxo entre geração e condenação, uma vez que se dá em condições moralmente inaceitáveis. Como você destacara, vi na primeira, a metáfora do ato de dar à luz escondida do mundo: parece, de fato, uma freira, com as mãos em ato devocional e a cabeça de bebê entre as pernas. Da outra imagem, de Santa Clara, você descreve um aspecto de grande interesse: trata-se de uma parturiente híbrida, misto entre mulher e animal, com patas e garras. Não posso deixar de relembrar o Mosteiro da Batalha, onde se encontra a intrigante imagem de uma gárgula que não pode conter a produção, deixando à mostra o bebê que lhe sai pela boca. A questão por trás dessas imagens me parece ser a da contenção da geração da vida. Tal geração só aparece em uma versão positiva quando contida em um projeto existencial que converte o devir orgânico em intencionalidade androcêntrica organizada pela moral. Quando não contida nesses limites, a geração é mais um dos sinais da pura animalidade, não significada pela condição humana.
Espero não ter corrompido as reflexões que você suscitou, cara Catarina. Agradeço ter me apresentado essas imagens irmãs dos meus devaneios.
Estranho compartilhamento...
Já não sinto tanto estranhamento diante dessas imagens destacadas por Catarina, que aqui te envio, caro amigo. Talvez você tenha dificuldade de aceitar minhas reflexões, se não despertar uma condição andrógina própria de todas(os) nós. Esqueça os conceitos e os destinos de homem e mulher em nossa cultura e olhe para essas questões como se fizesse uma arqueologia ou simplesmente uma análise histórica. Talvez assim consiga enxergar a força de submissão da mulher e do animal.
Consegue ver essas condições reveladas pelas gárgulas?: a carne das fêmeas humanas está tomada por forças demoníacas, como recorrentemente a dos animais; mulher e animal tem acesso às dimensões mística e carnal, ou se sacralizando, ou se demonizando, respectivamente; as fêmeas humanas são parturientes, não podendo fugir do devir orgânico, sendo que, pela gestação se divinizam, se incluídas em um projeto de existência, ou se demonizam, se movidas pelas puras potências animais.
Diga-me, amigo, você que vê beleza na produção que transmuta o corpo das fêmeas em constantes potências geradoras, como no vídeo De dentro, de Patrícia Piccinini (2012a), onde o mel da vida não cessa de materializar-se pela boca de uma mulher: acha que a origem e permanência dessas representações comentadas com Catarina poderiam se situar em outro centro que não em um androcentrismo? Poderiam dar-se as fêmeas a própria limitação de suas potências? Poderiam enclausurar o seu próprio devir em um aquém de uma plena humanidade? Compartilhariam o mesmo desejo ingênuo e inglório de desprenderem-se, definitivamente, do animal? Compreenderiam como pura consequência do poder natural masculino as incontáveis formas da sua escravização? Ora... Será preciso “extrair-lhe”, tal qual se faz com o animal não humano, a fina intuição, a linguagem e a razão, para tornar tais condições pertinentes.
Que acha do fato destacado por Catarina de que, somente nos séculos XV e XVI, o universo das gárgulas deixa para segundo plano o bestiário e dá à figura humana um lugar de destaque (BARREIRA, 2010, p.178)? E, quando isso acontece, as imagens femininas espalham-se com tanta recorrência? Trata-se de um tempo em que o homem tenta assegurar, a todo custo, a centelha do fogo divino em sua suposta essência. Para isso, valoriza um humano muito mais próximo dos deuses que dos animais, muito mais sagrado do que profano. Natural que tudo que sugerisse sua animalidade fosse condenável a uma dimensão insana, imoral. Foi, de fato, uma época em que o homem evitaria ao máximo enfrentar seu próprio reflexo, com receio de ver-se despido de sua autoimagem, do nome e da identificação que deu a si mesmo. O problema é que a mulher e o animal jamais puderam se esconder pela estratégia de um recurso metafísico: seu devir orgânico colocava diante dos homens todas as potências que eles pretendiam evitar. Como são compreensíveis as feições demoníacas do corpo dos animais e das fêmeas humanas, ou de seus híbridos, estampadas nas imagens dispostas bem no alto dos espaços dedicados a elevar o sagrado no homem!
Você sabia que existe, em alguns desses espaços, imagens de fêmeas humanas não necessariamente corrompidas pelas pulsões do corpo, mas julgadas perdidas simplesmente pelo fato de, escapando da restrição do oikos e da figura materna, reproduzirem existências não comprometidas com planos androcêntricos? Catarina se refere a elas como soldadeiras ou jogralesas, mulheres que cantavam, dançavam e tocavam, em uma vida nômade marcada por episódios indecorosos (BARREIRA, s/d, p.25). Bela figura de transgressão, mas colocada no alto de mosteiro com intenção moralizante, mostrando aquilo que se desejaria evitar na materialização da imagem da mulher casta, contida. Compartilho, então, com essas figuras transgressoras o desejo de um escape dos limites androcêntricos impostos à existência feminina.
Acha que toda forma de produção orgânica está associada com uma não-humanidade?
O que vem de dentro...
Minha cara amiga, vou preferir falar de compartilhamentos, desses que você intuiu na sua relação com animais e fêmeas gargulóides. É inevitável se situar em positividades quando se está contaminado pelas imagens de Piccinini, de onde o próprio compartilhamento se confunde com fusão, hibridização, e onde o que vem de dentro dos seres, em prova de sua existência orgânica, são ricas materializações de suas potências criadoras. Começo contando-lhe a experiência de contágio com os híbridos de Patrícia.
Escolhi a manhã de uma segunda-feira para visitar a exposição da artista plástica Patricia Piccinini. Durante o trajeto a pé, do estacionamento no bairro da Liberdade até o CCBB, gastei pouca da minha atenção com as pequenas multidões ocupando cada espaço de calçada. Da mesma forma, quase não me atentei para a preocupação no rosto dos ambulantes, pouco reparei nas pastelarias lotadas com aromas de café e tentei não me render aos encantos formais da Catedral da Sé. Nem mesmo me ative aos detalhes pitorescos da arquitetura do antigo centro financeiro, que desde criança me impressionam. Economizava minha atenção para as obras de arte que em breve contemplaria...
Não havia filas e, portanto, minha entrada foi imediata... Tão imediata a ponto de me deparar, espantado, com a Grande Mãe (Big Mother, 2005) (Fig.1) logo na entrada do saguão! Não esperava encontrar aquele ser de quase um metro e oitenta, nu, amamentando um bebê humano à porta do edifício, como se prestes a sair para a rua.
Fig.1. Big Mother 2005. Fotografia de Paulo Manaf, 2015
Precisei de um tempo especial para apreciar a escultura. A princípio nos impacta a profusão de caracteres tão associados a humanos – como a postura ereta, a pele glabra, os cabelos longos e a expressão facial – esplendidamente misturados a outros que consideramos alheios a nós – ou nem tanto assim, como sugere a obra. Mas o impacto maior nos é causado pelo olhar angustiado, totalmente alheio ao turbilhão de transeuntes desfilando na calçada a poucos passos dali. Como a própria autora descreve, a criatura é feita para amamentar humanos: “I try to address ethical questions, but through emotion and empathy” (PICCININI, 2005, s/p). Logo percebi tratar-se de uma existência tão possível naquele lugar como qualquer humano de carne e osso ali presente. A escultura era, então, o vértice entre dois mundos possíveis, aquele das imagens que havia visto em meu trajeto e outro que ainda estava por vir, encorpado nas demais obras da exposição. Cogitei então que, a partir daquele ponto, estariam temporariamente suspensas as linhas divisórias entre o animado e o inanimado, entre o lá fora e o lá dentro, entre a ética e o cotidiano, entre o real e o hiper-real.
Mais do que suspensas, estas linhas já não fariam sentido algum. Ao longo da exposição foi ganhando evidência a dificuldade do expectador em esboçar qualquer categorização. O hiper-realismo é um instrumento nas mãos de Patricia, uma artista que nos suga para dentro da obra de arte e com ela nos faz estabelecer conexões inesperadas, ao mesmo tempo em que posiciona a criatura imaginada, assim como tantas outras que também podemos imaginar, diretamente em nosso cotidiano mais trivial. A partir daquele momento, não seria mais possível cogitar a rua lá fora, seus pedestres, carros, edifícios, árvores, pombos e tudo mais como sendo a expressão única e correta da realidade: a arte tornou-se experiência de uma realidade que trinca sob o peso de sua própria inconsistência e que, formidavelmente, se parte em tantas outras possibilidades.
A presença do feminino permeava toda a exposição. Desde o impacto da Grande Mãe, passamos por uma inusitada bota - “Bootflower”, 2015 (Fig.2) -, que se transforma em uma flor de carne, semelhante a genitais, que bota ovos e que, de forma cíclica, produz mais flores por todo o espaço para então, finalmente, adquirir um aspecto amorfo e indefinido, mas ainda assim repleto de potencialidades latentes. Esta irrefreável capacidade produtora do mundo orgânico é um dos temas recorrentes da autora (PICCININI, 2012b). Uma de suas obras mais importantes neste sentido é um vídeo de 12 minutos intitulado De Dentro (PICCININI, 2012a). Nele, vemos uma mulher liberando pela boca um líquido com cor e consistência parecidas com o mel, que vai se solidificando no chão. Aos poucos vamos percebendo que todo o lugar onde ela está é formado pela tal substância, já solidificada. Percebemos também que não é o caso de vômito ou regurgitação: ela delicadamente verte o líquido, de forma aparentemente deliberada e natural. Também não se trata de um líquido repulsivo e, de forma alguma, o vídeo nos provoca asco. Ao contrário, o semblante plácido da mulher e a mansidão do ambiente acabam por suscitar simpatia.
A presença do feminino permeava toda a exposição. Desde o impacto da Grande Mãe, passamos por uma inusitada bota - “Bootflower”, 2015 (Fig.2) -, que se transforma em uma flor de carne, semelhante a genitais, que bota ovos e que, de forma cíclica, produz mais flores por todo o espaço para então, finalmente, adquirir um aspecto amorfo e indefinido, mas ainda assim repleto de potencialidades latentes. Esta irrefreável capacidade produtora do mundo orgânico é um dos temas recorrentes da autora (PICCININI, 2012b). Uma de suas obras mais importantes neste sentido é um vídeo de 12 minutos intitulado De Dentro (PICCININI, 2012a). Nele, vemos uma mulher liberando pela boca um líquido com cor e consistência parecidas com o mel, que vai se solidificando no chão. Aos poucos vamos percebendo que todo o lugar onde ela está é formado pela tal substância, já solidificada. Percebemos também que não é o caso de vômito ou regurgitação: ela delicadamente verte o líquido, de forma aparentemente deliberada e natural. Também não se trata de um líquido repulsivo e, de forma alguma, o vídeo nos provoca asco. Ao contrário, o semblante plácido da mulher e a mansidão do ambiente acabam por suscitar simpatia.
Fig.2. Bootflower, 2015. Fotografia de Paulo Manaf, 2015
Pela indicação do título da obra, julgamos que é a própria personagem que produz o líquido abundante, certamente de forma prodigiosa, que então derrama serenamente; as mãos dispostas sobre o colo sugerem um caráter transcendente, quase religioso à ação. Não há indícios de início e tampouco de fim nesta narrativa cíclica reforçada pela constante repetição do vídeo. Contudo, duas características chamam a atenção. Em primeiro lugar o tipo comum da personagem, caracterizada com simplicidade nas roupas, cabelo, maquiagem e atitudes – poderia perfeitamente ser uma das tantas mulheres que eu havia visto no trajeto até ali. Em segundo lugar, a riqueza de contrastes expostos na cena, conforme construída pela autora:
The woman is unexpectedly serene, as this viscous liquid pours out of her. It seems a deliberate process, a carefully controlled emission rather than a violent regurgitation. However, it goes against the deep-seated intuition that nothing but breath should come out of our mouth, and indeed that nothing good ever comes back out of the body. Still, the world that this woman has constructed out the matter within her is undeniably beautiful. (PICCININI, 2012a).
Um mundo interior escuro, porém tranquilo; aparentemente fechado para o exterior, porém construído por algo que vem copiosamente de outro mundo, ou melhor, de dentro do mundo da personagem. Quantos mundos interiores poderiam se desdobrar a partir dali? De onde vem o líquido e como poderia ser produzido de forma sustentada, aparentemente sem fim? Estas mesclas complexas de contraposições, multiplicações e dimensões metafóricas, aliadas às sensações que suscitam, rendem uma estranha materialidade à obra, capaz de torná-la uma obra impressionante, no sentido mesmo de impingir à percepção a capacidade de notar – ou mais precisamente de ter ao menos uma pálida ideia – a imensurável produtividade do mundo orgânico. Produtividade, aqui, em termos simples de massa orgânica, em termos de biomassa, que surpreende tanto pela quantidade quanto pela qualidade. Folhas, cascas, membranas, pétalas, pelos, gases, líquidos, polens, venenos, sucos, envoltórios, ramos e tudo mais, uma produtividade gigantesca que não cessa enquanto houver vida. Nossa percepção, usualmente encarcerada entre limites das mais diversas naturezas – desde limites fisiológicos dos órgãos dos sentidos até aqueles culturalmente impostos – muitas vezes não apreende a dimensão de tal produtividade. Raramente nos damos conta disso porque que os eventos botânicos – os mais produtivos – ocorrem em escalas de tempo muito diferentes da humana em sua maioria; já o acesso ao reino animal e outros reinos é ainda mais difícil de ser realizado por seres humanos. Nosso acesso cotidiano a outras formas de vida, mediado pela cultura cientificista é, além de modesto demais, também repleto de vieses. O acesso extraordinário mediado pela arte propõe experiências mais abrangentes do que a razão poderia nomear.
Trata-se de um ser atemporal, em forma humana, que nos faz refletir, em primeira mão, sobre a produtividade do mundo. Em conjunto com A Grande Mãe, abrange também o tema da nutrição: “for me, the essence of life is to nurture and be nurtured, and that is something that cuts across species.” (PICCININI, 2005, s/p). Na entrada da exposição, a ama amamenta, produzindo eternamente seu leite que concede a um humano a possibilidade da vida. De dentro da exposição, a mulher, já além da idade reprodutiva, concede seu fluído belo e translúcido. Aquela que amamenta tem um semblante terrivelmente ansioso, que imediatamente reconhecemos e através do qual estabelecemos uma inesperada conexão empática com a obra de arte. A mulher em seu mundo isolado aparentemente produz aquilo que definitivamente a encarcera. Uma vez conectados com a personagem do vídeo, temos então a sensação de que, de alguma forma ou em algum grau, dependermos daquele líquido quase maternal.
Há, sem dúvida, algumas aproximações entre as criaturas de Piccinini e as gárgulas excretoras e parturientes. Dão, ambas, testemunho de um devir orgânico e de uma relação inusitada do humano com seus estranhos. Tornam visíveis as potências produtivas do feminino e as zonas de compartilhamento possíveis entre animais humanos e não-humanos. No entanto, na obra De Dentro, Patricia Piccinini nos apresenta, de outro ponto de vista, uma espécie de anti-gárgula. Nas gárgulas medievais, o líquido é bem mais fluído e bem menos passível de solidificação. São águas pluviais impotáveis ou repletas de dejetos humanos. Não são as gárgulas que produzem essas águas; os líquidos as transpassam e jorram por bocas que se abrem, geralmente, em feições desfiguradas ou caricaturais. Quase um expurgo. Ao que parece, o corpo produtivo de Piccinini positiva o que vem de dentro... Nas obras de Patricia, não há uma moral ao fim da estória, mesmo porque as narrativas apresentadas ainda se encontram em pleno curso quando com elas nos deparamos.
Os excretos dão prova do que somos também nós, animais...
Os ressurretos atingiram seu ser pleno, suprassensível. Apartaram-se do animal que excreta seus dejetos... Nada mais têm a ver com as gárgulas rabos-ao-léu das Sé da Guarda, Sé de Braga, e Matriz de Caminha (BARREIRA, 2010, p.189), que tem seus ânus em destaque e excretam, dando prova de sua animalidade, não obstante serem visivelmente animais humanos. Também, supostamente, nada comungam mais com as gárgulas fêmeas evidenciando sua luxúria com as mãos sobre seus órgãos sexuais ou com o gárgula-homem fornicador da Lonja de la Sena, em Valencia. Os excretos sinalizam para o que somos nós, na plena condição de nossa animalidade. Tudo que parece sair das gárgulas, pelas suas bocas, seus ânus ou suas vaginas são negativados, quer seja produzido por seus corpos ou os transpassem.
Não te parece possível positivar o que vem de dentro de gárgulas, se sobrepusermos sobre elas as imagens impactantes da potência produtiva do humano, retratada por Piccinini? E, me parece mesmo inevitável reconhecer nelas as mesmas hibridizações, ambiguidades. A distinção parece estar em uma intencionalidade distinta na criação de ambas as séries de imagens: se nas gárgulas, há sinais de uma fobia, uma intenção de contra exemplo do que deve ser o que se autodenomina humano, nos híbridos de Piccinini, uma provocação de relações de suspensão da repulsa e de uma filia possível a partir do reconhecimento de um compartilhamento.
Desconsiderado o olhar e a intencionalidade de quem a eles se dirigem, suspensas as impregnações demoníacas que lhe atribuímos, em suas existências próprias, esses seres panmórficos, gárgulas e híbridos, são depositários de nossas animalidades. Exigem-nos o deslocamento para além do limiar humano-animal, para além de qualquer traço hierárquico entre homem-mulher, para além do real e do imaginário. Quisera terem a dinamicidade dos animais em movimento vital, e nos olhariam de frente... E não poderíamos nos esquivar de seus olhares e, portanto, não poderíamos evitar a intuição de um ser junto, um compartilhamento, ou mesmo, uma possível transmutação, de outra perspectiva.
AUTORES
*PAULO MANAF: Biólogo do Zoológico Municipal de Mogi Mirim. Grad. Em Biologia/USP, Dr. em Psicologia (Neurociências e Comportamento)/USP. paulomanaf@gmail.com
**ANDREIA A. MARIN: Docente/pesquisadora da UFTM. Grad. em Biologia/USP e Filosofia/UFPR, Dra.em Ecologia/UFSCar. aamarinea@gmail.com
REFERÊNCIAS
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BARREIRA, Catarina A. M. F. A presença feminina nas gárgulas medievais. Revista As Faces de Eva, Universidade Nova de Lisboa. S/d. Disponível em <https://www.academia.edu/3502892/A_presen%C3%A7a_feminina_nas_g%C3%A1rgulas_medievais>. Acesso em: 20 jan 2016.
___________. A relação entre gárgulas e textos no contexto tardo-medieval em Portugal: preocupações em torno do comportamento do corpo e os pecados. In: COSTA, Ricardo da (coord.). As relações entre História e Literatura no Mundo Antigo e Medieval. Mirabilia, v. 13, Jun-Dez 2011.
___________. Contributos para o estudo das gárgulas medievais em Portugal : desvios e transgressões discursivas? Lusitania Sacra, v. 22, p.169-199, 2010.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. 1: Fatos e mitos. 4ª ed. Paris: Gallimard, Difusão Europeia do Livro, 1970.
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PICCININI, Patrícia; ORGAZ, Laura F. The Naturally Artificial World. Originally published: (tender) creatures, exhibition catalogue. Artium.
2007. Disponível em <http://www.patriciapiccinini.net/printessay.php?id=29>. Acesso em: 12 dez 2015.
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RIZO, Sérgio R. O corpo do demônio. Revista Estética e Semiótica, Brasília, v.4, n.2, p.42-68, Jul/Dez, 2014.
[1] Utilizamos este tempo fazendo referência ao masculino humano (andro) recorrentemente colocado no centro do discurso sobre a fêmea humana e das representações de mulher.
[2] Representação feminina em uma estatueta de 11,1com da era do paleolítico, sem rosto definido.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 4 | vol. 1 | Ano 2016
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