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Dois neo-realismos e uma cineasta: possíveis leituras do neo-realismo latino americano em Lucrecia Martel

Diego Martin Haase*


I
Nesse artigo proponho analisar as similitudes estéticas do chamado Novo Cinema Argentino dos anos 90[1] (consagrado ao longo da crise de 2001), e o neorrealismo italiano do pós-guerra. Ambas as manifestações estéticas surgiram de uma intensa transformação social que propiciou a origem das suas expressões cinematográficas realistas, através das quais os cineastas buscavam se reconhecer ante o desamparo e a desolação da sua própria realidade: a Itália, destruída pelo fascismo e pela guerra e a Argentina, abalada pela ditadura militar e pelas políticas do neoliberalismo selvagem que a levaram a passar por uma das crises econômicas e políticas mais profundas da sua história. Os filmes destas vertentes estéticas afloraram das ruínas do seu tempo criando um espaço de distanciamento cultural com as representações do passado. Precisaram conceber suas experimentações simbólicas na emancipação do presente, e narrar suas adversidades de forma realista, para contribuir com a reconciliação de uma identidade nacional que precisava avançar sobre a sua tragédia, ou ao menos compreendê-la.  

Como diz o diretor Ferrand, personagem do filme A noite americana (1973), de François Truffaut, “Os filmes de amanhã serão rodados na rua”. Para Costa (1987), essa passagem foi uma homenagem de Truffaut à revolução estética que foi o neorrealismo italiano (p.104).

Essa revolução estética que influenciou todas as cinematografias do mundo reapareceria com força na era digital dos anos 90 para inspirar a jovem geração de diretores que, para alguns críticos, fundamentam o nascimento de um “Novo Cinema Argentino” – entre eles podemos mencionar alguns precursores como Adrian Caetano (Pizza, Birra, Faso), Pablo Trapero (Mundo Grúa) e Lucrecia Martel (La Ciénaga). Estes cineastas não só tinham em comum a experimentação dentro de um cenário cheio de similaridades com o vivenciado pelos seus pares italianos. Vinham das periferias de Buenos Aires e do interior do país e traziam suas vozes, suas lembranças, filmavam seus próprios mundos, mostravam o país oculto pelos cartões postais da época com seus próprios pontos de vista, ao tempo em que desenvolviam suas próprias técnicas aliadas às novas tecnologias.

Um dos pontos fortes do neo-realismo foi a capacidade de assimilar e adaptar à realidade italiana modelos cinematográficos e literários dos mais diferentes, em um clima de frenética atualização vivida como reação ao fechamento da cultura oficial fascista. (COSTA, 1985, p.107)

É sobre um filme como Paísa (1946), de Roberto Rosselini, que o teórico francês André Bazin vê realizar-se a mutação que diz respeito às próprias modalidades de construção da narrativa cinematográfica. Segundo Bazin, “a câmera tornou-se uma coisa só entre o olho e a mão que a conduzem: dessa forma, a narração que nasce de uma necessidade ‘biológica’ antes de ser dramática, germina e cresce com a veracidade e liberdade da vida”. (COSTA, 1985, p. 107).

Se o novo cinema argentino fosse um espelho do neorrealismo italiano, seria possível afirmar que Lucrecia Martel foi a mais frenética atualização vivida pelas experimentações do novo cinema argentino, e a sua forma narrativa a mais “biológica”, a ponto da sua obra-prima se chamar O pântano (2001).

Ao contrário do neorrealismo italiano, que se caracterizou como um movimento de expressão coletiva pelas similaridades estéticas e pelas formas narrativas da sua concepção, o “neorrealismo argentino”, assim chamado pelos críticos que mais evidenciaram essa relação (ou novo cinema argentino), não chegou a se consolidar como um movimento, nem criar convenções entre os cineastas que fizeram parte do mesmo. No entanto, podemos considerar que, mesmo não adotando o modelo neorrealista como uma convenção estética – mas apenas retomando suas características para “filmar a realidade” com personagens interpretados por não-atores e as histórias de “metamorfose humana” frente às conseqüências de um cenário desolador –, os jovens cineastas argentinos parecem ter aproximado um mesmo cinema de dois mundos. Trata-se de uma coincidência nem um pouco aleatória, visto que a Argentina foi um país de imigrantes italianos, fazendo com que muito da história e da cultura de um país se reflita na expressão artística e cultural do outro.

No novo cinema argentino parece se repetir uma ideia do neorrealismo italiano que é fundamental para a compreensão da linguagem cinematográfica que o caracterizou desde seu surgimento. Tal linguagem vem atrelada a um contexto técnico e político, no qual uma ruptura histórica com o modelo dominante leva a uma revolução estética da tecnologia e da libertação humana. Para ambas as cinematografias, esse paradigma se deve ao surgimento de um cinema feito na rua, com a emancipação em relação a uma cultura dominante.


II
Uma vez entrelaçadas as ideias e fundamentos que permitem vislumbrar as similitudes neorrealistas de cinematografias tão distantes no espaço-tempo dos acontecimentos que as desencadearam, podemos nos deter a pensar sobre a influência do neorrealismo italiano sobre o novo cinema argentino, a ponto de ser chamado de “neorrealismo argentino” por alguns críticos da época. Chega-se a dizer que o melhor cinema neorrealista italiano, dos anos 70, é feito, atualmente, em Buenos Aires. O crítico do Cahiers de Cinema, Serge Toubiana, afirma: ”O cinema argentino é uma forma neo-realista reinventada”.

O novo cinema argentino nunca contou com a presença de uma figura que alimentasse uma fundamentação teórica, como foi o caso de Zavattini no neorrealismo italiano, e desenvolveu uma diversidade autônoma de modos de produção sem enquadramentos que o determinassem como um movimento ou grupo. Por conta de sua diversidade, alguns críticos e diretores chegam a questionar sua permanência ou até a própria existência desta definição. No entanto, os filmes dessa geração jovem de diretores argentinos configuraram um corpus. E, a partir deste corpus, essa geração de diretores soube aceitar a existência e a convivência de um lugar comum de pertença para a sua cinematografia, reconhecida em qualquer lugar do mundo.

De fato, se alguns filmes que marcaram o neorrealismo argentino alcançaram repercussão internacional, foi porque, ao tempo em que mostravam uma história particular, o faziam de forma universal. Para o crítico Leonardo M. De Espósito

Muitos dos melhores filmes já feitos neste país são menos argentinos do que universais no sentido estrito da mise-en-scène, mesmo que suas imagens sejam argentinas. Mundo Grúa e La Libertad, dois filmes onde a Argentina é algo vago, misterioso, fantástico, até mesmo aterrorizante, em um dos casos. Onde o reconhecível pelo público de ambientes deste país vai desapropriar quaisquer raízes vernáculas para retornar às ficções universais. Algo semelhante acontece com La Araña Vampiro e todo o trabalho de Lucrecia Martel e até mesmo com o grande pioneiro e fundador do ‘Novo Cinema Argentino’, Martin Rejtman. Eles são tão argentinos como Kiarostami é iraniano ou James Cameron é norte-americano. (ESPÓSITO, Leonardo, 2010).

O novo cinema argentino não está só inspirado no existencialismo europeu que procurava um lugar possível para o homem em um mundo cheio de adversidades, mas também pelo cinema político da América Latina, que enfrentou o exílio, a perseguição, a tortura e a morte. Longe de se abrir para o mundo, filmes desapareceram, e outros tantos foram censurados. Na Estética da Fome (1965), Glauber Rocha nos lembra que os latino-americanos vivem sempre na incerteza, estamos sempre em guerra e desamparados. Essa lembrança ecoa mais forte quando, em 2001, a obra-prima de Lucrecia Martel, O Pântano, alcança uma repercussão internacional por sua potência autoral e sua originalidade. O filme, carregado de uma linguagem profundamente neorrealista nos seus aspectos técnicos e estéticos, compõe um ambiente desolado, ocupa naturalmente o entre-lugar deixado pelo cinema existencialista do pós-guerra e o revolucionário cinema latino-americano de forma autêntica, política e intimista. Podemos deduzir daí as possíveis bases para o surgimento de um neorrealismo latino-americano? 


III
Diante da dificuldade de analisar o novo cinema argentino como um movimento consistente e passível de ser caracterizado como uma forma de neorrealismo, uma análise sobre a proposta estética de uma diretora em particular, Lucrecia Martel, nos permite pensar nessa direção.

É de fundamental importância ressaltar as singularidades do cinema de Martel a respeito do trabalho com atores. A sua obra-prima contou com duas das maiores atrizes do cinema argentino, Mercedes Morán e Graciela Borges, ambas matriarcas das famílias que se cruzam em O Pântano, interpretando com toda a sua experiência, mas com o inevitável envolvimento nos “fatos” narrativos de uma história em comum com as técnicas do estilo neorrealista. Lucrecia Martel afirma que, por estarmos tão acostumados a ouvir o cinema em inglês ao longo dos anos 90[2], o fato de ouvir nossa voz e a nossa língua na tela soava estranho. As técnicas de evocação de uma lembrança do passado, principalmente da infância, provocavam expressões físicas na emissão do discurso, fazendo o orador se remeter ao tempo da sua lembrança. Lucrecia faz parte de uma geração que faz com que o discurso falado seja sentido na tela do cinema, porque “um gesto de dor, ou de sofrimento, ou de alegria não é uma representação nem o resultado de uma técnica longamente sedimentada e aprendida nas escolas de teatro senão a recuperação de algo que se sucedeu a essa pessoa anteriormente”. (AGUILAR, 2006). O olhar nativo de Lucrecia Martel sobre famílias polifônicas, marcadas por diferenças sociais, lhe confere a possibilidade de se posicionar na classe alta da sociedade argentina, destruindo-a por completo na sua própria forma patética, ao expor sua individualidade com um ponto de vista “de dentro”. Em vez de narrar a história do anti-herói e sua luta solitária por seguir adiante, Lucrecia expõe o fracasso de um corpus, a decadência da classe dominante da sociedade.

Lucrecia Martel nasceu em 1966, na província de Salta, ao norte da Argentina, uma região fronteiriça com forte presença indígena. Ela costumava filmar sua família, mas não pensava em ser cineasta, apenas estava interessada nas formas do discurso oral dos adultos. Em Salta, é comum para os adultos dar um cochilo (“la hora de la siesta”) depois do almoço e até umas 4 ou 5 da tarde. E para isso, ela lembra em uma das inúmeras conferências que vem dando pelo mundo, que para manter as crianças em silêncio, sua avó contava histórias, muitas delas assustadoras. Foram esses hábitos da infância de Lucrecia que despertaram sua curiosidade por contar histórias.

Esse é um prazer infantil. Algumas vezes nesses contos se escondem os medos mais básicos... e às vezes, são horríveis, racistas, são contos conservadores. E às vezes, muito transgressores. Por exemplo, o conto do cachorro-rato do Pântano, é um conto que põe em dúvida a natureza de algo. Alguém se relaciona bem com um animal, esse animal se relaciona bem com você, mas quando você descobre que não é o que você achava, o mata. Então, é estranho: você está se relacionando bem com esse animal, mas descobre que não é o que você acha, o mata? São essas ideias estranhas. Nos relatos populares sempre estão presentes essas deformidades. (Martel, 2015).

Dessa jovem geração de cineastas do novo cinema argentino, Lucrecia Martel talvez seja a referência mais revolucionária para pensarmos as relações destes jovens diretores com o neorrealismo italiano. No jogo de cena desta cineasta há uma contribuição teórica ao modelo dos italianos e não apenas uma referência estética dessa época. Lucrecia nos lembra da Itália, mas nos leva em direção a um neorrealismo latino-americano. Existe algo do passado, mas que por alguma razão nos leva à frente quando assistimos aos seus filmes. Uma espécie de superação, uma sensação catártica de que não podemos cair mais fundo, de que agora só é possível andar em frente porque já compreendemos toda a nossa tragédia e nos cansamos de tanta miséria.

Quando O Pântano estreou no cinema, a senhora da padaria me disse, “me falaram que nesse filme dá para ver como nos tratam”. E eu digo, isso acontece em Salta há séculos, por que você só consegue ver isso em um filme? Se é igual ao que acontece na sua casa, sem exagero algum​​, porque  quando você o vê na tela fica chocada? Esse é o poder do cinema: o que você não vê a sua volta, de repente, você vê em uma história reproduzida na tela.” (MARTEL, 2015).

O principal aporte de Martel para a continuidade do neorrealismo italiano, na sua versão latino-americana talvez seja essa preocupação com a percepção dentro do seu cinema e principalmente da sua narrativa. Não há um compromisso com a realidade, isso é deixado para a representação apenas, mas a percepção no cinema reconhece um campo mais profundo, o da recepção, imbricando as sensações visuais e sonoras com uma proposta estética de um cinema que não esteja fundamentado na representação da realidade como ela é, mas na forma como nós a percebemos. E para essa percepção ir adiante é necessário lembrar que o som é um elemento sumamente importante no cinema de Martel. Ela compara a sala de cinema a uma piscina vazia, (será por isso que nos seus três longas sempre aparece uma piscina na história?), onde as ondas de som se espalham e, ao contrário da imagem (luz), o som atravessa os corpos e a matéria. Esse contato permanente com o som aparece sempre como uma singularidade estética já que o som é para Lucrecia “o inevitável no cinema” já que temos a capacidade física para fechar nossos olhos, para evitar avistar a imagem que não queremos ver na tela, mas não podemos obstruir nossos ouvidos para evitar escutar o que ouvimos. 

Como é que conseguimos dormir sabendo que metade da humanidade está sofrendo? Quando a gente se acostumou a isso? Em um mundo cheio de comunicação, de circulação de imagens, quando fizemos isto? É milagroso esse sistema. Então, se somos uma civilização capaz de anular uma empatia com os outros que estão sofrendo, se temos a capacidade cultural de parar de assistir o sofrimento dos outros, somos forçados a questionar os próprios fundamentos da nossa percepção. Não acho que é possível alcançar completamente, mas de vez em quando, podemos ver alguma coisa do mundo. (Martel, 2015).

Martel nos permite adentrar em um universo que, ao contrário de mostrar a realidade sem manipulações, afirma que tudo no seu cinema é falso, até a realidade, porque ela não é o fim, mas o meio para experimentar as sensações que sentimos do que percebemos nela. Martel não cria apenas uma imagem plana para representar o mundo, há uma sensação atmosférica que o desenho sonoro recupera. Assim como o som se dissocia da imagem para valorizar as percepções, o elemento político no cinema de Martel se dissocia da realidade pura ao perceber nela possíveis interpretações sensoriais que ultrapassam polifonicamente as interpretações associativas da poética simbólica entre a imagem e o som. Podemos perceber em O Pântano a mesma “mutação narrativa” que Bazin percebe em Paísa de Rosselini, que é também um dos mistérios narrativos do cinema de Lucrecia Martel. 

A unidade da narração cinematográfica em Paísa não é o plano, ponto de vista abstrato sobre a realidade que se analisa, mas o ‘fato’. Fragmentos de realidade bruta, múltiplo e equívoco em si mesmo, cujo ‘sentido’ aparece só a posteriori graças a outros fatos entre os quais o espírito estabelece relações. Sem dúvida, o diretor escolheu bem entre estes ‘fatos’, mas respeitando a sua integridade de ‘fato’ (Bazin apud Costa 1985, p. 106). 

Esse distanciamento da realidade como um todo pela dissipação dos fatos tem caracterizado alguns dos avanços dessa cinematografia movida pelos acidentes repentinos das circunstâncias típicas das transformações e mutações nas quais a significação da imagem permite uma leitura polifônica para a qual não mais enxergamos o “fato”, aquilo que está sendo representado, mas as leituras que este “fato” nos provoca. 

Assim como no neorrealismo italiano, Lucrecia Martel faz com que esse fragmento da realidade que Bazin chama de “fato” tenha o ponto de vista de uma criança, mas não no sentido do neorrealismo italiano que escolhe as crianças como personagens que expressam a debilidade sensório-motora da sociedade, como acompanhar o pai na procura inútil de recuperar uma bicicleta roubada. É comum que, no neorrealismo italiano, as crianças acompanhem ou imitem a vida dos adultos, como os órfãos da guerra, que deverão se tornar adultos prematuramente, e que por conseqüência histórica seguem o sonho industrial do progresso e do trabalho assalariado, para tentar se engrenar novamente na modernidade. 

Já Lucrecia Martel, do outro lado da história, quase um século mais tarde, contrariando todas as tentativas reducionistas de taxar seu cinema de niilista, nos faz compreender que podemos sentir o contrário; que para ultrapassar o marco zero da nossa existência, precisamos adentrar no pântano da nossa história, não apenas como sobreviventes, mas como arqueólogos que precisam ultrapassar esse buraco que se forma debaixo dos nossos pés na terra fofa que tanto nos atrai quanto nos assusta, mas que inevitavelmente nos devora. Como o cachorro que late do outro lado do muro, Luciano sobe a escada e nos lembra que não avançamos se não enfrentarmos nossos medos, mesmo que isto nos custe a vida, porque estar dentro do pântano, do muro, tornou-se insuportável. 

Nesse sentido, Lucrecia percebe não a busca de uma sociedade para recuperar o país antes de ter sido desviado do curso da sua história como os italianos, mas a história de um continente permanentemente dominado pelos desejos imorais de uma elite capaz de tudo para defender seus interesses. O teórico Gonzalo Aguilar identifica na América Latina o que chama de "lei do pântano", segundo a qual quem quer sair dele afunda cada vez mais, sendo por momentos até patético. (Aguilar , 2006). 

Ao contrário do neorrealismo italiano, no neorrealismo latino-americano de Martel, as crianças são personagens que expressam o impulso libertário da sua possibilidade sensório-motora. O que parece pesado se torna uma aventura, os adultos não estão vigiando, todo esse processo prematuro de crescer e estar largado se torna uma aventura, não há compromisso nem com o passado nem com o futuro, apenas a curiosidade do presente embasada na imoralidade do passado sobre o qual eles têm participação e plena consciência. Para Martel a “existência tão absurda, o esforço por encontrar sentido para as coisas” é o que a entusiasma mais. Segundo Aguilar, em “O Pântano” as personagens não manifestam um desejo de mudança, como nos outros filmes, senão que transitam seus dias na fazenda sem um motivo que os obrigue a se dirigir em alguma direção específica.(2006)

Revelando a carga teórica da sua própria obra, Lucrecia Martel conta, em uma das suas conferências para jovens estudantes de cinema, que o lugar onde ela se sente mais confortável para colocar a sua câmera é à altura de uma criança de 10 anos, porque o olhar de uma criança é de curiosidade e imoralidade. Depois de toda a imoralidade dos adultos que deixaram de ser referências seguras, Luciano morre por sua curiosidade de querer olhar do outro lado do muro.  

Ao reconhecermos a fundamentação teórica da linguagem estética e política que perpassa a obra de Lucrecia Martel, podemos afirmar que não são muitos os que negam seu talento e sua originalidade para construir na duração do plano, na polifonia de protagonistas, no teor das vozes, no inevitável do som, uma contribuição estética para o entendimento, não só do cinema argentino, mas dessa arte cheia de mistérios e possibilidades que é o cinema. Com apenas três longas em 15 anos, esta cineasta fez com que a sua expressão local de um universo próprio fugaz e minimalista entre a infância e a realidade da sua terra seja um lugar no mundo. Por isso seu cinema ainda ecoa tanto nas sessões de Berlim como nas de Cannes, encanta Almodóvar e ela continua com seu jeito humilde, no seu próprio tempo, tímida quando fala sobre o seu cinema, sobre as suas teorias que nasceram da necessidade de reinventar o som no cinema, na difícil época da hiperinflação dos anos 90 na Argentina, confirmando que “uma leitura deste novo cinema é também uma interpretação das transformações dos anos noventa” (AGUILAR,2006).

Essas leituras que englobam esse novo cinema argentino nasceram fora das escolas de cinema, mas hoje não existe uma escola na Argentina que não fale delas. Como argumentei ao longo deste artigo, o cinema que surgiu nos anos 90 nas ruas das periferias de Buenos Aires e até no interior do país, resgata e recria o modelo neorrealista italiano a partir de referências próprias, o que é realizado de maneira particularmente inventiva na proposta estética de Lucrecia Martel.


AUTOR
*Diego Martin Haase. Bacharelado Interdisciplinar em Artes, UFBA (Universidade Federal da Bahia). Cineasta e produtor cultural.

BIBLIOGRAFIA:

AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos. Un ensayo sobre el nuevo cine argentino,
Santiago Arcos editor, Buenos Aires, 2006.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Ed. Globo, Rio de Janeiro, 1987.
ESPÓSITO, Leonardo M. El Amante, n°266, Buenos Aires, 2010.
MARTEL, Lucrecia. "Lo que yo hago es todo mentira, es todo artefacto". laFuga, Buenos Aires, maio de 2015.
ROCHA, Glauber. Estética da Fome 65; in ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004




[1] Na Argentina, os filmes estrangeiros quase sempre eram exibidos legendados e não dublados.
[2] Convencionou-se que o novo cinema argentino nasceu em 1997, quando Adrian Caetano foi premiado no Festival de Mar del Plata, com seu filme Pizza, Birra, Faso.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 4 | vol. 1 | Ano 2016


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