Yoporeka SOMET
Desde o século das Luzes, um preconceito tão arraigado quanto aberrante fez da África um continente sem passado, sem história, sem cultura nem civilização, mergulhado, de fato, nas trevas e na barbárie. A consequência disso é que, ainda hoje, muito poucos, mesmo entre as mentes mais cultas, estão dispostos a admitir que um fato importante de civilização encontrado na África possa ser obra de africanos negros. Segundo esse paradigma “o homem africano não entrou suficientemente na História... Nunca ele se lança para o futuro. Jamais lhe vem a ideia de sair da repetição para inventar um destino!”
Esse preconceito é de tal maneira abrangente que diz respeito a todos os domínios, à exceção talvez da música e do esporte. Basta pensar aqui na História, claro, mas também na Filosofia, na Arte, na Política, na Economia, e até mesmo num campo “neutro” como as Ciências. Eis como se manifesta neste último domínio, segundo as palavras indignadas de Jean-Marc Bonnet-Bidaud, pesquisador do Comissariado para Energia Atômica (o qual realizou um apaixonante documentário - em colaboração com os etnólogos Germaine Dierterlen e Jean Rouch – sobre os conhecimentos astronômicos do Dogons do Mali): “Cientificamente, a África é um deserto. Consultando as melhores obras da história das Ciências, em nenhuma parte se achará referências a um cientista africano, a uma descoberta ou simplesmente um feito da ciência africana”.
Isto faz parte da cegueira constante da Europa ocidental, com seus satélites culturais do continente norte-americano, e de sua obstinação em negar qualquer contribuição outra que aquela originada da cultura grega. Esquecendo de destacar aportes consideráveis de saberes da Ásia, da América Latina ou se apropriando de maneira desavergonhada (desta forma a imprensa inventada na China por Bi Sheng em 1050 reapareceria atribuída a Gutemberg no Século XV assim como a História nos ensinada até hoje sobre esta descoberta fundamental), a história científica do mundo é, desta forma, reescrita ao preço de uma mentira cultura contínua. Para a África, a insuficiência de textos ou fragmentos arqueológicos esclarecedores tornou ainda mais fácil esta falsificação.
Apenas os trabalhos pluridisciplinares vanguardistas como os de Cheikh Anta Diop (análogo à enorme tarefa realizada por Joseph Needham sobre a China) contribuíram para tirar o continente africano do esquecimento científico[1].
Vejamos agora como se constituiu esta percepção da África no interior mesmo da Filosofia e as razões pelas quais essa percepção ainda perdura, apesar dos avanços notáveis operados pelos próprios historiadores e pesquisadores africanos na historiografia do continente africano.
1. A ÁFRICA NA FILOSOFIA DAS LUZES
1. A ÁFRICA NA FILOSOFIA DAS LUZES
Para não fugir ao essencial, focaremos duas figuras emblemáticas do Iluminismo: Kant e Hegel. Entretanto, remetemos o leitor aos trabalhos pioneiros de Léon Poliakov[2], e àqueles mais recentes de Louis Sala-Molins[3], e numa certa medida, ao livro documentado de Odile Tobner[4] no que se refere especificamente ao Iluminismo francês. De início, precisemos que é nesse século farol da civilização europeia que aparecem as teorias racistas fundadas na expertise científica. Pela primeira vez na história dos saberes, grandes sábios vão tentar estabelecer uma correlação entre a aparência física (a cor da pele e dos olhos, a textura dos cabelos, a forma do nariz e do crânio, etc.) e as qualidades intelectuais, estéticas e morais. Esta nova forma de pensar vai então associar a beleza, a inteligência, a moralidade e todas as outras qualidades à cor e/ou à raça branca, e ao inverno, a fealdade, a estupidez, a animalidade à cor e à raça negras.
Assim, num tratado de 1764 intitulado Observações sobre o sentimento do belo e do sublime¸ o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) escreve que “a pele escura olhos negros têm mais afinidade com o sublime, olhos azuis e pele clara mais afinidade com o belo”[5]. Pode-se então imaginar como os negros passarão a ser percebidos por este autor:
Os negros da África, por natureza, não têm nenhum sentimento que se eleve acima do pueril. O senhor Hume desafia quem quer que seja a citar um único exemplo de um negro demonstrando talento e afirma que dentre as centenas de milhares de negros que são transportados de seus países para outros, mesmo dentre um grande número deles que foram libertados, ele nunca encontrou um só que, seja em arte, seja nas ciências, ou em qualquer outra louvável qualidade, tenha tido um papel importante, enquanto que dentre os brancos, constantemente ele constata que, mesmo se nascidos das camadas mais baixas do povo, estes sempre se elevam socialmente, graças a seus dons superiores, merecendo a consideração de todos. Tanta é a diferença essencial entre estas duas raças; ela parece também tão grande no que concerne às capacidades quanto segundo a cor. A religião fetichista, largamente difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria que se enraíza tanto na puerilidade quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, um chifre de uma vaca, um búzio, ou qualquer outra coisa ordinária, desde o instante em que esta coisa seja consagrada por certas palavras, é um objeto de veneração e invocada em juramentos. Os negros são muito vaidosos, mas à maneira negra, e tão tagarelas que é preciso dispersá-los a golpes de porrete[6].
Se olhamos agora o que diz Hegel (1774-1831), veremos que encontramos a mesma imagem negativa da África, construída também sobre as bases dos preconceitos destinados a servir de justificativa tanto para o tráfico negreiro europeu, quanto para a “violência simbólica” que o substituiria depois. Para Hegel, a África é constituída de três partes distintas: “a África propriamente dita”, que ele situa ao Sul do Saara, “a África europeia” situada ao Norte do deserto e, enfim, o baixio do Nilo, descrito como “o único vale da África que se religa à Ásia”[7]. Entretanto, o que de fato prende a atenção de Hegel é esta “África propriamente dita”:
a África propriamente dita, tão longe quanto a história registra, conservou-se fechada, sem laços com o resto do mundo; é a terra do ouro, debruçado sobre si mesma, terra da infância que além do surgimento da história consciente, está envolvida na cor negra da noite...[...] O que caracteriza os negros, é precisamente o fato de que sua consciência não tenha ainda chegado à intuição de nenhuma objetividade firme, como por exemplo Deus, a Lei, onde o homem se sustentasse na sua vontade, possibilitando assim a intuição do seu ser... Como já dito, o negro representa o homem natural, em toda sua selvageria e sua petulância; é preciso fazer abstração de qualquer respeito e qualquer moralidade, do que se chama sentimento, se se deseja de fato conhecê-lo; não se pode encontrar nada nesse caráter que possa lembrar o homem[8].
Quanto ao anatomista e paleontólogo Georges Cuvier (1769-1832), ele escreverá em suas Recherches sur les ossements fossiles (1812), que os “Negros da África constituem a mais desagradável das raças humanas, cujas formas se aproximam do que há de mais brutal, e cuja inteligência não conseguiu elevar-se em nenhum lugar a ponto de chegar a um governo regular”. E, após ter dissecado uma mulher sul-africana, Saartjie Baartman (apelidada de Vênus Hottentote), sob o pretexto de pesquisa científica, ele chegou à conclusão que “as raças de crânio deprimido e comprimido estão condenadas a uma eterna inferioridade”.
Poder-se-ia continuar assim citando outros autores mais: Hume, Voltaire, Montesquieu, para não falar dos Gobineau, Vacher de Lapouge, Lévy-Bruhl e tantos outros ainda mais próximos de nós... Todos esses textos permanecem habitualmente ocultados pela crítica filosófica, tal qual é praticada na instituição universitária e até mesmo no ensino médio.
Mais profundamente, a constância desses textos na filosofia (textos nos quais a África é sempre zombada e o negro é rebaixado ao nível da animalidade) revela alguma coisa da essência da Filosofia, ao menos tal qual ela foi ocidentalizada. Credita-se sempre a Martin Heidegger – e somente a ele, para absolver os demais – a seguinte definição da filosofia: “a philosophia determina em seu fundo o curso mais interior de nossa história ocidental-europeia”. A locução redundante “filosofia ocidental-europeia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a “filosofia” é grega em seu próprio ser; grego quer dizer aqui: a filosofia é em seu ser original, de tal natureza que é antes de tudo o mundo grego e somente ele que ela compreendeu e graças ao qual desenvolveu-se... A filosofia é grega em seu ser próprio só quer dizer exatamente isto: o Ocidente e a Europa são, apenas eles o são, no que tem de mais interior em sua marcha histórica, originalmente “filosóficos”. É isso o que atestam o nascimento e o domínio das ciências... A língua grega não é apenas uma língua como as línguas européias no que elas têm de bem conhecido. A língua grega e apenas ela é logos”[9].
Apropriando-se livremente da assertiva de Heidegger, um grande historiador da Filosofia, François Châtelet, pode escreve numa obra destinada ao ensino médio: “a filosofia fala grego. É sempre acertado repetir Heidegger[10]”. Depois, ele esclarece seu pensamento num livro de entrevistas oportunamente intitulado de Uma história da razão. À questão de saber se a razão é inerente ao pensamento ou se ela foi inventada, sem hesitar, ele responde:
Creio que se pode falar de uma invenção da razão. E para compreender como a filosofia pode surgir como gênero cultural novo, tomo como referência uma situação privilegiada; a Grécia clássica. Não que eu pense que toda filosofia seja grega. Mas é claro que a Grécia conheceu, por razões contingentes, históricas, acontecimentos tais que os homens puderam fazer aparecer este gênero original que não tinha equivalente em sua época[11].
Gostaria simplesmente de sublinhar, rapidamente, duas obras publicadas recentemente na França, que criticam a tendência dos historiadores eurocêntricos que consideram o Ocidente como “o inventor da invenção”. Cito o belíssimo livro do antropólogo inglês Jack Goody, O roubo da História: como a Europa impôs a narrativa de seu passado ao resto do mundo (383 p.), edições Gallimard, em 2010, e cujo título original em inglês era The Theft of History (2006). A outra obra é aquela de Emmanuel Todd, A origem dos sistemas familiares, publicada também por Gallimard, em 2011, onde se pode ler enfim que a “Europa foi, paradoxalmente e durante um breve período, ‘pioneira’ na corrida pelo desenvolvimento, se bem que o Ocidente não tenha inventado nem a agricultura, nem a cidade, nem o comércio, nem a criação de animais, nem a escrita, nem a aritmética”.
Voltando à filosofia, e à sua definição dada por Heidegger como maneira de pensar do Ocidente, acha-se a mesma ideia em Husserl. Também para este filósofo a “irrupção da filosofia é o fenômeno original que caracteriza a Europa do ponto de vista espiritual”[12]. Mas a particularidade da tese de Husserl em relação àquela de Heidegger, é que, longe de ocultar as fontes extra européias da filosofia grega, ele as confronta exatamente para melhor contestá-las.
Gostaria aqui de confrontar uma objeção bem comum: ou seja, que a filosofia, a ciência dos gregos não seria sua criação distintiva e que eles não tenham feito senão difundi-la no mundo. São abundantes as narrativas que eles próprios fazem sobre a sabedoria egípcia, babilônica, etc.; de fato, muito receberam delas. Possuímos hoje uma massa de trabalhos sobre as filosofias hindu, chinesa, etc. que não são em absoluto análogas àquelas dos gregos. Somente a filosofia grega conduz, por um desenvolvimento próprio, a uma ciência em forma de teoria infinita, da qual a geometria grega nos forneceu durantes milênios o exemplo e o modelo soberano[13].
Tentarei mostrar, em seguida, como o pensamento egípcio influenciou os pré-socráticos, muito além do que Husserl gostaria de reconhecer. Destaco, entretanto, que o que Husserl considera como a marca própria do espírito grego, a saber, a geometria, não é nada mais que um empréstimo reconhecido, especialmente por Aristóteles, o qual situa no Egito o berço das ciências matemáticas[14]. Como nos lembrou o historiador da filosofia Paul Masson-Oursel, numa obra muito pouco conhecida, “o empréstimo decisivo do espírito grego tomado ao Egito é a geometria, espécime por excelência do saber segundo a doutrina de Platão”[15]. Mas, além disso, parece-me importante insistir sobre o fato de que essas construções degradantes da África e dos negros, se foram largamente partilhadas pela intelligentsia europeia, não foram avalizadas por todos os grandes intelectuais europeus. De uma forma geral, os sábios e pensadores da Antiguidade tinham uma visão completamente diferente da África.
No que se refere a um período mais recente do qual já falei, podemos citar, para concluir, alguns pensadores que são exceções. Trata-se, sobretudo, do matemático e filósofo Condorcet (1743-1794). Numa obra intitulada Reflexões sobre a escravidão dos negros, publicada em 1781, sob o pseudônimo de Monsieur Schwartz, Condorcet afirma de início a igualdade entre negros e brancos, acima da diferença da cor: “Ainda que não seja da mesma cor que a sua, eu sempre lhes olhei como meus irmãos. A natureza lhes formou para ter o mesmo espírito, a mesma razão, as mesmas virtudes que os brancos”[16].
Em seguida, o Abade Grégoire (1754-1831) publica em 1808 Da literatura dos negros ou Pesquisas sobre suas faculdades intelectuais, suas qualidades morais e sua literatura, onde se pode ler: “a opinião de inferioridade dos negros não é nova. A pretensa superioridade dos brancos só encontra defensores entre os próprios brancos, juízes e partes, pelo que poderia, antes de mais nada, discutir a competência, antes de atacar sua decisão. É o caso de lembrar o apólogo do leão que, vendo um quadro representando um animal de sua espécie abatido por um homem, se contentou de lembrar a todos que os leões não têm pintores”[17].
Quanto a Volney (1757-1820), é dele esse testemunho, após seu Viagem ao Egito e à Síria durante os anos 1783, 1784 e 1785. Após ter dado uma descrição física dos Egípcios daquele tempo (“tous ont le visage bouffi, l’oeil gonflé, le nez écrasé, la lèvre grosse”), ele se dedica a esta reflexão pessoal:
Mas voltando ao Egito, a contribuição que ele oferece à história oferece muitas reflexões à filosofia. Qual tema de meditação, de ver a barbárie e a ignorância atuais dos gregos, quando se pensa que essa raça de homens negros, hoje nossa escrava e objeto de nosso desprezo, é essa mesma a quem devemos nossas artes, nossas ciências, e até mesmo o uso da palavra; imaginar enfim que foi no meio desses povos que se dizem os mais amigos da liberdade e da humanidade que foi sancionada a mais bárbara das escravidões e se colocou em dúvida se os homens negros teriam uma inteligência da mesma espécie daquela dos brancos![18].
Outro célebre visitante do Egito, membro da expedição de Napoleão Bonaparte naquele país, deixou um testemunho edificante. Trata-se do sábio Dominique Vivant Denon (1747-1825), em sua Viagem no baixo e no alto Egito durante as campanhas do general Bonaparte, publicado em 1902. Descrevendo a Esfinge de Gizé, afirma: “Ainda que suas proporções sejam colossais, os contornos em que são conservados são tão flexíveis quanto puros: a expressão da cabeça é doce, graciosa e tranquila; seu caráter é bem africano; mas a boca, cujos lábios são grossos, tem uma moleza nos movimentos e uma fineza de execução verdadeiramente admiráveis; é de carne e de vida”.
Outro célebre visitante do Egito no meio do século XIX, Victor Schoelcher (1804-1893), nos deixou esta descrição da origem do povo responsável pela velha civilização dos faraós:
Os habitantes das margens do Nilo não são indivíduos de uma camada branca única, que amorenaram até enegrecer, numa ascensão crescente, mas foi o sangue da raça cushite estabelecida no Egito que foi modificado por sua aliança com aquele da raça caucasiana; em outros termos, esses Egípcios, exatamente estes que nos ensinaram, são mesmo mulatos, o que nos deixa aborrecidos. Ora, que o Egito tenha sido primeiro povoado por homens negros, é um fato que cada vez mais se torna inquestionável. [...] Heródoto, que nunca foi o pai da história, mas um dos historiadores mais conscienciosos do mundo, diz que os egípcios eram ‘homens de pele negra, com cabelos crespos’[19].
Enfim, Jean-François Champollion (1790-1832), o decifrador da escrita sagrada egípcia, sempre considerou o Egito antigo e sua civilização como filha da África. Em sua Gramática egípcia ou Princípios gerais da escrita sagrada egípcia (1836), ele sustenta que a cultura e a língua egípcias são africanas e que é por uma análise crítica desta língua que a etnografia decidirá se a velha população egípcia foi de origem asiática, ou se de fato ela desceu, com o rio divinizado, dos altos platôs da África central[20].
Na mesma obra, ele afirma não apenas a precocidade e o pioneirismo dos saberes do Egito antigo sobre aqueles da Grécia, mas ele designa claramente o Egito como tendo sido a fonte de inspiração da Grécia, especialmente no nascimento da filosofia:
A interpretação dos monumentos do Egito colocará ainda mais em evidência a origem egípcia das ciências e das principais doutrinas filosóficas da Grécia; a escola platônica é apenas egipcianismo, saído dos santuários de Saïs. E a velha seita fundada por Pitágoras difundiu as teorias psicológicas que se desenvolveram nas pinturas e nas lendas sagradas de túmulos dos reis de Tebas, no fundo do vale deserto de Biban-el-Moluk[21]
Para concluir, lembro que nem estes autores nem suas obras tampouco são mencionados nos programas escolares nem, o que é mais sério, nos programas de luta contra o racismo...
Vejamos, agora, um repertório do que de fato existe, e qual o papel real da África no pensamento, nas artes, nas ciências, e mais particularmente no nascimento da filosofia, inclusiva na Grécia.
2. AS FONTES EGÍPCIAS DA FILOSOFIA
Examinamos, antes de tudo, a origem da palavra “filosofia”. O termo “philosophia” ou ainda o substantivo que dele deriva “Philo-sophos” teria sido empregado pela primeira vez, segundo a própria tradição grega, para qualificar Thales ou Pitágoras. Ora, Tales e Pitágoras viveram no século VI antes de nossa era. Ambos, segundo a tradição, estiveram no Egito e só depois que retornaram à Grécia é que este termo de “philosophos” teria sido empregado pela primeira vez para designar Tales, o qual o teria preferido ao termo mais elogioso de “sophos”. Na língua grega, a palavra filoV significa “amigo”, enquanto que sofoV quer dizer “hábil”, “sábio” e sofia, a “sabedoria”. Ora se o primeiro termo tem uma etimologia grega, o mesmo não se dá para sofia que parece ser uma palavra emprestada. Lê-se, com efeito, no Crátilo (cujo subtítulo é “Sobre a justeza dos nomes” que esta palavra sofia é “bastante obscura e talvez mesmo estrangeira”[22]. O que é confirmado pelo helenista Pierre Chantraine em seu Dicionário etimológico da língua grega: “sem etimologia!”[23]. Em Nascimento da filosofia na época da tragédia grega, Nietzsche descreve a filosofia como uma atividade estranha à Grécia na época dos pré-socráticos: “Imaginem que o filósofo seja um imigrante em terras gregas; é o que se dá com os pré-platônicos. Eles são uma espécie de estrangeiros deslocados”[24].
Em realidade, as palavras sofoV e sofia derivam da palavra egípcia seba, que significa “ensinar”, “instruir”, ou ainda “ensino”![25]
Além do mais, dando crédito ao historiador Diogène Laërce, “Tales não seguiu lições de nenhum mestre senão no Egito onde ele frequentou os sacerdotes do lugar”[26]. O mesmo autor acrescenta que “segundo Pânfilo, ele (Tales) aprendeu dos egípcios a geometria, inscreveu um círculo no triângulo retângulo, e por essa descoberta sacrificou um boi”[27]. Enfim, na história da filosofia, Tales é o verdadeiro primeiro filósofo grego a afirmar que a água é a origem de tudo.
Além de Tales e Pitágoras, outros precursores gregos no pensamento e nas ciências efetuaram a viagem do Egito ou, ao menos, foram alimentados pelos conhecimentos egípcios. Além de Platão e Aristóteles, claro tem-se também Sólon, Xenofonte, Demócrito de Abdera, Hecatéu de Mileto e seu discípulo Heráclito de Éfeso, Eudóxio de Cnide, etc. Todos se apropriaram e desenvolveram, em graus os mais diversos, as ideias e conhecimentos egípcios. Alguns dentre eles, como Pitágoras, Platão e Aristóteles reproduziram na Grécia instituições de ensino funcionando no Egito. Sabe-se também que Platão fundou a “Academia” e Aristóteles o “Liceu”, duas instituições até então desconhecidas em Atenas. Em particular, a Academia era dotada de uma biblioteca, salas de aulas e até mesmo espaços podendo servir de alojamento para os estudantes. Sabe-se também que tais estruturas eram usuais no Egito, vários séculos antes da visita de Platão. Os antigos egípcios os designavam pela expressão pèr ankh que significa “a casa da vida”!
No frontão da Academia acha-se, parece, esta frase aparentemente enigmática: “Que ninguém entre aqui se não for geômetra!”. Ora, esta frase, Platão a encontrou, sem dúvida alguma, num tempo, no Egito, lugar que ele conhecia tanto a cultura quanto a língua. Esta fórmula[28] é enunciada desta forma na língua egípcia hieroglífica:
ir xm nb r(A) pn n aq.n.f
« Se alguém ignora esta fórmula, jamais entrará aqui!»
Quanto a Pitágoras, voltando do Egito, fundaria em Crotona (Itália do Sul), uma instituição que os historiadores da filosofia descreverão como sendo tanto uma “seita” ou “confraria” quanto uma “espécie de franco-maçonaria religiosa”, etc. Seus discípulos, muito numerosos (Diogenes Laërce fala em 300!) eram então alojados no lugar, vivendo e observando regras que pareciam incompreensíveis a todos: havia interdições tanto para a vestimenta quanto para a alimentação... É preciso ainda acrescentar que esta instituição, que suscita sempre a suspeita nos filósofos e historiadores da filosofia, era a pioneira, no mundo grego, a acolher tanto estrangeiros quanto mulheres[29]... O que pode explicar bem tudo isso!
Eis como Diógenes Laërce descreve Pitágoras: “Como ele era jovem e estudioso, ele deixou sua pátria e foi iniciado em todos os mistérios gregos e bárbaros. Foi para o Egito, quando Policrates o recomendou a Amasis e aprendeu a língua do lugar. Foi também nos Caldeus e nos magos. Estando em Creta, desceu com Epimenides no antro da Ida. Assim como no Egito, foi nos santuários, aprendeu os segredos relativos aos deuses. Feito isso, veio para Samos, mas encontrando sua pátria oprimida pela tirania de Policrates, partiu para Cretona, na Itália. Lá, ele deu leis aos italiotas, teve discípulos e se tornou célebre. Seus alunos, em número de trezentos, administraram maravilhosamente bem a cidade, de modo que o governo deles pareceu ser a verdadeira aristocracia”[30].
No plano filosófico, Pitágoras será creditado pela paternidade da ideia de que o ser humano é composto de um corpo perecível e de uma alma que, sendo imortal, pode transmitir de um corpo a outro: é a teoria chamada de transmigração das almas, conhecida também pelo nome de metempsicose ou paligenésia. Esta teoria será retomada, especialmente, por Platão.
3. ALGUNS ELEMENTOS DA COSMOGONIA EGÍPCIA
Examinemos agora alguns elementos das cosmogonias egípcias colocando-os em perspectiva, de uma parte com a doutrina dos pré-socráticos, de outra parte com as cosmogonias africanas.
A cosmogonia egípcia apresenta-se como uma tentativa racional de explicar a origem do universo, das coisas, dos seres, e mesmo dos deuses. Esta pesquisa do por quê e do como das coisas, os egípcios a traduziam por expressões como : m sp tpy [èm sèp tépy] que significa “na primeira vez”, “numa ocasião que vem na frente”, ou ainda sp wr [sèp our] que quer dizer “o grande acontecimento” no sentido de “a manifestação primordial”.
Os principais documentos da cosmogonia egípcia encontram-se nos Textos das Pirâmides (que datam de – 2600), o Livro de Sair à Luz, mais conhecido sob o nome de Livro dos Mortos (datando de 2300 a 1700), a Inscrição de Shabaka (texto cuja versão original data de -2780 a 2260) e que foi copiado por volta de -710 por ordem do faraó Shabaka. Vários centros de pensamento prosperaram durante todo o curso da história egípcia, o mais célebre sendo sem dúvida alguma aquele de Heliopólis.
Para os sábios de Heliopólis, no começo de tudo não havia nem o Nada, nem o Caos e menos ainda qualquer Deus-Criador, mas apenas uma matéria primordial, inorgânica, não informe, chamada de Noun. Este Noun, que pode ser compreendido como uma massa líquida original, contem potencialmente todos os elementos do devir do universo. Reconhece-se aqui a água de Tales. Deste Noun, o espírito do mundo, Atoum, Itm que existe primeiro no estado desorganizado, toma em seguida consciência de si mesmo despertando para a existência. Desdobra-se então dar nascimento a Rê, personificado pela potência do sol.
Do Noun, água primordial, até Atoum et de Atoum até Rê, não se pode falar propriamente de criação, mas trata-se mais de uma auto-transformação, de um devir (“kheper” em egípcio, simbolizado pelo deus Khépri, um jovem escaravelho). Este khéper reenvia ao mobilismo heracilitiano (panta rhei!). O próprio nome de Atoum (Itm) vem de um verbo egípcio tm que significa tanto “ser acabado” ou “ser completo”, mas também “não ser”. Atoum é, pois, tanto o ser quanto o não-ser. E isto lembra tanto Demócrito quanto Parmênides...
Em seu ser, Atoum é tanto unidade quanto dualidade, o Um e o Múltiplo Atoum-Rê-Khépri. O número três, com efeito, é marca do plural em egípcio. Desta trindade nasce um primeiro casal formado por Shou, isto é o ar, e por Tefnout o princípio úmido. Este casal gera, por sua vez, Geb, o deus Terra, e Nout, a deusa Céu. Estes, por sua vez, vão gerar, de uma parte, Osiris, deus da vegetação, da Fecundidade e por conseqüência princípio do bem, que se casará com sua irmã Isis, símbolo da água e da terra fértil que terão por filho Horus, e de outra parte Seth, deus do deserto, da esterilidade, espírito do mal que se casará com sua irmã Nephthys. Todo o conjunto dos existentes procederá, pois deste grupo de nove deuses. Assim, a cosmogonia egípcia é inaugural em relatar a existência de deuses, enquanto que, em outras partes do mundo, serão estes mesmos deuses aos quais se recorrerá para ter um relato de toda existência.
Enfim, neste sistema do mundo, todos os elementos (homens, animais, vegetais, minerais) vão ser considerados como originados de Rê, e partilhando por isso de uma igual dignidade. Esta concepção do universo por vezes foi chamada de “vitalismo”, “hilozoismo”, “panteísmo” (Spinoza) ou ainda “animismo”, etc. Esta concepção do mundo vai produzir várias conseqüências, visto que cada existente herda uma parcela de Rê: respeito por toda vida, igualdade em direitos e em dignidade de todos os seres humanos, igualdade homem-mulher, nenhuma exploração do homem pelo homem, nada de racismo e ou xenofobia, vida em harmonia com a natureza e todos seus elementos, imortalidade do Ka, a morte sendo apenas uma passagem, crença na vida post-mortem, etc.
Com estes nove deuses primordiais que constituem a Ennéade divina, a obra do universo se completa, segundo um procedimento bastante simples: é o espírito que, desprendendo-se da matéria e tomando consciência de si-mesmo, está na origem de todos os existentes. Mas, aqui, esta grande Ennéade (que é um plural do plural) é, contudo considerada como “uma pluralidade de aspectos de uma mesma divindade”[31]. Vê-se, assim, como é impróprio falar de religião do Egito faraônico, e consequentemente, também de religiões africanas, em termo de oposição entre monoteísmo e politeísmo...
É importante assinalar que no número de línguas africanas atuais é a mesma palavra que serve para designar Deus e sol. Em Dagara (Burkina Faso), por exemplo, Naanwin significa literalmente “Rei-Sol”, como Wennaam em Moore! O antropólogo inglês Jack Goody que desenvolveu pesquisas na região Dagara no início dos anos 50 do século passado escreve a respeito desta homonímia: “Em numerosas línguas da região, a palavra “deus” está próxima – senão homônima – da palavra “sol”; além do mais, como nos Gonja, é a palavra “chuva” que tem a mesma raiz”[32].
Acrescentamos que ainda o mesmo termo que serve para designar a chuva e o deus supremo (Deng) para os Dinkas do Sudão[33]. A comparação com o Egito não é, pois, fortuita.
Vejamos, agora, um exemplo da cosmogonia africana: aquela dos Dogons do Mali, narrada a Marcel Griaule pelo sábio Ogotemmêli.
Com efeito, na cosmogonia Dogon, da qual Griaule diz que é tão rica quanto aquela de Hesíodo[34], enquanto que talvez seja a de Hermópolis (cidade cujo nome egípcio, Khéménou, significa “Cidade dos Oito”) que seria preciso compará-la, acha-se oito ancestrais primordiais criados pelo deus Amma. Estas oito divindades são ainda chamadas Nommo, o que significa Água. De onde o título dado por Griaule à narrativa de Ogotemmêli. Nesta narrativa, a desordem e o mal serão introduzidos pela raposa pálida ou chacal, figura animal que lembra o deus egípcio Seth.
Ogotemmêli se incrustou em sua porta, e fez a divisão dos oito ancestrais primordiais nascidos do casal modelado por deus. Os quatro mais velhos eram machos, os outros quatro fêmeas. Mas pelo efeito de uma graça que somente a eles era concedida, eles podiam se fecundar a eles próprios, sendo duplos e de dois sexos. De onde a descendência das oito famílias dogon... Nesses tempos brumosos da evolução do mundo, os homens não conheciam a morte. Os oito ancestrais nascidos do primeiro casal humano viviam, pois infinitamente. Eles procriaram oito descendências, distintas, cada uma se reproduzindo por si - mesma, cada uma sendo macho e fêmea ao mesmo tempo[35].
De outros paralelos com o antigo Egito e a África negra atual foram estabelecidos em diversos domínios. No campo da arte, Maurice Delafosse[36] destacou inúmeras similitudes entre a estatuária dos baoulé da Costa do Marfim e a arte egípcia. Assim também, a sul-africana de origem inglesa Eva Leonie L-R. Meyerowitz colocou em perspectiva a realeza nos Akan de Gana com aquela do Egito antigo. É verdade que ao termo de seu estudo, ela conclui, como, aliás, já o fizera Delafosse, que a cultura Akan não é de origem negro-africana[37]! Enfim, no domínio da lingüística, Cheikh Anta Diop[38] mostrou, a partir do wolof, sua língua materna, o parentesco genético entre o egípcio faraônico e as línguas negro-africanas atuais...
Duas pequenas observações a respeito deste sábio africano multidimensional[39]. A primeira diz respeito a sua obra pioneira, aquela na qual ele reinstala a civilização egípcia em seu contexto negro-africano; trata-se, é claro, de Nações negras e cultura, publicado pela Présence africaine, em dezembro de 1954. Poucas pessoas sabem que esta obra era de fato a tese secundária para o doutorado em Letras do estudante Cheikh Anta Diop[40]; que esta tese não foi defendida na universidade francesa que recusou muito simplesmente de entender como ela já havia feito antes para o doutorado em psiquiatria de um outro rapaz da Martinica, Frantz Fanon. Estou falando de Pele negra, máscaras brancas, publicado pela editora Du Seuil, em 1952.
A segunda observação diz respeito à fuga para a frente, o ostracismo, e o pesado silêncio que cobriria esta obra inovadora, por falta de argumentos científicos pela refutá-la. Nesse contexto, o colóquio de egiptologia organizado sob a égide da UNESCO no Cairo, em janeiro e fevereiro de 1974, no quadro da redação de uma História Geral da África, pode ser considerado, retrospectivamente, como um encontro decisivo. Esta manifestação científica de alto nível deveria validar as teses defendidas, mais de vinte anos antes, por Cheikh Anta Diop. Um resumo das atas desse colóquio está anexado ao volume II da História geral da África, publicado sob a direção do egípcio Gamal Mokhtar, às páginas 795-830. O texto na íntegra foi publicado pela UNESCO em 1978 sob o seguinte título: O povoamento do Egito antigo e a decifração da escrita meroítica. A validade desta obra é sem ambigüidade, posto que se pode ler que “A muito minuciosa preparação das comunicações dos professores Cheihk Anta Diop e Obenga não teve, apesar das precisões contidas no documento de trabalho preparatório enviado pela UNESCO, uma contrapartida sempre igual. Pelo que se seguiu um real desequilíbrio nas discussões”[41].
Pode-se ouvir novamente extratos desta conferência no site web: www.ankhonline.com.
4. A PROBLEMÁTICA DO RENASCIMENTO
Para ser credível, a filosofia africana hoje não pode ignorar a questão do renascimento por mais tempo. Se o renascimento não pode simplesmente ser a reabilitação do passado, ela não saberia tampouco romper integralmente com ele. Assim como o mesmo movimento na Europa, no fim da Idade Média, ela deve levar em conta todos os aspectos da vida intelectual, artística, cultural, social, psicológica dos povos africanos, na própria África e nas diásporas. Em uma palavra, não poderia haver renascimento africano sem uma tomada de consciência crítica da rica herança da África e de suas diásporas, através do mundo. “A via mais curta para chegar ao futuro é aquela que passa sempre pelo aprofundamento do passado”, como bem o afirmou Aimé Césaire na abertura do primeiro Congresso internacional de escritores e artistas negros, em 1956, em Paris.
Ao verificar a história recente do mundo negro, sabe-se qual o lugar ocupado por esta temática na obra de teóricos do pan-africanismo: Antenor Firmin, Henry Sylvester Williams, Marcus Garvey, W.E.B Du Bois, Kwame Nkrumah, Cheick Anta Diop, Thabo Mbeki, etc. Trata-se de um imperativo existencial. A primeira vez que esta questão do renascimento foi posta na história humana remonta à XII dinastia faraônica, em torno de –1990. Pela primeira vez, com efeito, a expressão ouhem messout faz sua aparição no protocolo real, especialmente, na titularidade do faraó Amenemhat 1er (1991-1962) e seu filho e sucessor , Sésostris 1er (1971-1926).
Literalmente, esta expressão significa “renovar os nascimentos”, “nascer de novo”, “renascer”. Filosoficamente é a primeira vez que a ideia da necessidade de um “renascimento” é expressa. Mas por que renascer, se a própria civilização faraônica não está totalmente morta, nem mesmo seriamente ameaçada de desaparecimento? A resposta é dada nesses termos por um egiptólogo contemporâneo, Peter A. Clayton:
A ruptura do equilíbrio, noção essencial expressa pela palavra egípcia maât, no fim do Antigo Império, em torno de 2181 a.C. é tanto mais dramática quanto inconcebível. O caos reina durante cento e quarenta anos. Apenas a família de príncipes, originária de Tebas, conseguirá controlá-lo, abrindo o período do Médio império. Dois séculos e meio mais tarde, o governo central desmorona, o equilíbrio é de novo rompido. A civilização egípcia, que passa, então, de um extremo a outro, conhece tempos difíceis. Este período tormentoso, muito mal conhecido hoje, acabará por dar nascimento às três gloriosas dinastias que formarão o Novo Império[42].
De fato, se o Novo Império é conhecido como aquele da renovação das técnicas arquiteturais e mais geralmente, aquele do progresso da civilização egípcia, a XII dinastia permanece como a idade de ouro da literatura. Grandes textos de uma qualidade literária inegável, datam deste período: a começar pelo Conto de Sinouhé, Lições de Anemena, o Conto do Náufrago e o Conto do camponês eloquente.
Outra narrativa, difícil de datar com precisão, anunciava os acontecimentos caóticos que deveriam seguir-se ao período do renascimento. Este texto é conhecido como a Profécia de Neferty ou ainda o Conto profético. Eis alguns trechos:
Comove-te, meu coração, e chora sobre esta terra onde tu começaste a ser. Aquele que se cala nas calamidades, existe qualquer coisa que pode ser dita a seu respeito em forma de reprovação. Não se mostres mole. Vês, essas coisas estão diante de ti. Levanta-te contra o que está em tua presença... O dia começa na iniqüidade. O país está totalmente arruinado... Os inimigos fizeram sua aparição no Leste, os Asiáticos descem no Egito (Kemet). O palácio estará na miséria e ninguém o socorrerá... Eu te mostro o filho como inimigo, o irmão como adversário, um homem assassinando seu pai... Todas as boas coisas partiram. O país está arruinado; leis são promulgadas contra seu interesse... Mas eis que um rei virá do sul, chamado de Anény (Anenemhat I). É o filho de uma mulher de Ta-sti, é uma criança do Alto Egito. Ele tomará a coroa branca, e ele carregará a coroa vermelha, ele unirá (sobre sua cabeça), as duas Potências, satisfará Horus e Seth, os dois senhores, por meio do que eles amam... O direito (maât) voltará ao seu lugar, a iniqüidade (isfet) tendo sido empurrada para fora. Que ele se regozije, aquele que verá isso e que se achará então ao serviço do rei. Um sábio me fará uma libação quando ele constatar que o que eu disse se realizou[43].
A situação descrita acima é mesmo de uma situação de crise política, social, moral, etc., que pode ser comparada ponto a ponto aquela da África de ontem e de hoje. A urgência de um renascimento africano, em todos os domínios da vida social, encontra sua justificação na realidade cotidiana. Tratando-se da África, esta realidade é demasiadamente carregada do peso do passado e da violência simbólica que disso resultou. Ora, um questionamento filosófico radical sobre o tráfico escravagista, como o fizeram Aimé Césaire e Frantz Fanon, a propósito do colonialismo, ainda não aconteceu na África. Mesmo o sistema colonial e neocolonial não foram ainda verdadeiramente questionados, com raras exceções. Mas a crítica filosófica africana tem muito a fazer com o fracionamento do continente em múltiplos micro-estados não viáveis e quase todos submetidos à dependência. E as incontáveis relações malsãs e condenáveis com as antigas potências coloniais não arrependidas, que são os inimigos declarados da liberdade e da democracia na África? O que dizer da elite política africana, largamente alienada, irresponsável e corrompida, mas protegida pelo Ocidente que organiza a pilhagem sistemática do continente? E a hipocrisia, o racismo e as violências terríveis que acompanham a dominação do Ocidente sobre o mundo? E a globalização, o outro nome desta inacreditável injustiça? Em quê então se ocupam a filosofia e o pensamento africanos, em geral, a ponto de deixar de lado esses temas tão graves sem questionamentos?
“Finis philosophiae conservatio et perfectio humai generis[44]”: “o fim da filosofia é a conservação e a perfeição do gênero humano”. Tal era o credo do filósofo africano Anthony William Amo (1703-1758), em pleno século XVIII. A filosofia africana do século XXI não ganharia mais seriedade e profundidade assumindo esse tão nobre objetivo?
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais que o passado, o trabalho de renascimento diz respeito em primeiro lugar ao presente e ao futuro. Nada tem a ver com a simples reabilitação do passado, por mais glorioso que seja. Trata-se, ao contrário, como isso já foi feito em outra parte, de buscar apoiar-se no que a inteligência africana de melhor já produziu em vista de criar as condições para uma sociedade viável, equilibrada e justa.
Mas, trata-se, sobretudo de reconectar a juventude africana com seu fundo cultural mais antigo e mais precioso. Assim, será em toda liberdade que ela deverá usufruir dos ensinamentos que lhe pareçam os mais pertinentes para fazer face aos desafios do momento. É também esta que deveria ser a tarefa da filosofia na África, hoje:
O retorno ao Egito em todos os domínios é a condição necessária para reconciliar as civilizações africanas com a história, para construir um corpo de ciências humanas modernas, para renovar a cultura africana... O Egito desempenhará, na cultura africana repensada e renovada, o mesmo papel que as antiguidades Greco-latinas na cultura ocidental... Nossos jovens filósofos devem compreender isto e dotarem-se rapidamente dos meios intelectuais necessários para religar-se com o berço da filosofia na África, ao lugar de atolarem-se em falsos combates de etno-filosofia. Ao restabelecer laços com o Egito, descobriremos de um dia para o outro, uma perspectiva histórica de cinco mil anos que torna possível o estudo diacrônico, sobre nosso próprio solo, de todas as disciplinas científicas que tentamos integrar no pensamento africano moderno. A história do pensamento africano torna-se uma disciplina científica onde as cosmogonias “etno-filosóficas” ocupam seu lugar cronológico como a múmia em seu sarcófago[45].
Tradução de Humberto Luiz Lima de Oliveira
REFERÊNCIAS
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Clayton, Peter A. Chronique des Pharaons. L’histoire, règne par règne des souverains et des dynasties de l’Egypte ancienne. Paris: Casterman, 1995
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[1] Jean-Marc Bonnet-Bidaud “ A observação da estrela Sirius pelos Dogons”, Ankh, revue d’ Egyptologie et des Civilisations africaines, n. 10/11, 2001-2002, p. 145-163.
[2] Cf. especialmente Le mythe aryen: Essai sur les sources du racisme et des nationalismes. Paris: Calman-Lévy, 1971.
[3] Leia-se também de SALA-MOLINS, Louis. Le Code noir. Paris: PUF / Quadrige, 2002 e Les Misères des Lumières: sous la Raison, l’ outrage. Paris: Robert Lafont, 1992.
[4] TOBNER, Odile. Du racisme français. Quatre siècles de négrophobie. Paris: Les Arènes, 2007.
[5] KANT, Immanuel, Observations sur le sentimento du beau et du sublime. In Oeuvres philosophiques. Paris: Gallimard/NRF,1980, vol I, p.458(AK.II, 213)
[6]KANT, ibidem, p. 505 (Ak.II, 253)
[7] HEGEL, G. H. Leçons sur la philosophie de l’ histoire. Paris> J. Vrin,1987, p.74-75.
[8] HEGEL,G.H. ibidem, p. 75-76. A mesma descrição encontra-se na La Raison dans l’ histoire. Paris: Christian Bourgois, 1991, p.245-250.
[9] HEIDEGGER, Martin. “Qu’ est-ce que la philosophie?” In Questions II. Paris: Gallimard, s.d. p.321l e 326.
[10] CHÂTELET, François. Histoire de la Philosophie.Paris: Hachette Pluriel, 19999, v.1 , p.17.
[11] CHÂTELET, François. Uma história da razão. Entrevistas com Emile Noël. Paris: Seuil, 1992, p. 17.
[12] HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Paris: Aubier Montaigne, 1977, p.37.
[13] HUSSERL,Edmund. Ibidem, p.45
[14] ARISTÓTELES, Metafísica, A, 181 b.
[15] MASSON-OURSEL, Paul. A filosofia no Oriente. Fascículo suplementar. Paris: Félix Alcan, 1938,p.36. Uma palavra sobre esta obra: deveria, segundo a avaliação de Emile Bréhier, servir de introdução a sua História da filosofia. Ora, as reedições atuais desta obra de Bréhier ignoram esta contribuição essencial!
[16] CONDORCET, Réflexions sur l’ esclavage des Noirs. Paris: GF Flammarion, 2009, p. 57.
[17] L’ ABBÉ GRÉGOIRE, De la littérature des Nègres ou recherches sur leurs facultes intellectuelles, leurs qualités morales et leur littérature. Introduction et notes de Jean Lessay. Paris: Perrin, 1991, p. 35.
[18] VOLNEY, Voyage em Egypte et en Syrie pendant les années de 1783, 1784 et 1785. Paris: Bossange Frères, 1822, (1787), tome I, 5ème edition, p.69.
[19] SCHOELCHER, Victor. L’ Egypte en 1845. Paris: Pagnère éditeur, 1846, p. 274-275.
[20] CHAMPOLLION, Jean-François. Grammaire egípcia ou Principes généraux de l’ écriture sacrée égyptienne. Paris: Firmin Didot et Frères, 1836, p.XIX.
[21] CHAMPOLLION,Jean-François.op.cit. pXXiJ,xxxiiJ.
[22] PLATÃO, Crátilo, 411d.
[23] CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots. Paris: Klincksiek, 1999, 2ème. Édition, p. 1031.
[24] NIEZTSCHE, Friedrich. La naissance de la philosophie à l’ époque de la tragédie grecque. Paris: Gallimard, 1951, p.131.
[25] OBENGA, Théophile. L’ Egypte, la Grèceet l’ école d’ Alexandrie. Histoire interculturelle dans l’ Antiquité. Aux sources égyptiennes de la philosophie grecque. Paris: Khepera & L’ Harmattan, 2005, p. 220-223.
[26] Ver também BERNAL, Martin,Black Athena. The afroasiatic Roots of Classical Civilization. Rutger University Press, 2006, v. III, p.262-264.
[27] LAËRCE, Diogène. Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres. Paris: Garnier Flammarion, vol. 1, p. 52-53.
[28] GARDINER, Alan H. Egyptian Grammar. Being an introduction to the study of hieroglyphs, § 149, 1 et Urk. V. 95, Oxford, Griffith Institute (1927), 3rd edition, 2007
[29] Bréhier, Emile. Histoire de la philosophie. Antiquité et Moyen-Age, Vol. 1, PUF, 1981, p. 46.
[30]Diogène Laërce, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres, Tome II, Paris, GF, p. 125-126.
[31] Gilbert Ngom, « Egypte ancienne-Afrique noire : pensées et légendes », in Ankh n°4/5, juillet 1996, p. 102.
[32] Jack Goody et S. W. D. K Gandah, Une récitation du Bagré, Paris, Armand Colin, 1980, p. 24. La population étudiée par Goody se nomme elle-même Dagara. Elle est parfois, comme ici, subdivisée en deux groupes que peu de choses distinguent comme tels : les Lobr encore appelés Daga-lobr (et non Lodagaa comme chez Goody) et les Wilé. Aucun de ces groupes ne répond non plus à l’appellation de Lowili, qui est encore une création de cet auteur…
[33] Lire, par exemple, E. E. Evans-Pritchard, Les Nuers, Gallimard, 1994, p. 214-216.
[34] Marcel Griaule, Dieu d’eau, Fayard, éd. de poche, 1991, p. 13.
[35] Marcel Griaule, Ibidem, p. 31-32.
[36] Maurice Delafosse, « Sur les traces probables de la civilisation égyptienne et d’homme de race blanche à la Côte d’Ivoire », in L’Anthropologie, Vol. 11, 1900, p. 95 sq.
[37] “This is not the place to show how much the Akan, among other sudanese peoples, have preserved from the various nations which once colonised North Africa ; suffice it to say that the Akan state organisation, religion, and much of the material culture is of non-negro African origin”. In Eva L. R. Meyerowitz, The divine kingship in Ghana and Ancient Egypt, London, Faber and Faber, 1960, p. 235.
[38] Cheikh Anta Diop, Parenté génétique de l’égyptien pharaonique et des langues négro-africaines. Dakar, IFAN-NEA, 1977. E tambem Nouvelles recherches sur l’égyptien ancien et les langues négro-africaines moderns. Présence Africaine, 1988 (obra póstuma)
[39] Se ele é conhecido, sobretudo como historiador, egiptólogo, antropólogo e linguista, convem lembrar que Cheikh Anta Diop é, antes de tudo, físico e químico, e, como tal, fundou e dirigiu o Laboratório de radiocarbono, em Dacar. Mas ele é tambem filósofo, sociólogo e homem político!
[40]Para maiores informações sobre o percurso universitario e a obra Cheikh Anta Diop, o leitor podera conferir o livro recentemente publicado por seu filho mais velho, o fisico Cheikh M’Backé Diop : Cheikh Anta Diop, l’homme et l’œuvre, Paris, Présence Africaine, 2003.
[41] Le peuplement de l’Egypte ancienne et le déchiffrement de l’écriture méroïtique, Actes du colloque tenu au Caire, du 28 janvier au 3 février 1974, Unesco, 1978, p. 101.
Cheikh Anta Diop, Civilisation ou Barbarie, Présence Africaine, 1981, p. 12-13.
[42] Peter A. Clayton, Chronique des Pharaons. L’histoire, règne par règne des souverains et des dynasties de l’Egypte ancienne, Casterman, 1995, p. 69.
[43] Gustave Lefèbvre, Romans et contes égyptiens de l’époque pharaonique, Paris, Adrien Maisonneuve, 1976, pp. 91-105.
[44]Antonius Guilielmus Amo, Tractatus de arte sobrie et accurate philosophandi, Halle, 1738, chp. 2, §. 5
[45] Cheikh Anta Diop, Civilisation ou Barbarie, Présence Africaine, 1981, p. 12-13.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 4 | vol. 1 | Ano 2016
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