Décio Torres Cruz**
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Aristóteles (384 - 322 a.C.) ao lançar as bases da literatura ocidental, através da sua Poética, concebe o conceito de mimesis pelo seu valor autônomo e estético, desvinculando o discurso literário do imbróglio de mera imitação do mundo exterior. Segundo Aristóteles, a mimesis confere à arte a possibilidade de sustentação puramente pelo critério de verossimilhança, podendo pertencer ao plano da ficção sem o invólucro de dependência em traduzir o que seria o plano empírico, real. O filósofo defende ainda que o que vai diferenciar, por exemplo, o discurso do poeta e do historiador não é propriamente a forma com que cada um escreve, sendo o primeiro verso e o segundo prosa, mas os tipos de fatos sobre os quais cada um escreve, uma vez que o historiador discorre sobre fatos que aconteceram, enquanto o poeta sobre aqueles que poderia ter acontecido, tornando o seu discurso mais universal. Assim, caberia à literatura a função de criar, imaginar e apresentar os fatos de modo original, mas não construindo uma narrativa que trate dos fatos exatamente como ocorreram.
Partindo do que denomina de “tendência à confusão entre as formas discursivas da história e da ficção”, Luiz Costa Lima (1989, p. 101) alega que a relação confusa que se faz entre os dois formatos textuais é remota e deve-se, sobretudo, ao estatuto conferido a esses modos de texto e ao arranjo narrativo de cada um. Para o autor, o parentesco entre a escrita histórica e a ficcional remonta a dois tipos de relato: de um lado, o que objetivava demonstrar um mundo estável, baseado em leis e em mitos; de outro, aquele que procurava narrar o peculiar, o instável, o excessivo. Dessas maneiras distintas de narração, provém o texto de enredo moderno (LIMA, 1989 apud LOTMAN, 1979), que, por vezes, mescla os dois tipos textuais citados.
Segundo Linda Hutcheon, até o século XIX a literatura e a história eram consideradas como pertencentes a uma mesma ramificação do saber, visto terem como objetivo a interpretação das experiências, visando a elevação humana. Porém houve uma diluição desta aproximação e o que marca os discursos teóricos sobre o tema na atualidade é uma contestação em relação a esse afastamento, tentando aproximar novamente os dois discursos por meio do que eles possuem em comum, evitando-se centrar nas suas distinções. (HUTCHEON, 1991). A verossimilhança seria um dos elementos de aproximação, pois é dela que tanto a literatura quanto a história retira a força de seus discursos, ambos pautados nos construtos linguísticos, nas intertextualidades e em convenções narrativas “nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura” (HUTCHEON,1991, p.141).
Acerca do longo e inegável vínculo entre os discursos da literatura e da história, dos acontecimentos e mesmo pessoas, não seria a construção da história também imbuída de semelhantes formas de construção? Assim como a literatura, a história denominada Positivista não passaria pelo crivo de escolhas e subjetividades para construir sua verossimilhança? Analisando os discursos históricos construídos até então, onde estariam os relatos sobre e, principalmente, das mulheres, dos negros e de todas as demais minorias? São respostas que se alinham a estes questionamentos que algumas correntes de pensamento surgidas a partir da segunda metade do século XX objetivam elucidar.
Considerando as concepções restritivas da História Positivista e os discursos canônicos consolidados ao longo dos séculos, a Nova História, que surge como nomenclatura a partir do ano de 1978 através da revista Annales: économies, societés, civilisations, propõe uma construção da história que não mais se embase nas concepções de heroísmo e nas figuras ilustres que representam a elite, mas que reaja ao chamado “paradigma tradicional”, possibilitando uma abertura à realidade mutável, analisando as estruturas, valorizando documentos, registros, arquivos (em maior número possível) e valorizando as “opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social” (BURKE, 1992, p.13).
Um dos elementos do discurso histórico que a Nova História (ou História Nova, as nomenclaturas são várias) se propõe a contestar relaciona-se ao fato de um mesmo acontecimento ser interpretado de modo diverso de acordo com marcações específicas do historiador, como sexo, raça e classe social. Logo, ao analisar a tendência unilateral adotada pela História Positivista, percebe-se a importância em postular a multiplicidade de versões acerca dos fatos e dar voz aos vários sujeitos históricos. Também, a partir da segunda metade da década de 1950, com o surgimento dos Estudos Culturais e sob a égide dos estudos do pós-estruturalismo francês, a literatura passa a preocupar-se de modo mais ativo com a escrita de narrativas em que se trouxessem à tona as diferentes alteridades outrora silenciadas, possibilitando a construção de um discurso erigido não somente sobre, mas também pelos sujeitos do ainda então denominado Terceiro Mundo.
A independência política de algumas colônias africanas na segunda metade do século XX, por exemplo, alargou o caminho para discussões históricas acerca dos novos paradigmas sociais e da dicotomia passado/presente. Passaram a ser necessários, a partir daí, estudos que conseguissem apreender os efeitos causados pela colonização sobre as sociedades e suas culturas, bem como discursos que moldassem a identidade nacional destas nações, desconstruindo as narrativas coloniais produzidas pela ótica do colonizador e substituindo-as pelo ponto de vista dos que foram colonizados.
De acordo com Bhabha (1998, p.239), o discurso pós-colonial no âmbito político e social do mundo moderno visa, em meio às forças desiguais e irregulares com as quais compete, intervir “naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma ‘normalidade’ hegemônica ao desenvolvimento irregular e as histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos”. Assim, conforme ratifica Hall (1997, p.107), embora a multiplicidade política e social que envolve o termo pós-colonial, ele busca dar conta das mudanças nas relações globais “que marca[m] a transição [...] da era dos Impérios para o momento da pós-independência ou pós-colonização”.
Enquanto num contexto em que as nações buscam construir uma nova acepção identitária, o discurso pós-colonial utiliza-se da literatura como um importante meio de erigir versões e leituras acerca do passado histórico, onde ficaram esquecidos sujeitos, fatos e memórias. As narrativas literárias são meios de vinculação dos discursos de resistência do sujeito diaspórico, que molda sua identidade e sua posição social a partir de uma reanálise das versões da história oficial, elaborando um discurso descentrado e global, em que a nação possa, livre dos enlaces colonizadores, ver-se representada. Logo, aos discursos e eventos considerados oficiais, somam-se, então, no contexto pós-colonial, os produzidos segundo a ótica do sujeito subalterno, marcado pelo silenciamento no passado, mas que passa o ocupar um espaço de articulação e participação dentro da lógica pós-moderna, erigindo novas versões históricas e desestabilizando as já engendradas no imaginário local/global.
Neste sentido, embora as notáveis diferenciações no que diz respeito ao viés pós-moderno em alguns contextos políticos e sociais, e a multiplicidade de realidades que são agrupadas no invólucro de pós-colonial, conforme afirma Hall (1997), justifica-se a grande produção de romances que revisitam a história para que se possa realizar, através da literatura, uma reanálise do passado, uma reflexão crítica e um diálogo não nostálgico que possibilite um rearranjo das formas e dos cânones dentro das configurações pós-modernas. O chamado novo romance histórico reescreve os fatos históricos através do discurso ficcional, traçando uma constituição identitária que considera, a partir de então, traços culturais, sociais e antropológicos, e desconstruindo a versão da história oficial por meio de mecanismos discursivos como a paródia e o pastiche.
Para Hutcheon (1991), é nesta lógica que se inscreve uma das contradições que demarcam o pós-moderno, pois ele utiliza-se da “presença do passado”, para questioná-lo, reavaliá-lo, por meio, por exemplo, do romance histórico, denominado por Hutcheon (1991), de metaficção historiográfica, definida pela autora como romances “famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos”. (HUTCHEON, 1991, p.21). Segundo a autora, se os principais trabalhos críticos construídos no contexto do pós-modernismo estão voltados para a literatura, a teoria e a história, o romance histórico (ou metaficção historiográfica) incorpora os três domínios, pois “sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas [...] passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado”. (HUTCHEON, 1991, p.22).
DESMUNDO: UMA REVISITA À HISTÓRIA DA MULHER NO PERÍODO COLONIAL
Há uma forte tendência na literatura produzida no Brasil a partir da década de 1980 em revisitar o passado histórico do país através de romances em que o escritor utiliza-se das estratégias narrativas para reanalisar e reescrever, a partir de novos olhares e perspectivas, passagens importantes que estão na base da identidade nacional brasileira. Essas produções coincidem com outras publicadas no contexto da América Latina e, dentro de uma realidade cultural, política e social mais ampla, respondem a indagações teóricas latentes no âmbito da História e da Literatura.
Neste sentido, o romance Desmundo (1996), da escritora cearense Ana Miranda, se insere dentro desta concepção da metaficção historiográfica ao desnudar, através de sua narrativa, aspectos ligados à vida colonial brasileira ainda no primeiro século após a chegada dos portugueses. O romance, narrado em primeira pessoa por uma jovem órfã portuguesa enviada pela rainha à nova terra, põe em cena as relações estabelecidas entre nativos e colonos, além de elucidar a posição da mulher naquela sociedade, através do olhar indagador e revelador da sonhadora personagem. Além de reescrever sob a ótica de outro contexto a história dos primeiros anos do Brasil como colônia portuguesa, o romance de Ana Miranda se insere duplamente dentro da perspectiva de reanálise da história oficial, pois traz uma voz feminina como responsável pelo filtro interpretativo de uma sociedade de bases estritamente patriarcais.
Para Gayatri Spivak (2010, p.84), no contexto pós-colonial a subalternidade da figura feminina “parece ser a mais problemática”, pois se constituiu como uma dupla mudez, uma vez imposta a ideologias imperialistas e patriarcalistas. Embora esta realidade mude levemente de nuances a depender do contexto cultural de cada país, Telles (2007) afirma que a realidade brasileira não foi muito diferente do que se encontra na maioria dos países pós-colonizados, pois a mulher viu-se sempre representada pelo olhar masculino e excluída, até o século XIX, da participação social e cultural, sendo que as precursoras na transformação desta realidade não foram vistas com bons olhos pela sociedade da época.
Em seu emblemático livro O segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir (2009, p.99) afirma que “O mundo sempre pertenceu aos machos”, condição que, segundo a filósofa, ainda não havia sido explicada suficientemente. Para Beauvoir, tal hierarquia só pôde ser esclarecida através dos dados da pré-história e da etnografia quando analisados à luz da filosofia existencial:
[...] verificamos que quando duas categorias humanas se acham presentes, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma delas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. Compreende-se, pois, que o homem tenha tido vontade de dominar a mulher. (BEAUVOIR, 2009, p.99)
O romance Desmundo situa historicamente essa relação de soberania e dominação de que fala Beauvoir e a forma com que era imposta à mulher no Brasil do século XVI. Entre os vários aspectos da vida colonial retratados em Desmundo, ganha destaque a releitura feita pela ótica duplamente feminina que a autora realiza sobre a situação da mulher no Brasil colonial. É através do olhar desbravador da jovem órfã Oribela que se constrói a narrativa metaficcional de Ana Miranda. Oribela e outras cinco órfãs, Urraca, Isobela, Bernardinha, Tareja e Pollonia, foram enviadas pela rainha de Portugal para um “desmundo” desconhecido e rude com a finalidade de povoar e de estabelecer matrimônio com portugueses que aqui moravam, garantindo uma descendência portuguesa legítima.
Trazendo como enxoval somente “unhas sujas, carnes para serem gastadas, umas tristezas escondidas, ciúmes, invejas, enganos” (MIRANDA, p.24), as jovens aportam no Brasil numa noite estrelada do ano de 1555, cobiçadas pelos olhares dos homens que as viam como verdadeiras mercadorias: “fôramos cargas de azêmola, boceta de marmelada, alguidar de mel sendo eles pontas de arnelas, canas agudas, flechas de arcos, espadas de pau tostado, lanças de arremeso, ferrões, açoites [...] (MIRANDA, p.25), revelando a função a que se destinavam e denunciando a contundência fálica da ação agressiva e impositiva do homem sobre a mulher.
Ao aportar na terra misteriosa e selvagem que “possuía o nome de um pau”, Oribela vai revelar seus medos, seus sonhos, suas angústias ao se deparar com uma realidade em muito distante da que encontrava no mosteiro em que vivia em Portugal. À medida que desbrava a nova terra, a narradora vai se desvelando e possibilitando que o leitor também possa realizar descobertas que passam pelo íntimo da jovem narradora e que chegam aos comportamentos e costumes típicos da colônia no século XVI.
Assim que chegam ao Novo Mundo, as órfãs são preparadas para o destino ao qual havia determinado a rainha de Portugal: o casamento com os cristãos portugueses que aqui moravam. Sob a égide do Catolicismo e instruídas por padres e pela personagem Velha, Oribela e as demais órfãs começaram a compreender o que significava pertencer ao sexo feminino em uma sociedade patriarcal e machista em que a mulher era considerada objeto de posse e mero meio de procriação, onde a abstenção do prazer e a submissão aos homens (fossem pais, irmãos ou maridos) eram regras invioláveis, como explicita a fala da personagem Velha:
Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá nem lari lará (MIRANDA, 2003, p.67).
A cartilha patriarcal do contexto social em que se encontravam estava apresentada. A própria imposição da vinda das órfãs para nova terra já demonstrava a total impossibilidade de decidir sobre o seu destino e sua vulnerabilidade diante do que lhes impuseram. A submissão integral ao marido era a partir daí uma regra básica a ser seguida e para aquelas que ousassem transgredir era dado o exemplo do castigo:
[...] uma mulher que se negou a casar teve suas mãos e pés cortados, foi mandada ao mosteiro. Arrastava a pobre sua carcaça nos pedregulhos do pátio, sem coisa alguma sobre suas carnes, arrancando compaixão de todas, uivando, ganindo, cadela brava e triste de ódio, servia a mais de nós, as fêmeas (MIRANDA, 2003, p.75).
O que emerge, então, no contexto do romance de Miranda é a postura de resistência e inquietação da personagem-narradora: uma jovem, órfã, mulher, em uma terra distante, que traz arraigada em si uma forte formação religiosa e que se acha inserida em uma sociedade opressora e machista que não oferecia liberdade social para a mulher, mas que ainda assim ousa demonstrar sua insatisfação por meio de atos, palavras e da própria escrita encontra meios de transgredir e questionar, ainda que em dados momentos somente para si, o modelo social imposto. Oribela, embora dominada pelas crenças religiosas semeadas na vida que levara no convento em Portugal, não aceita de modo passivo o destino que lhe foi desenhado: “E disse eu, ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira” (MIRANDA, 2003, p. 67). Os castigos vários de que é vítima ao longo de sua trajetória, inicialmente impostos pelo pai, e posteriormente por um padre e pelo marido, soam como maneiras de conter seu temperamento e personalidade arredios.
É importante observar que a personagem-narradora de Ana Miranda transita entre dois lados aparentemente opostos, mas que convergem para pontos semelhantes: vem de um contexto religioso em que vivia em Portugal e se encontra imergida em uma sociedade patriarcal em que a mulher para ser aceita socialmente deveria seguir regras impostas pela Igreja e pelos homens, o que poderia denotar submissão e aprendizado quanto às normais sociais que deveria seguir, mas que no romance contrastam com uma personalidade forte e uma postura de insubmissão da personagem.
Considerando a forte influência que a Igreja impunha sobre o tratamento dado à mulher no século XVI, Araújo (2007, p.46) afirma que:
o macho (marido, pai, irmão etc.) representava Cristo no lar. A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar de inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de Eva, tinha que ser permanentemente controlada.
E esse comportamento relegado à figura feminina era justificado por uma simples explicação: o homem era superior à mulher. Embora a personagem de Ana Miranda pertença a esse período em que a mulher era condenada a um exílio social e seu comportamento ditado minuciosamente pelo homem, suas ações ao longo do romance vão subverter e contrariar o que a sociedade esperava acerca da mulher. É dessa maneira que a narrativa de Miranda desconstrói a perspectiva da história oficial, trazendo à tona por meio de sua metaficção historiográfica as vozes que foram relegadas ao silêncio no decorrer dos relatos oficiais, contribuindo para desestabilizar a rigidez que envolveu até o século XX o discurso documental.
Embora a personagem principal do romance tenha saído de Portugal com seu destino traçado pela rainha e pela Igreja (casar-se com um dos portugueses que aqui moravam), a sua percepção como sendo uma mercadoria na chegada ao “desmundo” já revelava o tratamento que teria dentro e fora do matrimônio. O primeiro ato de rebeldia e de despudor da orfã é constatado ainda no momento de apresentação do seu futuro marido, Francisco de Albuquerque, homem digno de ojeriza pela personagem principal:
Seu aspecto era o de um cão danado, lhe faltavam dentes, tinha pernas finas, nariz quebrado, da cor de um desbotado seus olhares. Cheirava a vinho de açúcar, usava um chapéu roto, tinha tantos pêlos a modo de uma floresta desgrenhada e estava sujo, imundo [...] Reparasse o homem na formosura de minha feição, na suavidade mulheril e esquecesse da rebeldia, tudo o mais era infalível. O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi (MIRANDA, 2003, p.56).
Ainda que soubesse dos castigos que eram relegados à mulher que não estabelecesse matrimônio, “viver na cozinha ou na taberna” (leia-se, prostituição), Oribela mostra-se rebelde e insubmissa diante daquele que lhe foi apresentado/imposto como futuro marido. Porém, como não era dona de seus desejos, teve que se casar, e, ainda na noite de núpcias prova da dura realidade da vida mulheril:
Para deitar, um monte de feno, mas a mim foi segurando Francisco de Albuquerque e derrubando. E acaso a leoa mais mansa que o leão? E lhe dei uma bofetada no rosto no que fez ele sem pensar uns modos de como se fosse quebrar minha caveira, me fez tremer as carnes e o fervor dele, disto, era tão grande, em tal momento, que em muito breve espaço tudo meu estava como que em grilhões, entre suas forças, embaixo de seus pesos, a arrancar tudo que era seu e de Deus, cobrar sua repartição, seu quinhão que lhe valia por direito de esposo, como em mim havia de ser tudo seu, mas eu rogava que nada fosse tanto, entendendo de querer escapar de embaixo dele, de modo que se tinha dentes devia ser para cobrar as penas, quem deu foi pensando, assim foi Francisco de Albuquerque trabalhar sobre mim, recolher de minha boca o silêncio e a fechadura em sua boca (MIRANDA, 2003, p. 76).
Após o casamento com Francisco de Albuquerque, que era sobrinho da mulher do governador da época, Oribela se vê obrigada a realizar sua segunda viagem (ou terceira, se pensarmos que a personagem enreda uma viagem íntima ao longo do romance) dentro da nova terra em que passara a viver. Se na primeira viagem havia deixado para trás sua terra natal, na segunda, agora por terra, irá desbravar, ao lado do marido, o interior do país, deixando o litoral em direção a sua nova casa, a fazenda de Francisco de Albuquerque. Era nesse espaço que residia a mãe dele, Dona Branca de Albuquerque, e uma filha-irmã, Viliganda, fruto de uma estranha relação incestuosa.
Vendo seu sonho de retornar às terras lusitanas ficar cada vez mais distante, Oribela se submete ao perigo de duas fugas frustradas na tentativa de conseguir um navio que a levasse de volta para Lisboa. Na primeira, é enganada e estuprada por marinheiros que, após serem alcançados por Francisco, que vinha em busca da esposa, são mortos e queimados. Essa primeira fuga serve como modo de aproximação entre Oribela e Temericô, índia (ou “natural”, segundo a ótica da narradora) que vivia na fazenda e que cuidou dos ferimentos de Oribela após esta se encontrar acorrentada a uma mesa, castigo imposto pelo marido devido à primeira tentativa de fuga.
Esta ligação com a índia Temericô significa para Oribela um forte contato cultural e o desvencilhamento de algumas ideias preconceituosas arraigadas na cultura portuguesa e trazidas pela órfã na travessia em direção ao Brasil. A relação cultural não se limitou aos costumes, mas se estendeu à própria língua dos nativos, que passa então a fazer parte da tessitura da narrativa após ser apropriada, em parte, por Oribela. Também, o contato com a cultura indígena significou uma forma de autoconhecimento e de destituição de determinados valores cristãos, pois o corpo, visto pelo Catolicismo como elemento que induz ao pecado, passa a ser experienciado de modo diferente pela personagem-narradora, sendo a nudez não mais vista pela ótica de Oribela como algo negativo: “Eu pintava o rosto de urucum, comia no prato das naturais e me desnudava nos dias quentes” (MIRANDA, 2003, p.127).
Embora a sua orfandade e o sistema opressivo que imperava dentro e fora de casa, que sujeitava a mulher aos mais severos castigos sociais e domésticos caso desafiasse a autoridade simbolizada pelo marido, Oribela ainda empreende uma segunda tentativa de fuga em busca não somente do retorno à terra pátria, mas de uma felicidade e da possibilidade de escolhas próprias que não encontrava ao lado de Francisco de Albuquerque. É durante uma guerra na fazenda do marido que Oribela vê sua segunda oportunidade de livrar-se das mazelas do matrimônio sem amor e de partir em busca de seu ideal de felicidade.
Durante esse percurso, surge, pela segunda vez na vida da personagem principal do romance, a figura do mouro Ximeno, que já tinha despertado sua atenção e admiração ainda na chegada ao Brasil. O primeiro contato com Ximeno se dá devido à morte da mulher que lhe era prometida, Isobela, ainda no decorrer da viagem de Portugal até o Brasil. Ao atirar-se no mar, Isobela deixa seus sapatos para Oribela, sapatos que seriam devolvidos por ela, após aportar no Brasil, àquele que desposaria a órfã suicida. O primeiro contato com o mouro é permeado por encantamento, mas em seguida é dominado pelos temores que a Igreja Católica disseminava em relação aos muçulmanos.
um homem de cavalo, vestido ricamente e com bota de cordovão, capa, sombreiro, seguido de seus escravos naturais com armas e mais uns negros de Guiné, tilintando de metais, cintilando raios e cheirando às peles manchadas que forravam os da terra, fez com que todos se afastassem a deixarem passar tal majestade, o cabelo de mecha da cor do cobre e uma grande quantidade de pêlo no braço, sempre ruço, veio num modo de querer alevantar o rebuço e verificar, fôramos putas ou barbadas, trasgos, mandrágoras. (MIRANDA, 2003, p.28).
Ao encaminhar-se na direção daquele homem tão encantador, quase um príncipe medieval, com o intuito de devolver os sapatos que foram de sua desventurada pretendida, Oribela depara-se com o doce olhar de Ximeno, que lhe concede os sapatos, visto que, “se me cabiam deviam ser meus e em joelho os meteu aos meus pés. Suas mãos tremiam, fosse embora bravo e destemido na sua maneira, o que lhe fez grande oposição” (MIRANDA, 2003, p. 29), numa.referência aos clássicos contos de fadas, em que seria o casamento obrigado com Francisco de Albuquerque e os dogmas da Igreja Católica os impedimentos para a realização desse amor impossível.
Porém, a quebra do encantamento se dá quando ela fica sabendo que aquele homem de cabelos cor de fogo se trata, na verdade, de um mouro. A partir daí, seus sentimentos ficam confusos e Ximeno passa a simbolizar o pecado, a tentação, numa recuperação imediata das lendas e crendices disseminadas pela Igreja Católica e arraigadas na mente de Oribela acerca dos muçulmanos. As ideias preconceituosas plantadas há séculos nas mentes cristãs acerca dos muçulmanos fazem Oribela acreditar que aquele deslumbramento seria fruto do efeito de rituais de feitiçaria reatualizados pelo mouro, visto então ser melhor se afastar e não guardar lembrança daquela alma “parida por Maomé”.
O reencontro de Oribela com Ximeno se dá na ocasião de sua segunda tentativa de fuga, quando ela perde a esquadra em que desejava voltar para Portugal e, após sua frustração, se depara mais uma vez com o temido mouro de cabelos avermelhados. É nesse segundo encontro que a personagem principal se renderá ao amor e à felicidade que não sentia ao lado do marido. Subvertendo as leis patriarcais e os dogmas da Igreja Católica, sucumbe à tentação e trai o marido com Ximeno, relação que terá como fruto um filho. Sobre a ocorrência do adultério feminino neste período, Araújo (2007, p.59) assegura que “a mulher arriscava muito ao cometer o adultério. Arriscava, aliás, a vida, porque a própria lei permitia que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero”.
Oribela é resgatada por Francisco e levada de volta para a fazenda, porém, movida pelos ciúmes que sentia do filho, D. Branca de Albuquerque tenta envenenar Oribela, que é salva pelos cuidados e saberes da índia Temericô. Como justificativa para tal ato, D. Branca afirma que o filho que Oribela carregava no ventre tratava-se de um filho de outro homem e não de Francisco, como era de se esperar. Em um ato insano e de dominação passional, o português mata a própria mãe, acreditando se tratar de uma mentira a traição da esposa e estar próxima a chegada de um herdeiro.
As suspeitas de D. Branca de Albuquerque só são confirmadas após o nascimento do filho de Oribela, pois o tom avermelhado dos cabelos do menino ratifica ser filho de Ximeno Dias. Dominado pelo ciúme e pela ira, Francisco de Albuquerque desaparece com a criança, deixando para trás Oribela, que em um ato de medo e desespero ordena que incendeiem a fazenda, numa tentativa de apagar seu passado infeliz vivido naquele lugar: “devia eu esquecer tudo no meu passado, ardendo o fogo na madeira ardia também em minha alma, onde se agasalhavam as relembranças” (MIRANDA, 2003, p.209). O fogo, como símbolo de vida, purificação e regenerescência, encontra na destruição também um aspecto positivo, pois por meio da destruição ele sugere o surgimento de uma nova vida, de uma nova etapa geralmente mais elevada que a primeira, conforme também aponta o desenvolvimento da narrativa do romance (CHEVALIER; GUEERBRANT, 1991).
O suposto resgate do filho das mãos de Francisco feito por Ximeno parece enfim estabelecer para a protagonista o fim de sua busca pela liberdade e pela felicidade não encontrada até então, porém o final aberto do romance pode suscitar o recomeço de sua busca: "Ouvi o choro de meu filho, virei e na porta, atravessado pelos raios de sol, os cabelos em fogo puro, estava Ximeno com uma trouxa de criança no colo [...] Todo o meu mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo, sonhando?” (MIRANDA, 2003, p.2l3).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo olhar da protagonista de Ana Miranda é possível vislumbrar a opressão social e o lugar destinado à mulher no Brasil do século XVI. Seguindo um modo de pensar moldado por uma estrutura marcadamente patriarcal e presa a crenças religiosas que pregavam ser a mulher a responsável pela disseminação do pecado, a sociedade relegava a ela uma posição subalterna em que a obediência e submissão diante do pai e posteriormente do marido imperavam como comportamentos essenciais. Após o casamento, quando o poder sobre a mulher era repassado do pai para o marido, ela deveria se comportar de modo a “estar junto dos maridos sempre que a lealdade e o amor o exigissem; deviam ser humildes para com eles em todos os atos e palavras', devia [...] obedecer-lhes incondicionalmente e deviam-lhes solicitude em tudo o que fosse de interesse deles” (LEAL, 1986, p.770), comprovando o ideal de inferioridade dado à figura feminina diante da masculina, sendo a mulher um elemento somente responsável pelo regozijo do homem e pela reprodução da espécie.
Oribela surge dentro desse contexto como uma personagem que questiona as fronteiras entre o mundo feminino e o masculino, emergindo como uma figura que destoa da construção estereotipada da mulher colonial submissa e passiva. A órfã, assim como outras destemidas mulheres fora e dentro do mundo ficcional, tenta desvencilhar-se do destino que lhe foi preparado, enfrentando os perigos desconhecidos da nova terra na busca não somente de regressar à terra natal, mas também de autoconhecimento e da conquista de uma vida escolhida a partir de seus próprios desejos e não do que socialmente lhe era imposto.
A ficção de Ana Miranda constrói uma personagem que se inscreve como representante do universo feminino que estava sujeita às imposições da religião, da sociedade e dos homens, porém com determinação e rebeldia questiona as imposições sociais engendradas. Desmundo contribui então para alargar a perspectiva desmistificadora proposta pela nova história, desconstruindo a ideia de um modelo feminino marcado pela sujeição e fragilidade para retratar uma casta de mulheres ocultada pela história oficial.
Por fim, o romance de Ana Miranda se insere na perspectiva da metaficção historiográfica pós-moderna, pois se apossa de elementos históricos para questionar as versões e visões oferecidas pela história oficial, demarcando os posicionamentos plurais acerca de aspectos relevantes da vida social no primeiro século do Brasil colonial, e, sobretudo, atribuindo voz a uma mulher, possibilitando que o perfil histórico da figura feminina não mais seja desenhado segundo a ótica masculina, oferecendo um papel de sujeito ativo na construção de narrativas ficcionais e históricas acerca de si e do outro.
AUTORA
*Dinameire Oliveira Carneiro Rios é Graduada em Letras Vernáculas, Especialista em Estudos Literários e Mestra em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Cursa, na Universidade Federal da Bahia, Doutorado em Literatura e Cultura. Tem artigos publicados nas áreas de Literatura e Cinema em revistas nacionais e desenvolve atualmente um projeto de pesquisa relacionado à metaficção historiográfica com financiamento da FAPESB.
**Décio Torres Cruz - Orientador
REFERÊNCIAS
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ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção “Os Pensadores”).
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: II a experiência vivida. 2. ed. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 2009.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliana Lourenço Reis e Gláuci a Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In:______ A escrita da história: novas perspectivas. (Org.). Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992.
CHEVALIER, Jean; GUEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera Costa e Silva et. al. 3 ed.Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
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FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016
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