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“Nós, argonautas da sensibilidade” - Uma leitura de Fernando Pessoa e Merleau-Ponty

Terezinha Petrucia da Nóbrega*




Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver.

Fernando Pessoa, O Livro do desassossego, excerto 124

O QUE É ME É SENSÍVEL

Vida e sensibilidade, temas que nos atravessam e que nos colocam no mundo do devaneio fundamental para nossa potência de ser e de existir. Temas que me atravessam por isso escrevo sobre a sensibilidade e o sensível tal como sinto na poesia de Fernando Pessoa (1888-1935) e na filosofia de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Eles morreram jovens, viveram de forma intensa: uma vida poética e uma vida filosófica. Partiram cedo, mas nos deixaram uma obra seminal que nos anima a pensar, a sonhar, a inventar, a escrever. De modo breve, podemos dizer que ambos ressaltam a nossa presença corporal no mundo e o contato com uma sensorialidade visual, táctil, auditiva, gustativa e cinestésica. Ambos também se referem a relação das sensações com nossa inteligência e com nossas emoções, o que nos permite sentir e perceberas coisas e os outros seres, sendo este gradiente sensível que também constitui a matéria de suas obras poética e filosófica.

Outro aspecto que nuanço ao escrever este ensaio diz respeito as referências literárias na obra de Merleau-Ponty que são diversas e constantes, tais como: Marcel Proust, Paul Claudel, Paul Valéry, Claude Simon, Antoine Exupéry. Poderíamos aqui escrever sobre essa presença da literatura em seu pensamento que lhe permite articular sentidos novos para sua filosofia como podemos perceber, por exemplo, no resumo e notas do curso pronunciados no Collège de France, no ano de 1953, intitulado “Pesquisas sobre o uso literário da linguagem”, recentemente publicado sob os cuidados de Benedetta Zaccarello e Emmanuel de Saint-Aubert (Merleau-Ponty, 2013).

Por sua vez, Fernando Pessoa leu Nietzsche como nos mostra Cláudia Franco Souza em seu artigo “Friedrich Nietzsche & Alberto Caeiro: paganismo e linguagem” (Souza, 2015). Mas, seguimos por outro caminho. Nesse ensaio, interesso-me não pela exegese das obras do poeta e do filósofo, nem pelos aspectos biográficos, como o fez Cavalcanti Filho (2012). Anima-me o caminho lento e prazeroso de suas leituras nas quais deixo-me guiar pela sensibilidade, pelo ritmo das palavras, frases, fazendo-as minhas por meio das citações. Ao debruçar-me sobre a leitura de Fernando Pessoa, projeto sentimentos, evoco memórias, paixões. Crio imagens, apreendo sentidos novos, compreendo-me argonauta de sentidos corpóreos, estéticos e existenciais. Em uma espécie de colagem vou compondo esse texto, com minhas leituras de Fernando e de seus heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e, particularmente, a leitura de Bernardo Soares e seu “livro do desassossego”, que começou a ser escrito entre 1913 e 1914. Tenho a permissão do poeta, que me diz: “ Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo” (Pessoa, 2006, p. 233, excerto 229).

Por sua vez, o filósofo me apoia e me fornece outros materiais para meu exercício de criação e de escrita:

Os escritores não têm a impressão de criar, de inventar, porque eles estão, com efeito, em vias de decifrar os hieróglifos de sua paisagem. Mas eles criam porque 1) essas verdades mudas tomam sua paisagem, ninguém as faria falar em seu lugar; 2) uma vez convertidas em coisas ditas, elas tomam lugar, senão como quadro não visível, ao menos no Mundo que é, como o visível, chamado a falar – Outros aprendem lendo-as para dizê-las a outros (MERLEAU-PONTY, 1996, p.203).

A epígrafe apresentada neste ensaio em referências aos argonautas da sensibilidade de Pessoa mais essa citação de Merleau-Ponty sobre a urgência da criação me impulsionam a escrever, pensar, sentir.  Com esse ensaio desejo comunicar essa experiência que me sensibiliza, que me atravessa e que me possui. “Lendo por alto e libertando-me da mão que me conduz” – como diz o poeta – busco as palavras, as frases e os sentidos evocados que, lentamente, tornam-se minha própria paisagem: “ninguém as faria falar em seu lugar”, diz Merleau-Ponty. Assim, escrevo. Acompanhada de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Paul Valéry, Baudelaire, Rimbaud, Cecília Meireles, Augusto dos Anjos, Zila Mamede, Merleau-Ponty, Nietzsche e tantos outros escritores, poetas, filósofos, artistas da palavra, vivo uma experiência de sentir que abre minha imaginação e sua faculdade de criar mundos permeados de invenção[1].

Com eles e com elas, escritores e escritoras, aprendo um estilo e, ao longo dos anos, aproprio-me de suas inteligências para compor minha própria escrita, meu pensamento e, certamente, minha sensibilidade, o sensível em mim, aquilo que me habita e aquilo que me ultrapassa nas sensações, no corpo, na linguagem, na poética, na filosofia e na vida.

Nestas considerações está por ventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente machucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos. Assim sou. Quando quero pensar vejo(Pessoa, o livro do desassossego, 2006, p. 89, excerto 58).

Sim, nestas considerações germina uma filosofia performativa que acolhe o sensível, como o fez Merleau-Ponty, desde suas primeiras obras, seu fascínio pela pintura, cinema, literatura, cujos ecos não são tão somente exemplos ou ilustrações de sua filosofia, mas uma nova maneira de pensar que acolhe as ideias da arte, da poesia e das experiências vividas. Uma filosofia para a qual a estesiologia, ciência dos sentidos, é o sentir mesmo como delineado no último curso sobre a Natureza (Merleau-Ponty, 1995), presente desde os primeiros trabalhos do filósofo.Ao nos demorarmos na obra de Merleau-Ponty, em múltiplas leituras, percebemos que os temas da corporeidade e da sensibilidade são uma constante, sendo retomados e ampliados em seu percurso filosófico. Assim, as obras publicadas por ele, suas obras póstumas e os textos inéditos constituem um laboratório do pensamento, um ateliê de criação no qual podemos exercitar nossa ação imaginante, nossa sensibilidade, nosso pensamento para articular arte, filosofia, ciência, literatura, como ele o fez em sua fecunda carreira filosófica.

No curso sobre o uso literário da linguagem, aqui já mencionado, Merleau-Ponty expõe sua compreensão de literatura como sendo ao mesmo tempo uma empresa intelectual e existencial, bem como um laboratório para os questionamentos permanentes da linguagem e os horizontes da cultura e da história. De acordo com Benedetta Zaccarello, no prefácio que fez para a publicação das notas desse curso, a pesquisa de Merleau-Ponty sobre a linguagem insere-se no contexto do debate sobre a natureza e a finalidade das práticas filosóficas após a guerra, momento em que a cultura francesa em geral assiste a uma refundação de seus instrumentos críticos frente à história. Nesse sentido, ele busca o gesto da escritura em sua profundidade gnosiológica, ontológica e existencial; bem como, uma provável resposta a Sartre a respeito do engajamento político a partir da publicação do livro O que é a literatura?

Na Prosa do mundo, a literatura é ainda o lugar de um encontro direto, assim “no momento em que leio Flaubert, sou Flaubert e minha experiência encontra o universo de Madame Bovary” (Zaccarello, 2013, p. 16). Essa posição se modifica ao longo desse curso de 1953 e a literatura torna-se “um espaço de risco e de dúvida e o lugar de uma relação indireta do autor ao leitor e vice-versa” (Zaccarello, 2013, p. 17). No entanto, a meu ver, a hesitação e sobretudo a capacidade inventiva da linguagem, encontra-se também na Prosa do Mundo. Para Merleau-Ponty a literatura é capaz de reinvestir o vivido do sujeito pensante em sua relação com a linguagem, sobretudo a partir do século XX quando a literatura revela uma subjetividade nova, com destaque para a relação a si mesmo e ao outro.

Destaca-se que a compreensão de uma linguagem “conquistadora” coloca em avanço a capacidade que tem a palavra para renegociar constantemente os horizontes de sentido, notadamente na poesia como lemos na análise que Merleau-Ponty fez da obra de Paul Valéry, renegado pelos surrealistas e acusado de ser um poeta de estado.  Para Zaccarello (2013), a literatura se torna uma espécie de filosofia em primeira pessoa, envolvendo a relação entre a pessoa do autor e o que ele diz.  Talvez Merleau-Ponty tenha escolhido Valéry, em que pese sua envergadura literária e sua presença constante em suas obras, por uma espécie de projeção considerando-se as divergências sobretudo com Sartre e sua recente posição no Collège de France.  De todo modo, da leitura dessas notas apreendemos que a literatura contribui em seu modo operante ao propósito de Merleau-Ponty de compreender a filosofia como interrogação do presente, como bem anunciado em sua lição inaugural e percorrido no conjunto de sua obra publicada ou inédita (Merleau-Ponty, 1952, p. 52).

No resumo de Curso sobre o uso literário da linguagem Merleau-Ponty destaca os paradoxos encontrados na obra literária tais como o silêncio expressivo ou as relações corpo e alma como sendo incompreensíveis, pois é “incompreensível que o corpo possa ser ao mesmo tempo essa massa inerte que marca nosso lugar durante o sono e o instrumento ágil que, a serviço do pintor, por exemplo, faz melhor que a consciência o que ela gostaria de fazer” (Merleau-Ponty, 1968, p. 24).

 Essa fórmula é retomada na abertura do ensaio O Olho e o espírito:  “O pintor aporta seu corpo, diz Valéry, E, com efeito, não se vê como um Espírito poderia pintar. É empregando seu corpo no mundo que o pintor transforma o mundo em pintura” (Merleau-Ponty, 1961, p. 16). Essa operação é de natureza sensível, amalgamada à corporeidade, este arranjo sutil do corpo e de suas operações motoras. Merleau-Ponty afirma que a ciência manipula as coisas, constrói modelos, opera sobre índices ou variáveis sobre os fenômenos, mas renuncia a habitá-las. Merleau-Ponty quer habitar com sua filosofia o mundo humano, o mundo da natureza, o mundo das coisas. Para ele a arte, notadamente a pintura, possui essa capacidade de habitar o mundo através do olhar.

O Olho e o espírito é um ensaio dedicado à pintura. É na Prosa do mundo, obra inacabada e voluntariamente abandonada talvez em prol de uma ontologia da carne[2], que encontramos a sua aproximação mais direta com a linguagem e com a literatura. Nesse contexto, a linguagem é compreendida como designação de algo ou de alguma coisa: uma rosa; chove; o tempo está bom; o homem é mortal.  Nesse contexto, exprimir é substituir uma percepção ou uma ideia por um sinal conveniente que a anuncie, evoque-a ou abrigue-a. Mas, como a linguagem poderia exprimir algo novo uma vez que é inteiramente definida pela língua, pelo vocabulário e pelas relações de sintaxe encontradas na língua em uso? Pergunta Merleau-Ponty em sua Prosa.

 Para o filósofo, a língua dispõe de certo número de signos fundamentais, arbitrariamente ligados a significações chaves. Assim, ela é capaz de compor toda significação nova a partir daquelas que já existem, sendo capaz de exprimir porque reconduz todas as nossas experiências ao sistema de correspondências iniciais entre tal signo e tal significação da qual nós aprendemos a língua. Parece tratar-se para Merleau-Ponty de um jogo entre as palavras, pois “não há nenhum pensamento nas palavras e nenhuma palavra é o puro pensamento sobre qualquer coisa” (Merleau-Ponty, 1969, p. 8).  De fato, “uma língua é esse aparelho fabuloso que permite exprimir um número indefinido de pensamentos ou de coisas com um número finito de signos, porque eles foram escolhidos de maneira a compor exatamente tudo o que queremos dizer de novo e comunicar-lhe a evidência das primeiras designações das coisas” (Merleau-Ponty, 1969, p.8).

A língua contém o germe de toda significação possível. Como se sempre houvesse uma palavra, uma significação que nomeasse nossas experiências e nossos pensamentos. Na Prosa do mundo, Merleau-Ponty cita o exemplo das crianças estudadas por Piaget para quem o sol porta em seu centro seu nome. Nossa língua encontra no fundo das coisas uma palavra que as faz existir. Segundo o filósofo essas convicções sobre a linguagem não pertencem ao senso-comum. Elas estão presentes nas ciências exatas, com a questão do algoritmo, mas não na linguística. O algoritmo é considerado como a forma da linguagem adulta, uma forma sem erros que remete a signos escolhidos e significações definidas. “Ele fixa um certo número de relações transparentes, ele institui, para representá-los símbolos que por eles mesmos nada dizem, que jamais dirão mais que o que foi conveniente dizer” (Merleau-Ponty, 1969, p.9).

O algoritmo se propõe a uma linguagem rigorosa capaz de controlar todas as operações e o sistema de relações possíveis. Desse modo, o signo permanece a simples abreviação de um pensamento que poderia a cada momento explicar-se e se justificar inteiramente. A única virtude da expressão seria então substituir alusões confusas que cada um de nossos pensamentos por atos de significação dos quais seríamos verdadeiramente responsáveis, porque conhecemos o conteúdo exato que pode ser recuperado pelas vias do pensamento e pelo valor expressivo do algoritmo. “O algoritmo, projeto de uma língua universal, é a revolta contra a linguagem dada” (Merleau-Ponty, 1969, p.10).

Mas, a linguagem não se resume ao algoritmo. Na literatura, o escritor desvia os signos de seu sentido ordinário, realiza uma torção secreta nas palavras. Partindo dessa compreensão o filósofo irá esboçar sua teoria da expressão, considerando sobretudo o fenômeno literário.  Desse modo distingue a ciência da expressão e a experiência da expressão, concentrando-se nessa última, em particular, na operação expressiva que torna possível considerar a pintura sobre o fundo da linguagem e a linguagem sobre o fundo da pintura. Tal comparação é possível uma vez que o filósofo irá trabalhar com a noção de expressão criadora da arte moderna. A arte e a literatura aparecem como o jogo através de nós de uma arte e de uma palavra original onde tudo está de início contido. Faz-se necessário examinar a concepção de representação pura e racionalismo da arte e da linguagem e ultrapassá-los (Merleau-Ponty, 1969).

Trata-se, pois, de restituir a sensibilidade como processo de expressão. Essa atitude é próxima do “desassossego” de Fernando Pessoa, como podemos notar quando escreve sobre a ânsia de compreender. Compreender envolve a sensibilidade, o elo entre vontade e emoção, entre a vida material e imaterial, os gestos e o pensamento, como nos ensina o poeta. “Cansamo-nos de tudo, exceto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir. Cansamos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão” (Pessoa, 2006, p. 24, excerto 239).

O escritor ao desviar os signos já estabelecidos em uma língua cria outros horizontes sensíveis, instaurando assim o campo estético da obra de arte. Sim a sensibilidade, o sentir mesmo anima nossa vida, nos impulsiona a nos engajar e faz com o que os objetos, as pessoas, as situações possam ter um sentido afetivo para nós. Por isso mesmo uma vida não se vive sem sentir, sem sentido ou “ no desalinho triste das minhas emoções confusas” (Pessoa, 2006, p. 77, excerto 46).

Assim, convocando as sensações o poeta e o filósofo compões suas obras: obras de linguagem, obras do corpo cuja leitura nos conduz ao êxtase do pensamento. O excerto seguinte do livro do desassossego, entre outros evidentemente, exprime essa filosofia estesiológica: “Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas” (Pessoa, 2006, p. 63, excerto 31). Ambos também meditam sobre sensações e o seu lugar na poesia e na filosofia: “Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? (Pessoa, 2006, p. 113,excerto 84).

Em seu projeto para a candidatura ao Collège de France, escrito em 1951 epublicado em Parcours Deux (Merleau-Ponty, 2000), nosso filósofo também medita sobre a consciência e sua longa tradição filosófica, da qual ele também é herdeiro e cujos traços marcam a sua “Fenomenologia da percepção”. Na montagem que criamos, poderíamos ler as reflexões de ambos a respeito das relações entre o pensamento e as sensações, o corpo e a consciência através de um movimento de citaçõesque compõem um diálogo, uma conversa, uma prosa, possível em um espaço tempo sincrônico que a literatura nos permite. Vejamos, sintamos:

- Fernando Pessoa:


Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência. A vida das emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente do que ela, o regime da consciência, em que passei a viver o que sentia, tornava-se mais quotidiana, mais epidérmica, mais titilante a maneira como sentia (Pessoa, 2006, p. 123, excerto 93)

-Merleau-Ponty:


No início, o filósofo que reflete sobre a percepção se retira do corpo que habita e mesmo das coisas as quais o corpo se dirige no exercício da vida, faz-se sujeito contemplativo. Correlativamente, as coisas percebidas se distanciam de nós, não sendo definidas por certo número de características e por leis de sucessão e de coexistência entre elas. O corpo próprio não é mais que um desses objetos, elevado tardiamente à dignidade do saber científico, mas como elas [as coisas], está destinado a uma explicação por ligação de função à variável. Em face de uma consciência filosófica em primeira pessoa, do sujeito conhecedor ou transcendental, que é só sujeito, abre-se um universo em terceira pessoa que são apenas objetos. Essa atitude e essa filosofia foram necessárias a princípio para dar ao conhecimento do mundo e à reflexão do espírito seu objeto e sua audácia. À medida que nosso conhecimento do homem se desenvolveu, fez entrever outra ligação entre o homem que percebe e seu corpo e assim ter uma redescoberta do mundo percebido e exigir um novo exame da nossa noção de sujeito e de espírito (Merleau-Ponty, 2000, p. 17;18)

- O poeta:

Crie-me eco e abismo, pensando. Multiplique-me aprofundando-me. O mais pequeno episódio – uma alteração saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro com os passos de quem a diz juntos aos de quem deve escutar, o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com um arco das casas aglomeradas ao luar – todas essas coisas, que me não pertencem, prendem-me a meditação sensível com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada impressão indefinida (Pessoa, 2006, p. 123, 124, excerto 93).

“A vida das sensações mudou-se para as salas do pensamento”, diz o poeta. Mas, a frase não figura um aspecto dualista, pois emoção e pensamento caminham lado a lado na poesia de Pessoa e configuram o quiasma na filosofia de Merleau-Ponty, como lemos nos excertos citados anteriormente.No início, o filósofo que reflete sobre a percepção se retira do corpo que habita e mesmo das coisas as quais o corpo se dirige no exercício da vida, faz-se sujeito contemplativo. Eles se retiram das sensações e do corpo para pensar, escrever. Mas, essa retirada logo se transforma em abismo, conduzindo-lhes a outras vias nas quais o corpo  e as sensações são a matéria mesma de sua expressão.

Em um outro lugar, em um texto inédito, também publicado em Parcours Deux, o filósofo reafirma a primazia do corpo e do esquema corporal na linguagem e expressão:

É por meio dessa situação do nosso corpo que temos acesso ao espaço exterior e aos movimentos possíveis, projeto motor (esquema corporal). Não nos movemos como se move um objeto, temos um acesso direto ao espaço. Cada sujeito encarnado é como um registro aberto em que não sabemos o que se inscreverá ou como uma nova linguagem a qual não sabemos que obras produzirá, mas que, uma vez aberto, não seria possível dizer pouco ou muito, de ter uma história ou um sentido. A produção mesma da liberdade da vida humana, longe de negar nossa situação, a utiliza e a transforma em meio de expressão (Merleau-Ponty, 2000, p. 41).

Essa descrição das sensações vividas compõem uma meditação sensível que alimenta a obra poética de Fernando Pessoa e a filosofia de Maurice Merleau-Ponty. Não se trata apenas de um aspecto da redução fenomenológica, mas a experiência narrativa em primeira pessoa que expressa nossa relação com o ser: ser da poesia ou o ser ontológico da filosofia, o ser bruto, como denomina Merleau-Ponty, ser da indivisão e da criação.

O SENSÍVEL EM NÓS: UMA TEMPORALIDADE DO CORPO E DAS SENSAÇÕES

Há em nós uma temporalidade das sensações, da sensibilidade que vivemos no presente. Na segunda parte deste ensaio, exponho outros elementos dessa meditação sensível ao considerar a temporalidade do corpo e das sensações que guarda, como diz o poeta, “o desassossego” de todos os tempos. Continuemos, em um passeio à beira-mar com Fernando Pessoa:

Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar. Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse – de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta – tudo isso, no meu passeio `beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam, magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo (Pessoa, 2006, p. 124; 125, excerto 95).

Na leitura desse excerto, usufruindo da companhia do poeta, vivemos essa temporalidade que nos atravessa, que mobiliza nossa corporeidade, nossas afecções e nossos pensamentos por meio de imagens que fazem vibrar nossa sensibilidade. Sim, trata-se de um encontro, uma projeção que também nos conduz a uma interrogação sobre si mesmo e sobre a experiência vivida que é adensada pelas relações intersubjetivas e que abre vias de significações possíveis no presente vivido.

O poeta confirma essa temporalidade em nós posto que “vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade do nada. Não tenho esperanças nem saudades” (Pessoa, 2006, p. 29, excerto 100).São temporalidades que se encaixam, presenças temporais e temporalizadas que circunscrevem a prosa do cotidiano, que condicionam a busca por uma maneira de ser e um estilo alimentado pelas sensações e pela inteligência que delas se desdobra: “... a hiperacuidade não sei das sensações, se só da expressão delas, ou se, mais propriamente, da inteligência que está entre umas e outra e forma do propósito de exprimir a emoção fictícia que existe só para ser expressa. (Talvez não seja mais em mim que a máquina de revelar quem sou) ” (Pessoa, 2006, p. 155, excerto 137).

Essa inteligência das sensações encontrada na obra de Fernando Pessoa, mas também na obra de Paul Valéry - poeta que frequenta a obra de Merleau-Ponty de forma intensa-, é um elemento marcante de uma filosofia expressiva e performativa. Expressão no sentido de criação, como ressalta Revel (2015) ao afirmar que em Merleau-Ponty o conceito de expressão é um pensamento de invenção, de inauguração, de criação. Seu interesse pela arte, notadamente pela pintura e pela literatura é um modo de pensar sobre as tensões do mundo, da sociedade, da política, da filosofia e sua linguagem.

Assim, a noção expressão é também uma prosa do mundo e de suas tensões individuais e coletivas que se inscrevem diretamente no corpo estesiológico (Nóbrega, 2015). Nessa montagem de tempos, obras e experiências, vejo na poesia de Fernando Pessoa um ato coreográfico e uma elaboração performativa de sentidos elaborados no espaço e tempo de uma fuga. Então, em uma ação imaginante e cinestésica, “ergo-me da cadeira como um esforço monstruoso, mas tenho a impressão de que levo a cadeira comigo, e que é mais pesada, porque é a cadeira do subjetivismo” (Pessoa, 2006, p. 177,excerto 153).

Buscamos compor uma dança ou quem sabe uma canção, uma música a partir de imagens, sentidos, memórias, sentimentos, de fragmentos de nossas vidas. A obra de arte nos transforma ou pode nos transformar à medida que nos deixamos atravessar por seus gradientes sensíveis os quais elaboram novas percepções e transfiguram o esquema corporal habitual. Assim, podemos dançar, brincar com a gravidade do corpo, cartografar o espaço, contar o tempo, coreografar os devaneios, como no passeio à beira-mar que fizemos ainda há pouco na companhia do poeta ou ainda nesse movimento de se “erguer da cadeira”, da cadeira do subjetivismo e do peso das tradições da consciência e dos determinismos de toda ordem, criando novas coreografias, novos arranjos existenciais, outras partilhas do espaço e do tempo.  Erguer-se da cadeira, escutar, deixar a música habitar o corpo e criar suas danças, liberando-se do peso da gravidade, da existência, pelo menos no tempo de duração desse poema, dessa sonoridade, de uma canção.

Merleau-Ponty também buscava liberar-se do peso das filosofias do sujeito e da consciência, inaugurada com as meditações de Descartes, reforçadas pelo cartesianismo científico e filosófico, que também “assombram” a literatura de Fernando Pessoa: “Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha. O meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida” (Pessoa, 2006, p. 171,excerto 154).  Sou uma sensação, ai está o sentido da estesiologia, do encontro entre poesia e filosofia no encontro de mundos não necessariamente opostos.

O poeta cria mundos imaginários nos quais o subjetivismo é relativizado pelo jogo entre o sonho e a realidade na composição do espetáculo de nossas vidas e no espetáculo do mundo. O excerto que segue nos conduz a esse movimento onírico que anima nossa ação imaginante, nossa sensibilidade e nossa inteligência estesiológica. 

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogo de luzes brandas e músicas invisíveis” (Pessoa, 2006, p. 227, excerto 221)

Sonhar, construir-se no melhor espetáculo que pudermos. Nesse movimento, as sensações e a sensibilidade tornam-se a animação de nossas existências, os materiais para a composição de nossas obras de pensamento e de linguagem como a filosofia, a prosa e a poesia, a dança.  Nessa ontologia, a obra de arte não é apenas uma metáfora da existência, mas um gradiente sensível que nos impulsiona na criação de novos mundos, que configura um estilo e que redefine nossa vida. Aqui estamos longe de um processo governado pela “consciência”, afastado das emoções, do pathos, da empatia[3]. Nas notas de Curso sobre a ontologia, último curso proferido no Collège de France por Merleau-Ponty, em 1961, pouco antes de sua morte, o filósofo comenta a obra “O tempo reencontrado” de Proust. Assim, temos que: “se não existisse a arte, permaneceria o eterno segredo de cada um. Pela arte unicamente, podemos sair de nós, saber o que vê um outro nesse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam desconhecidas” (Merleau-Ponty, 1996, p. 197).

Já na tese de 1945, nosso filósofo afirmava que o mundo não está completamente constituído, sendo o campo da experiência e o esboço dos projetos existenciais e históricos. O nascimento de uma criança, por exemplo, é como um registro aberto, uma nova história breve ou longa tem seu começo. Merleau-Ponty insere então a questão da temporalidade e discute as relações entre tempo e subjetividade. Em sua “Fenomenologia da Percepção”, desconstrói concepções metafóricas do tempo como a imagem do rio que escoa, cara a Bergson, posto que esta é uma ideia confusa haja vista não haver um observador capaz de descolado do espaço-tempo percorrer esse fluxo. Nesse sentido, o tempo supõe uma visão sobre o tempo, nasce da relação com as coisas, não é um receptáculo de engramas. O tempo não é uma linha, uma sequência, mas uma os tempos são encaixados no presente, ideia que será anos mais tarde formulada e aprofundada a partir da literatura. Mas, creio que a leitura da tese já nos indica o sentido da temporalidade em sua filosofia.

Inspirado no tempo histórico de Heidegger, mas também em Husserl, Merleau-Ponty dirá ainda que o tempo é presença, logos estético, horizonte social e fundamento de nossa liberdade. Assim, o trabalho da filosofia é uma expressão criadora de sentidos e obra de linguagem. Vai retomar essa noção de temporalidade nos cursos sobre a ontologia, em 1961. Com os escritores, Proust, Claudel, Merleau-Ponty constrói uma outra experiência do tempo: o tempo como presença, coexistência carnal e co-duração. O filósofo cita uma passagem da Rota de Flandres, de Claude Simon para se referir a essa experiência da ordem do “tempo mesmo”:

O silêncio ao segundo grau dos tamancos na noite – Esses milhares de tamancos: esses barulhos não são alguma coisa no tempo, figura mais fundo, gradiente do tempo – alguma coisa de majestoso, monumental, absolutamente grande, ultra-coisa. “ O caminho mesmo do tempo”, “invisível, imaterial sem começo nem fim localizáveis”. Esse não é um conteúdo, é o tempo mesmo, como presença. Esse não é mais algo no espaço (em razão de seu conjunto, os barulhos dos tamancos fazem a totalidade) e não alguma coisa coletiva um grande móvel, o regimento, deslocando-se no espaço: os cavaleiros, trotando, progredir sem avançar.Esse barulho como a chuva, como a noite é “englobante”. O tempo é um “elemento”, “mordiscando... milhares de insetos roendo o mundo”.  O tempo torna-se o que cruza e faz fracamente movimentar o mundo. Amplificação através do passado e através da natureza, insetos, crustáceos sob a massa gelada. Presente, passado? Tempo elemento(Merleau-Ponty, 1996, p. 206, 207).

O tempo é um elemento sensível, magma da temporalidade que por sua vez constitui o traço mundano, o elemento e o gradiente das histórias individuais e coletivas. Nesse curso sobre a ontologia, o último proferido no Collège de France, no ano de 1961, Merleau-Ponty, aproxima-se cada vez mais dos escritores para compreender essa experiência do tempo e formular sua ideia de temporalidade e do tempo do mundo.

O tempo é sem perspectiva italiana[4] - ou seja, diz Claude Simon, que nossas lembranças mais violentas- querem dize algo mais: que, como caminhos percorridos comportam árvores que estão escondidas na perspectiva do ponto de chegada, os presentes encadeados no tempo não são conciliáveis em uma visão única, do tipo que se abrindo um encontramos atrás dele um outro presente que esclareceria o primeiro – Presente- encaixado, mas de mais o passado que estaria incluso o descentra, é um outro mundo. A simultaneidade do tempo é essa: a coexistência nele de presentes incompossíveis. O tempo[5] não deve ser pensado a parte do espaço, sem o qual não haveria presente. Ele é uma propriedade desse espaço e não somente da “consciência” – Tempo monumental do relógio, tempo da noite ferroviária, dos vagões, tempo do mundo que é seu imenso relógio, uma hora que não é apenas localização do tempo, mas limite do mesmo tempo (L’herbe, p. 91)[6]. O espaço pode ser símbolo do tempo apenas porque inicialmente ele participa da gênese do tempo (Merleau-Ponty, 1996, p. 207, 208).

Portanto, o tempo não é um pensamento ou uma consciência do tempo, mas uma experiência da temporalidade do corpo que nos constitui, bem como da temporalidade do corpo do mundo. A partir da leitura de Le Vent, de Claude Simon, Merleau-Ponty considera o presente decifrado pela sensação, esclarecendo-nos a respeito da temporalidade.

No total, não tempo serial – não somente espacializado – mas não mais de série onde a existência de um termo anula e substitui a existência dos precedentes de maneira que um único termo existiria por vez.O que há, não é a série, mas encaixe: o presente (sempre sensível e sempre espacial) sustenta em sua profundidade outros presentes (o que passou nesse mesmo visível diante desse mesmo vidente). Comumente, não o encontramos, ele parece se bastar, completo, os outros presentes têm apenas uma realidade geral (encaixado na memória). Algumas vezes, pela sensibilidade se produz decifração, abismo, memória verdadeira, mas é ainda dimensão do sensível: é apenas esse odor, nessa paisagem que palpita o passado individual. Passado e presente não são montados em série. Aliás, o presente, olhado atentamente, não é nem ponto nem segmento do tempo: a unidade do tempo é sempre um ciclo (por exemplo: o dia, ou o curso de 6 horas – ¼) (Merleau-Ponty, 1996, p. 208).

Há ainda uma generalidade do tempo, o conceito de tempo (que não é somente irreversibilidade, mas também eterno retorno: é outro somente porque é o mesmo) que é vivido até no presente e que sustenta esse encaixe no interior do presente em curso.No Curso sobre a “Fenomenologia e as ciências humanas”, Merleau-Ponty discutiu a noção de tempo histórico, como sendo fundamental para o pensamento filosófico[7]. Mas, progressivamente, irá se dedicar a essa temporalidade ontológica, a uma ontologia do presente, posteriormente trabalhada por Michel Foucault no que concerne as instituições sociais[8].  Sobre esse tempo vivido como presente, temos que:

 Podemos montar em série de presentes que são, eles mesmos, séries de um outro grau e nos quais cada um aliás porta, altera e sustenta todos os precedentes. Então, não existe linha ou a série do tempo, mas um nó transcendental – Visível ou Mundo- um tipo de eternidade do visível que, como um recipiente “perde” secretamente, e assim em avanço e em atraso sobre o presente, jamais a tempo (Merleau-Ponty, 1996, 209).

Merleau-Ponty investe na temporalidade considerando também o tempo kairós. Trata-se de uma noção de temporalidade que distende os fios da historicidade, colocando-nos no tempo presente com toda sua angústia, posto que tempo de incerteza, de hesitação, de invenção, de criação e expressão. Uma potência, como podemos ler na entrevista que o filósofo concedeu em 1958:

Tudo se passa como se eles [os gregos] tivessem recalcado em seus mitos suas vertigens e seu pessimismo: Kronos devora seus filhos; há ao centro do mundo uma potência que dá somente o ser para tirá-lo. O tempo dos filósofos é antes uma potência que destrói o ser somente para recriá-lo, uma cintilação do ser, uma força ininterrupta que impulsiona o ser a ser e imita melhor o imutável. Salvo talvez algumas passagens do Parmênides, onde o instante rasga o tempo, eles não concebem o tempo como início: como os ciclos da natureza, ele antes recria o que não criou, e seu “arrastamento” é um “retorno” (MERLEAU-PONTY, 2000).

O tempo Cronos nos devora em sua passagem cotidiana. Nesse ritmo prosaico, por vezes, banal de nossas vidas, podemos encontrar a poética da criação, reativando nossas potências, encontrando novas rotas, passagens, caminhos. Os gregos, como sabemos também conceberam o tempo Kairós, mais próximo a esse instante que rasga o tempo e o recria. Seguramente esse tempo é o tempo da literatura, da poesia, o tempo da expressão. Merleau-Ponty considera o trabalho do escritor e seu processo de expressão como sendo da ordem da sensorialidade e conforme um estilo que faz ver com o poder das palavras escritas e com a capacidade de colocar em suspensão no tempo de um fragmento de vida expresso em um sorriso, um gesto, uma palavra, uma cor, um perfume.  Assim, o escritor, a obra literária modifica a paisagem da cultura e atinge o leitor em sua capacidade de apreender a linguagem como imanência do novo. Vejamos como o filósofo se expressa nessa longa citação, cuja leitura nos permite compreender a relação entre a arte, a sensorialidade e o trabalho de criação de uma obra em seu poder de colocar em suspensão um fragmento do tempo e da realidade.

O “artista” entra na região “de esforço e de luta íntima”, ele descobre uma “mensagem” que não se dirige a nossa natureza combativa; mensagem mais reticente, “menos precisa”, “mais profunda”; e fala ele mesmo não para a “sabedoria”, não para qualidades “adquiridas”, mas ao mais “durável” em todos os homens; fala conforme e para nossa capacidade de “alegria”, “admiração”, de “mistério”, nossa solidariedade com a criação e com toda a solidão (por exemplo, existências obscuras de pessoas “simples, ingênuas e sem voz”), que dá valor a todos os lugares da terra, “lugar de esplendor” ou “esquina obscura”; é “temperamento” falando à “temperamento”, então por impressão dos “sentidos”, pois o temperamento, seja individual ou coletivo, não é submisso à persuasão” (VIII); conforme artes; essa sensorialidade obtida pelo trabalho do estilo...; “faz ver”, “com o único poder das palavras escritas” (IX); o que não satisfaz a “sabedoria”, não persuade, não edifica,  não diverte, não melhora. Mas na visão, tudo isso é dado e mais: a “visão da verdade” (IX).Mostrar “um fragmento de vida”, mantê-lo contra o tempo, mostrar sua “vibração”, sua cor, sua “forma” e assim, a “substância... de sua verdade...”, o “segredo evocador, a força e a paixão... no coração de cada instante persuasivo” (X).A arte para por um instante os homens do trabalho de sua vida e nesse instante toda a verdade da vida se encontra: “um momento de visão, um suspiro, um sorriso e o retorno a um eterno repouso” (Merleau-Ponty, 1996, p. 216, 217)

Na leitura dessas notas percebemos que a arte, o trabalho do artista transforma a vida cotidiana, dando-lhes uma nova dinâmica, um novo entendimento da realidade, uma nova visão. A arte, a literatura com sua produção de imagens nos “faz ver”: fragmentos de verdades errantes, desviantes, temporárias, anacrônicas, empáticas. Faz-se necessário compreender a natureza do sensível, esse momento da visão, de um sorriso, de uma pausa, do silêncio segundo a fórmula do pathos para a qual “ver não é pensar” como afirma Merleau-Ponty em seu curso sobre a ontologia.  O ato de ver engaja nossa corporeidade e anima nossa capacidade de simbolizar, de imaginar, de evocar sentidos quando lemos uma obra ou quando apreciamos um quadro, um filme, uma coreografia.  Nesse processo o visível e o invisível se entrelaçam, posto que é na diferença entre um e outro que produz a deformação coerente de uma obra e de sua produção de sentidos para o autor e para o leitor ou o espectador.

Para Merleau-Ponty, há uma fecundidade da arte e de seu trabalho expressivo no desvio da linguagem e na produção de sentidos:

Uma palavra suscita uma outra palavra. Por quê? Em virtude do poder de metáfora continuada. Toda literatura é transplante, cirurgia. As “ideias” (mesmo aquelas da “inteligência”) crescem sempre dos meios, lateralmente (mesmo em filosofia). Por definição (dialeticamente), uma ideia não é jamais o que ela é.Palavra é estruturação – Palavra indireta e não calculada sobre significações. Daí a obra literária não é adição ao que existe de um excesso positivo (progresso). Mas, antes, ela faz com que nada possa ser como antes. A via do futuro não está traçada, mas algumas vias são cortadas ou desclassificadas (Merleau-Ponty, 1996, p. 219, 220).

Que vias foram cortadas da história do pensamento, da literatura, da filosofia? O corpo, a sensibilidade, as emoções? “A via do futuro não está traçada”, ela encontra-se aberta. “A vida das sensações mudou-se para as salas do pensamento”. Essas afirmações do filósofo e do poeta se prolongam em uma esfera para além de um julgamento analítico ou estético que recusa o corpo, a empatia, a sensibilidade como elementos inteligíveis. Um mestre nesse tema da sensibilidade e de sua inteligibilidade, de sua vibração empática é sem dúvida Alberto Caeiro em particular no conjunto de poemas “O guardador de rebanhos” obra que expressa a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty sobre a sensibilidade, já trabalhada por Novaes em “O olhar”.

Por sua vez, “o livro do desassossego” acrescenta a essa fenomenologia dos sentidos e da sensorialidade uma ontologia indireta conforme a fórmula de Merleau-Ponty nas notas de curso de 1961 em sua inquietude, em suas questões sobre o ser da linguagem, da literatura, das articulações entre a obra poética e a obra filosófica como obras que articulam a inteligência das sensações e da corporeidade. Encontro nessas formulações poéticas uma filosofia performativa na qual o corpo e sua estesiologia encontra-se em um plano de imanência, articulando imaginação, invenção, criação de temporalidades simbólicas, anacrônicas, oníricas que deslocam a historicidade do pensamento e a linguagem, desviam signos e criam sentidos novos para autores e leitores.

Em um ensaio publicado em Sens et non-sens, intitulado “O romance e a metafísica”, Merleau-Ponty (1996), afirma:

A obra de um grande romancista sempre contém duas ou três ideias filosóficas. Seja por exemplo o eu e a liberdade em Stendhal, em Balzac o mistério da história como aparência de um sentido no acaso dos acontecimentos, em Proust o envolvimento do passado no presente e a presença do tempo perdido. A função do romancista não é tematizar essas ideias, mas de fazê-las existir diante de nós à maneira das coisas. Não é o papel de Stendhal discorrer sobre a subjetividade, é suficiente torná-la presente[9].

Essa mesma ênfase na corporeidade da palavra e do gesto encontra-se no cinema, nuançada pela experiência do movimento como Merleau-Ponty aborda nesse mesmo volume, no ensaio “O cinema e a nova Psicologia”.  Enfim, essas referências indicam a virada ontológica de Merleau-Ponty ao privilegiar a pintura, o cinema e a literatura como produção de uma nova inteligibilidade para a filosofia ao considerar a estesiologia. Não há estética sem sensorialidade. Entre o corpo, a literatura, a filosofia há relações intensas, incomparáveis e incomensuráveis. Não se trata aqui de medir, comparar, explicar essas relações e estabelecer uma verdade. Não se trata de dizer a verdade. Trata-se de criar desvios no pensamento e na experiência da verdade. Trata-se de esclarecer a verdade, não do ponto de vista kantiano, mas do ponto de vista empático como propõe Didi-Huberman ao refletir sobre as relações entre o corpo, a palavra, o gesto na perspectiva de uma imagem da verdade em arte ou em filosofia.

Esclarecer, fugitivamente, de forma lacunar – por instantes de risco, decisões sobre um fundo de indecisões. Dar-lhe ar e gesto. Depois, deixar o lugar necessário à sombra que se fecha, ao fundo que se retorna, a indecisão que é ainda uma decisão do ar. É uma questão, uma prática de ritmo: respiração, gesto, musicalidade. É então uma respiração. Acentuar as palavras para fazer dançar as faltas e dar potência, consistência do meio em movimento. Acentuar as faltas para fazer dançar as palavras e dar-lhes potência, consistência de corpo em movimento (Didi-Huberman, 2005, p. 9).

Merleau-Ponty não leu Fernando Pessoa, pelo menos não encontrei esse registo e, mais provavelmente, a recíproca é verdadeira, mas suas obras se encontram ao fazerem o elogio da sensibilidade como obra poética e filosófica em um exercício de imaginação e de empatia que podem movimentar nossa experiência sensível e a inteligibilidade do pensamento. Nessa montagem anacrônica e empática buscamos tematizar esse encontro entre sensação e pensamento, literatura e filosofia e, assim abrir o corpo, a palavra, a escrita e a leitura em uma experiência do pensamento como deformação da realidade, como expressão do que é nos é sensível a partir de uma estesiologia da literatura e da palavra poética, criadora de mundos incomensuráveis e de significações abertas, desviantes, delirantes talvez!


AUTORA
*Terezinha Petrucia da Nóbrega: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil. Bolsista CNPq/École Normale Supèrieur, Paris.


REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. L’eau et les rêves: essai sur l’imagination de la matière. Paris: Jose Corti, 1942.
BACHELARD, Gaston.L’aire et les songes : essai sur l’imagination du mouvement. Paris: Corti, 1943.
CAVALCANTI FILHO, José Paulo. Fernando Pessoa: uma quase autobiografia. Rio de Janeiro : Record, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Gestes d’air et de pierre: corps, parole, souffle, image. Paris : Minuit, 2005
DIDI-HUBERMAN, Georges. Hépatique empathie : l’affinité des incommensurables selon Aby Warburg. In GEFEN, Alexandre ; VOUILLOUX, Bernard (Eds). Empathie et esthétique. Paris : Herman, 2013 (p.371-389).
DIDI-HUBERMAN, Georges.Ninfa fluida : essai sur le drapé-desir. Paris: Gallimard, 2015.
PESSOA, F. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MERLEAU-PONTY, M. Recherches sur l’usage littéraire du language. Cours au Collège de France. Notes, 1953. Établis par Benedetta Zaccarello et Emmanuel de Saint-Aubert. Genève : Metis Presses, 2013.
MERLEAU-PONTY, M. Parcours deux (1951-1961). Établi par Jacques Prunair. Paris : Verdier, 2000.
MERLEAU-Ponty, Maurice. Notes de Cours au Collège de France – 1958-1959 et 1960-1961. Texte établi par Stéphanie Ménasé. Préface de Claude Lefort. Paris : Gallimard, 1996.
MERLEAU-PONTY, M. La prose du monde. Paris: Gallimard, 1969.
MERLEAU-PONTY, M. Résumés de cours (Collège de France, 1952-1960). Paris : Gallimard, 1968.
MERLEAU-PONTY, M. Signes. Paris : Galimard, 1960.
MERLEAU-PONTY, M . Le roman et la métaphysique. IN MERLEAU-PONTY, M. Sens et non sens. Paris: Gallimard, 1996. (p. 34- 52).
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’œil et l’esprit. Paris : Gallimard, 1961.
MERLEAU-PONTY, M. La phénoménologie de la perception. Paris : Gallimard, 1945
NÓBREGA, T.P. Sentir a dança ou quando o corpo se põe a dançar. Natal: Editora do IFRN, 2015.
REVEL, J. Foucault avec Merleau-Ponty: ontologie politique, présentisme et histoire. Paris: Vrin, 2015.
SOUZA, C.Friedrich Nietzsche & Alberto Caeiro: paganismo e linguagem.Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.36 n.1, p. 245-265, 2015.
ZACCARELLO, B. Avant-propos In MERLEAU-PONTY, M. Recherches sur l’usage littéraire du language. Cours au Collège de France. Notes, 1953. Établis par Benedetta Zaccarello et Emmanuel de Saint-Aubert. Genève : Metis Presses, 2013.






[1]  Gosto imensamente do sentido atribuído por Gaston Bachelard ao vocábulo imaginação, como uma ação imaginante. Para ele, “a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade, ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade” (BACHELARD, 1942, p. 23). Ao ler as notas de curso sobre o uso literário da linguagem, noto uma proximidade da compreensão de imaginação entre Bachelard e Merleau-Ponty, embora nesse texto Merleau-Ponty não cite Bachelard.
[2]Um dos capítulos que compunha a Prosa do Mundo foi publicada sob a forma de ensaio em Signos, trata-se de “ Linguagem Indireta e as vozes do silêncio, dedicado a Jean-Paul Sartre (Merleau-Ponty, 1960).
[3] Didi-Huberman (2013;2015) analisa a importância da empatia para a história da arte a partir do trabalho de Aby Warburg, em particular em seu primeiro livro sobre o nascimento de Vênus e no último, inacabado, o Atlas Mnémosyne. Destaca a imaginação, um conhecimento devotado ao risco do sensível, como sendo um conhecimento capaz de lançar uma ponte entre ordens da realidade distantes, heterógenas ou incomensuráveis, como os pensamentos, os gestos e as paixões. As imagens empáticas são dialéticas, elas mostram em conjunto e incorporam mutuamente esses espaços heterogêneos que são desdobramentos viscerais por um lado e celestes por outro lado como percebe-se nas imagens estudadas por Warburg, em especial nos quadros de Boticelli.
[4] Na margem: Para um tempo-magma, isto é, que mistura suas dimensões que se faz em toda parte de uma só vez.  [Nota original aqui conservada e traduzida]
[5] Na margem: De onde notadamente sedimentação do tempo: o tempo espaço. Tempo-espaço não simbolizado, mas contaminado pelo espaço porque eles são, ambos, o mundo. [Nota original aqui conservada e traduzida]
[6] Simon, C. L’herbe, Paris, Minuit, 1958 [nota original aqui conservada e traduzida]
[7] Talvez aqui valha a pena retomar a noção de história que Merleau-Ponty apresentou em seu curso sobre a “Fenomenologia e as Ciências Humanas”, publicado em Parcours deux, a respeito da “Descoberta da História”: O tempo não é mais uma força natural que vem antes de nós. Desde o nosso esforço para compreender o passado, nós carregamos o sentimento de algo a ser feito e, com o corpo desperto, juntamo-nos em torno de um objeto para entrever sua conduta; o tempo mais antigo é convocado para assistir ao que irá se transformar em nós. Nosso presente mesmo é uma empresa. O que nossos pensamentos, nossas instituições, nossos planos transbordam sobre o futuro, eles descontam o impulso, eles funcionam somente no meio histórico, como dissemos, são condicionados à história – e instalam os homens à revelia na atmosfera da história (Merleau-Ponty, 2000, p. 205-208).
[8] A esse respeito ver Revel (2015).
[9] Como ele faz em Le Rouge et Le noir: ” eu sozinho sei o que poderia ter feito... para os outros eu não sou mais que um talvez”. “Se, essa manhã, no momento em que a morte me parecesse feia, advertiu-me para a execução, o olhar do público teria sido um incentivo de glória... algumas pessoas clarividentes, entre qualquer uma dessas províncias, foi capaz de adivinhar a minha fraqueza. Mas ninguém teria visto [nota presente no original e aqui conservada].

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016

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Um comentário:

  1. Fantástico! Uma escrita que expressa já no pelo estilo as questões presentes na temática. Há de fato, muita sensibilidade...

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