Wanderley C. Oliveira*
INTRODUÇÃO
Quando Merleau-Ponty morreu repentinamente em sua mesa de trabalho em 1961, entre os inúmeros manuscritos que deixou, encontrava-se um, em especial, contendo a primeira parte de um trabalho que começara redigir dois anos antes. Embora, segundo Lefort (1964), sejam raras, no manuscrito, as indicações de um plano para a obra, pode-se presumir, no entanto, que ela “teria tido dimensões consideráveis e que o texto que possuímos constitui apenas a primeira parte dela, desempenhando o papel de uma introdução” (p. 10). Em 1964, Lefort publicou este manuscrito, preservando o título dado pelo autor, O visível e o invisível[1], e acrescentando-lhe algumas notas de trabalho. Este é o principal texto do qual nos servimos neste trabalho, a fim de mostrar, como Merleau-Ponty, em sua interrogação sobre o sentido de ser do mundo, desvela-nos o mundo sensível como aquele ao qual toda expressão está referida, mas que nenhuma esgota; que contém “tudo o que para sempre será dito”, mas que exige de nós “a tarefa de criá-lo” (VI, p. 224). Logo, sem a expressão, o sensível é mundo mudo, é silêncio; mas, se a expressão é a voz do sensível, veremos que não temos, com ela, uma tomada total e ativa do sensível, precisamente, porque ela mesma se revelará inscrita no Ser que toma, de modo a haver no Ser uma necessidade da expressão e, na expressão, uma necessidade do Ser, indissociáveis uma da outra. Deste modo, se, na esteira do pensamento de Husserl, a filosofia, para Merleau-Ponty é “procura do Ser”, sendo esta “atenção ao fundamental” (RC, p. 154) seu privilégio e sua tarefa; todavia, como bem acentua Raynova (1991) “o problema que se coloca não é somente no domínio do was”, ou seja, o que é o Ser, mas “também e, sobretudo, do wie”, ou seja, como ter acesso a ele para exprimi-lo (p. 426). Toda a dificuldade reside, então, nesta passagem da visão bruta à sua significação, da existência ao sentido, do mundo sensível ao mundo da expressão. É assim que, concentrando-nos nesta passagem, veremos que a via de acesso ao Ser define-se através dos entes e, especialmente, do Ser falando em nós, exigindo a criação como este contato com o Ser. Seremos levados, assim, à aproximação da filosofia com a literatura compreendida como um modo de visibilização do invisível ou de expressão do sensível, que partilha com a filosofia a tarefa comum de reaprender a ver o mundo. Mas, se as simetrias entre elas as aproximam, isto não faz com que a filosofia seja literatura. Será preciso que, interrogando sobre a possibilidade da linguagem, vejamos como é possível uma expressão especificamente filosófica, com esta questão encerraremos este trabalho.
O SENTIDO DE SER DO MUNDO
Na reflexão ontológica de Merleau-Ponty sobre o sentido de ser do mundo, ele nos coloca na presença de um “universal” que “não está acima”, mas “abaixo (...), não está diante, mas atrás de nós” (VI, p. 272). É neste sentido que, como afirma Verrès (1971) “para o filósofo, não se trata de construir o universal, pode-se apenas a ele retornar” (p. 2069). E retornar a este universal significa isto: apreender o sensível como forma universal do ser do mundo; o qual se define como “esta estranha imbricação que faz com que meu visível, ainda que não seja sobreposto ao do outro, entretanto, abra para ele e que ambos abram para o mesmo mundo sensível” (VI, p. 269). Assim, embora cada um tenha seu mundo, todos eles remetem a um mesmo mundo: o sensível que ultrapassa a si mesmo, porém permanecendo em si; que se multiplica, porém permanecendo único. Esta “milagrosa multiplicação do sensível” (S, p. 23) leva-nos a compreender o ser integral, não como algo que esteja diante de mim, na ordem do objetivo ou do em si, mas como “este Ser que está entre a minha perspectiva e aquela do outro” (VI, p. 272); que está “na interseção de minhas visões e na interseção de minhas visões com aquelas dos outros” (VI, p. 116); que não é “vários, nem um”, mas que, como nas palavras de Chauí (1981), “está diante de nós, mas também atrás de nós (...), e entre nós e nós mesmos, nós e as coisas, nós e os outros” (p. 255), que, enfim, é sempre “intermundo” (VI, p. 116)
Ao apresentar-se como “intermundo”, o sensível, para além de toda concepção meramente empirista que nos conduziria a vê-lo como “espaço objetivo-imanente” (VI, p.270), aparece também como “espaço de transcendência, espaço de incompossibilidades” (VI, p. 269), no qual é possível que eu, os outros e as coisas, enquanto seres sensíveis, estejamos presentes simultaneamente, cada qual com uma presença absoluta que não é compossível com a dos outros, entretanto, que todos possuem ao mesmo tempo. No mundo sensível, portanto, “tudo é simultâneo” (S, p. 226). É neste sentido que, ainda em O Filósofo e sua Sombra, Merleau-Ponty afirma: “Cada ‘aqui’, cada coisa próxima, cada eu (...) atestam para além deles mesmos todos os outros que, para mim, são incompossíveis com eles e que, contudo, alhures, neste mesmo momento, são vividos em presença absoluta” (S, p. 222). Tal proposição, além de atestar a ubiquidade ontológica do sensível, dá sentido à sua compreensão como esta “tele-visão que no mais privado de nossa vida nos tornam simultâneos com os outros e com o mundo” (S, p. 24).
Interrogando-se sobre o sentido de ser do mundo, abaixo de toda representação ou idealidade positiva, Merleau-Ponty desvela o sensível precisamente como este “meio em que pode haver o ser sem que tenha de ser posto”, no qual o Ser se manifesta na evidência silenciosa e persuasiva de sua aparência sensível, contudo, “sem se tornar positividade, sem deixar de ser ambíguo e transcendente” (VI, p. 267). É assim que, com o sensível, Merleau-Ponty restitui o mundo “como sentido de Ser absolutamente diferente do ‘representado’” (VI, p. 306), a saber, como “Ser selvagem” (VI, p. 306), que toda representação atinge, mas que nenhuma esgota; como “Ser vertical” (VI, p. 306), que não concede ao olhar as facilidades de um cenário panorâmico; como Ser de profundidade, que resiste ao olhar, que ele não vence, mas precisa contorná-lo; logo, Ser de várias faces ou de latência, o que implica em deslindá-lo também como a “apresentação de certa ausência” (VI, p. 179) enraizada em sua própria presença, posto que, embora sendo aquilo que torna nossas vistas “solidárias entre elas e solidárias com as dos outros” (VI, p. 116), está sempre atrás, ou depois, ou entre os aspectos que dele vemos.
Interrogando-se sobre o sentido de ser do mundo, abaixo de toda representação ou idealidade positiva, Merleau-Ponty desvela o sensível precisamente como este “meio em que pode haver o ser sem que tenha de ser posto”, no qual o Ser se manifesta na evidência silenciosa e persuasiva de sua aparência sensível, contudo, “sem se tornar positividade, sem deixar de ser ambíguo e transcendente” (VI, p. 267). É assim que, com o sensível, Merleau-Ponty restitui o mundo “como sentido de Ser absolutamente diferente do ‘representado’” (VI, p. 306), a saber, como “Ser selvagem” (VI, p. 306), que toda representação atinge, mas que nenhuma esgota; como “Ser vertical” (VI, p. 306), que não concede ao olhar as facilidades de um cenário panorâmico; como Ser de profundidade, que resiste ao olhar, que ele não vence, mas precisa contorná-lo; logo, Ser de várias faces ou de latência, o que implica em deslindá-lo também como a “apresentação de certa ausência” (VI, p. 179) enraizada em sua própria presença, posto que, embora sendo aquilo que torna nossas vistas “solidárias entre elas e solidárias com as dos outros” (VI, p. 116), está sempre atrás, ou depois, ou entre os aspectos que dele vemos.
Nossa vida, portanto, como afirma Merleau-Ponty, “longe de abrir-se para a luz ofuscante do Ser puro ou do Objeto, (...) tem, no sentido astronômico da palavra, uma atmosfera: está constantemente envolvida por essas brumas que chamamos mundo sensível” (VI, p. 116), que não se reduz ao real bruto, que não é somente as coisas, mas que é também “tudo que nelas se desenha, mesmo no vazio, tudo que nelas deixa vestígio, tudo que nelas figura, mesmo a título de desvio e como certa ausência” (S: 217); o que faz com que o sensível seja, para Merleau-Ponty, nas palavras de Verrès (1971), “o fundo de todo o resto, a possibilidade de todas as formas” (p. 2073). E isto, devido ao próprio princípio do sensível, que consiste na possibilidade, ainda segundo Verrès (1971), “da transposição, mesmo de tradução”, ou melhor, da “multiplicação de um mundo único” (p. 2074).
DO SENSÍVEL AO DIZÍVEL: A CONFIGURAÇÃO DO MUNDO MUDO
A filosofia de Merleau-Ponty se apresenta, assim, como este esforço para configurar ou dimensionalizar na e pela linguagem este mundo de fundo, possibilidade de todo outro. Neste sentido, desde a primeira palavra escrita pelo filósofo, em sua tentativa de modulação do mundo mudo, já estávamos na expressão. A reversibilidade entre a experiência e a expressão, embora não explicitada, já está em obra na tentativa desta filosofia de dar voz ao silêncio: não a voz distanciada de uma reflexão tética ou judicativa, separada da experiência e da ordem do parece-me que..., mas uma voz que fosse a própria apresentação deste “há prévio” no campo da linguagem, dada na aderência do significante e do significado e procurando fazer ver pelas palavras este mundo a que todo outro remonta. Uma filosofia que se mostra como esta relação com o Ser que se faz do interior do Ser, que o apresenta sem se distanciar dele, de dentro dele, sem pensamento separado. Mas esta descrição do mundo do silêncio não seria possível sem um horizonte até agora não abordado explicitamente: “aquele – nas palavras do próprio filósofo – da linguagem,” de que ele se serviu “para descrever tudo isto” (VI,p. 232). Abandonada como ingênua a ideia, presente na Fenomenologia da percepção, de um “cogito silencioso que se acreditasse adequação à consciência silenciosa” (VI, p. 232-233), Merleau-Ponty está consciente, como assevera em fevereiro de 1959 numa nota de O visível e o invisível, de que a “descrição do silêncio repousa inteiramente nas virtudes da linguagem”, portanto, “a descrição do logos perceptivo” se apresenta como “prática do logos prophorikos” (VI,p. 233).
O Ser é o Ser-exprimido. Fora da expressão, ele é silêncio que não se sabe palavra. Com uma citação de Valéry, Merleau-Ponty encerra O visível e o invisível afirmando que “a linguagem é tudo, pois não é a voz de ninguém, é a própria voz das coisas, das ondas e das florestas” (VI,p. 204). A filosofia pretende ser a voz do silêncio, sua linguagem. Daí o problema: como é que “toda filosofia é linguagem e, entretanto, consiste em reencontrar o silêncio” (VI,p. 266-67). A questão, então, é saber como é possível esta linguagem, pois se a filosofia é linguagem, mas uma linguagem que retorna ao silêncio, seu fim será, então, “a narrativa de seu começo” (VI,p. 231). Para dar conta de sua própria origem, a última reversibilidade da carne ou sua emergência como linguagem persiste aqui como tarefa a ser cumprida explicitamente.
Merleau-Ponty acredita que “se explicitássemos completamente a arquitetônica do corpo humano, sua construção ontológica,” descobriríamos “todas as possibilidades de linguagem já dadas” na “estrutura de seu mundo mudo” (VI,p. 203). No mundo mudo, isto que vejo é a condensação de uma visibilidade dispersa que a visão vemreunir. Ele surge lá onde o vidente se faz visível e o visível se faz vidente, ou seja, “no ponto em que se cruzam as duas metamorfoses” (VI, p. 202), aí está a fonte da percepção. Do mesmo modo, no mundo da expressão, aquilo que digo “é o que vem selar, fechar, reunir a multiplicidade dos meios físicos, fisiológicos, linguísticos da elocução, contraí-los num só ato” (VI,p. 202). O ato significativo brota naquele ponto em que, mais que mero sopro ou sons inarticulados, a fala encarna uma significação que antes dela existia apenas como sentido tácito insinuando-se no silêncio da percepção.
Na fronteira entre a percepção muda e a fala, quando a visão silenciosa converge para a palavra e esta, em contrapartida, abrindo um campo do dizível, volta-se para o visível, inscrevendo-se em suas linhas de forças e dimensões, metamorfoseando suas estruturas e, segundo sua verdade, fazendo-se olhar do espírito, tocamos “num sentido segundo e figurado da visão que será intuitus mentis ou ideia, numa sublimação da carne que será espírito ou pensamento” (VI,p. 191). Portanto, da visão sensível ou natural para aquela predicativa ou espiritual não há entre natureza e espírito o fosso que existe entre a res extensa e a res cogitans. E isto não porque o pensamento se torne extensão ou a extensão pensamento, mas é como se esta visibilidade que anima o mundo sensível “emigrasse, não para fora de todo corpo, mas para um corpo menos pesado, mais transparente” (VI, p. 200), como se ela mudasse de carne, deixando aquela maciça e visível do corpo pela carne sutil e invisível da linguagem, emancipando-se, por aí, do sensível, contudo, sem jamais se libertar de toda condição; pois se a linguagem é mais leve e transparente que o sensível, nem por isso ela é sem carne ou liberada das estruturas de horizonte; mas, ao contrário, vive delas, mesmo que se trate “de outra carne e de outros horizontes” (VI,p. 200).
Paralelo ao que acontece na ordem da natureza, onde o visível não me é dado como um pedaço maciço do mundo plenamente exposto ou despido ao olhar, mas apresenta-se, sobretudo, como “certa diferenciação, uma modulação efêmera do mundo”, “menos coisa que diferença entre coisas”, por outras palavras, uma “cristalização momentânea” do mundo (VI,p. 175); do mesmo modo, originariamente, o sentido, na ordem da linguagem, não surgirá “como uma segunda camada de ‘realidade psíquica’ estendida sobre o som” das palavras; ele está na própria fala, “é a totalidade do que é dito, a íntegra de todas as diferenciações da cadeia verbal”, preso no entrelaçado de sons que compõem a fala de tal modo que, para que o outro o compreenda, o único recurso é acolher plenamente a fala em seu “ser sonoro” (VI, p. 203). A reversibilidade da carne, que possibilita tanto o visível quanto a ideia, aparece, assim, sustentando também a passagem do visível na ideia e vice-versa, o que se manifesta tanto por uma existência quase visível da ideia como por uma sublimação do visível nela.
Quando saímos do sensível para o inteligível não saímos da carne, pois ela reaparece sublimada na expressão. Faz-se necessário, portanto, que a teoria da carne se prolongue em teoria da carne da linguagem; pois do mundo silencioso e visível de nossa vida sensível ao mundo falante e invisível da linguagem, mais que “destruição” ou “conservação do silêncio” ou, ainda, mais que “uma destruição que conserve ou de uma realização que destrua” (VI, p. 202), o que temos é o logos expressivo como remanejamento, fuga, no prolongamento do logos sensível. Da essência bruta e silenciosa dada pela configuração perceptiva, como primeira estrutura signo-significação no plano de nossa vida natural, à essência elaborada e proferida no plano da linguagem, a relação entre sentido perceptivo e linguístico não é aquela de dois contraditórios, precisamente, porque mesmo no silêncio o Ser já fala em nós, a expressão já está em obra, um “logos endiathétos” (VI, p. 224) já está implicado e esboçando o “logos prophorikos” (VI, p. 224) que o transformará.
Entretanto, podemos sempre argumentar que não vemos as significações no mesmo sentido em que vemos as coisas naturais. Podemos deter nossos olhos nas coisas percebidas, ao passo que as significações são invisíveis, não podemos fitá-las. O visível no mundo sensível parece possuir uma positividade tal, que restitui o fosso entre ele e o invisível do mundo inteligível que, com isto, surgiria, novamente, como outro polo contraposto ao visível. Para superarmos esta dificuldade, o que precisamos verificar, então, é se esta positividade do visível é mesmo absoluta, o que confirmaria a cisão do visível e do invisível em puro positivo e puro negativo, em si e para si.
Ora, basta examinar um pouco mais atentamente as coisas que vemos para constatamos que elas são sempre seres à distância. Não estão nunca totalmente determinadas ou expostas diante de nós, como objetos fixos numa presença sem lacunas ou como pedaços de um mundo objetivo organizado sinteticamente. Dão-se sempre em modos de aparecer descontínuos, como figuras sobre um fundo, como “estruturas, membruras, as estrelas de nossa vida” (VI,p. 273). Fácil concluir, portanto, que toda visão é latência, que ver é sempre ver mais que aquilo que vemos, o visível não estando jamais inteiramente em seu aparecer, pois ele não é da ordem do objetivo, mas da transcendência. A pretendida positividade do visível, deste modo, quando a perscrutamos, “assevera-se justamente como um inapreensível” (VI,p. 267-268).
Logo, o visível não pode ser o contrário do invisível, porque ele mesmo “possui uma membrura de invisível” (VI, p. 269), imbricada, escondida, ancorada nele, tendo necessidade dele e fazendo realmente parte de seu ser como “uma dimensionalidade que não é aquela da extensão” (VI, p. 313) e que, precisamente, permite-lhe escapar à pura positividade. Acreditar, portanto, que “o visível seja presença objetiva” não passa, para Merleau-Ponty, de um “total erro filosófico” (VI, p. 311) que restabelece, em última análise, o abismo entre o Ser e o Nada, o em si e o para si. Para Merleau-Ponty, “todo visível é invisível” (VI, p. 300) e não há nisto nenhuma contradição: primeiro, “pela simples razão que o visível não sendo um positivo objetivo, o invisível não pode ser uma negação no sentido lógico” (VI,p. 311); depois, porque, como o próprio filósofo explica numa nota de maio de 1960, não se trata de acrescentar “ao visível perfeitamente definido como em Si um não-visível”, que seria apenas uma “ausência objetiva”, ou seja, uma “presença objetiva alhures, num alhures em si” (VI, p. 300); mas trata-se de compreender, como insiste o filósofo na mesma nota, que é “a própria visibilidade que comporta uma não-visibilidade” (VI, p. 300).
Merleau-Ponty acredita que “se explicitássemos completamente a arquitetônica do corpo humano, sua construção ontológica,” descobriríamos “todas as possibilidades de linguagem já dadas” na “estrutura de seu mundo mudo” (VI,p. 203). No mundo mudo, isto que vejo é a condensação de uma visibilidade dispersa que a visão vemreunir. Ele surge lá onde o vidente se faz visível e o visível se faz vidente, ou seja, “no ponto em que se cruzam as duas metamorfoses” (VI, p. 202), aí está a fonte da percepção. Do mesmo modo, no mundo da expressão, aquilo que digo “é o que vem selar, fechar, reunir a multiplicidade dos meios físicos, fisiológicos, linguísticos da elocução, contraí-los num só ato” (VI,p. 202). O ato significativo brota naquele ponto em que, mais que mero sopro ou sons inarticulados, a fala encarna uma significação que antes dela existia apenas como sentido tácito insinuando-se no silêncio da percepção.
Na fronteira entre a percepção muda e a fala, quando a visão silenciosa converge para a palavra e esta, em contrapartida, abrindo um campo do dizível, volta-se para o visível, inscrevendo-se em suas linhas de forças e dimensões, metamorfoseando suas estruturas e, segundo sua verdade, fazendo-se olhar do espírito, tocamos “num sentido segundo e figurado da visão que será intuitus mentis ou ideia, numa sublimação da carne que será espírito ou pensamento” (VI,p. 191). Portanto, da visão sensível ou natural para aquela predicativa ou espiritual não há entre natureza e espírito o fosso que existe entre a res extensa e a res cogitans. E isto não porque o pensamento se torne extensão ou a extensão pensamento, mas é como se esta visibilidade que anima o mundo sensível “emigrasse, não para fora de todo corpo, mas para um corpo menos pesado, mais transparente” (VI, p. 200), como se ela mudasse de carne, deixando aquela maciça e visível do corpo pela carne sutil e invisível da linguagem, emancipando-se, por aí, do sensível, contudo, sem jamais se libertar de toda condição; pois se a linguagem é mais leve e transparente que o sensível, nem por isso ela é sem carne ou liberada das estruturas de horizonte; mas, ao contrário, vive delas, mesmo que se trate “de outra carne e de outros horizontes” (VI,p. 200).
Paralelo ao que acontece na ordem da natureza, onde o visível não me é dado como um pedaço maciço do mundo plenamente exposto ou despido ao olhar, mas apresenta-se, sobretudo, como “certa diferenciação, uma modulação efêmera do mundo”, “menos coisa que diferença entre coisas”, por outras palavras, uma “cristalização momentânea” do mundo (VI,p. 175); do mesmo modo, originariamente, o sentido, na ordem da linguagem, não surgirá “como uma segunda camada de ‘realidade psíquica’ estendida sobre o som” das palavras; ele está na própria fala, “é a totalidade do que é dito, a íntegra de todas as diferenciações da cadeia verbal”, preso no entrelaçado de sons que compõem a fala de tal modo que, para que o outro o compreenda, o único recurso é acolher plenamente a fala em seu “ser sonoro” (VI, p. 203). A reversibilidade da carne, que possibilita tanto o visível quanto a ideia, aparece, assim, sustentando também a passagem do visível na ideia e vice-versa, o que se manifesta tanto por uma existência quase visível da ideia como por uma sublimação do visível nela.
Quando saímos do sensível para o inteligível não saímos da carne, pois ela reaparece sublimada na expressão. Faz-se necessário, portanto, que a teoria da carne se prolongue em teoria da carne da linguagem; pois do mundo silencioso e visível de nossa vida sensível ao mundo falante e invisível da linguagem, mais que “destruição” ou “conservação do silêncio” ou, ainda, mais que “uma destruição que conserve ou de uma realização que destrua” (VI, p. 202), o que temos é o logos expressivo como remanejamento, fuga, no prolongamento do logos sensível. Da essência bruta e silenciosa dada pela configuração perceptiva, como primeira estrutura signo-significação no plano de nossa vida natural, à essência elaborada e proferida no plano da linguagem, a relação entre sentido perceptivo e linguístico não é aquela de dois contraditórios, precisamente, porque mesmo no silêncio o Ser já fala em nós, a expressão já está em obra, um “logos endiathétos” (VI, p. 224) já está implicado e esboçando o “logos prophorikos” (VI, p. 224) que o transformará.
Entretanto, podemos sempre argumentar que não vemos as significações no mesmo sentido em que vemos as coisas naturais. Podemos deter nossos olhos nas coisas percebidas, ao passo que as significações são invisíveis, não podemos fitá-las. O visível no mundo sensível parece possuir uma positividade tal, que restitui o fosso entre ele e o invisível do mundo inteligível que, com isto, surgiria, novamente, como outro polo contraposto ao visível. Para superarmos esta dificuldade, o que precisamos verificar, então, é se esta positividade do visível é mesmo absoluta, o que confirmaria a cisão do visível e do invisível em puro positivo e puro negativo, em si e para si.
Ora, basta examinar um pouco mais atentamente as coisas que vemos para constatamos que elas são sempre seres à distância. Não estão nunca totalmente determinadas ou expostas diante de nós, como objetos fixos numa presença sem lacunas ou como pedaços de um mundo objetivo organizado sinteticamente. Dão-se sempre em modos de aparecer descontínuos, como figuras sobre um fundo, como “estruturas, membruras, as estrelas de nossa vida” (VI,p. 273). Fácil concluir, portanto, que toda visão é latência, que ver é sempre ver mais que aquilo que vemos, o visível não estando jamais inteiramente em seu aparecer, pois ele não é da ordem do objetivo, mas da transcendência. A pretendida positividade do visível, deste modo, quando a perscrutamos, “assevera-se justamente como um inapreensível” (VI,p. 267-268).
Logo, o visível não pode ser o contrário do invisível, porque ele mesmo “possui uma membrura de invisível” (VI, p. 269), imbricada, escondida, ancorada nele, tendo necessidade dele e fazendo realmente parte de seu ser como “uma dimensionalidade que não é aquela da extensão” (VI, p. 313) e que, precisamente, permite-lhe escapar à pura positividade. Acreditar, portanto, que “o visível seja presença objetiva” não passa, para Merleau-Ponty, de um “total erro filosófico” (VI, p. 311) que restabelece, em última análise, o abismo entre o Ser e o Nada, o em si e o para si. Para Merleau-Ponty, “todo visível é invisível” (VI, p. 300) e não há nisto nenhuma contradição: primeiro, “pela simples razão que o visível não sendo um positivo objetivo, o invisível não pode ser uma negação no sentido lógico” (VI,p. 311); depois, porque, como o próprio filósofo explica numa nota de maio de 1960, não se trata de acrescentar “ao visível perfeitamente definido como em Si um não-visível”, que seria apenas uma “ausência objetiva”, ou seja, uma “presença objetiva alhures, num alhures em si” (VI, p. 300); mas trata-se de compreender, como insiste o filósofo na mesma nota, que é “a própria visibilidade que comporta uma não-visibilidade” (VI, p. 300).
O negativo aqui não é, portanto, “um positivo que está alhures (VI,p. 308). O invisível não é o que não foi visto por mim, mas ainda o será por outro que não eu. Não se trata dos “aspectos ocultos ou inatuais da coisa” (VI, p. 311), o invisível compreendido como “o que não está atualmente visível, mas poderia sê-lo” (VI, p. 311), como “um outro visível ‘possível’, ou um ‘possível’ visível por um outro”(VI, p. 282). Nada disso. O invisível é justamente aquilo que, embora “relativo ao visível não poderia, contudo, ser visto como coisa” (VI, p. 311). Ele está aí, na linha do visível, inscrito em filigrana nele, sem ser objeto, existindo de modo tácito, como uma ausência que conta no mundo, “em que a lacuna que marca seu lugar é um dos pontos de passagem do ‘mundo’ (VI, p. 281). O invisível é a presença de uma ausência, aquilo que é dado originariamente como ausente, ou seja, como “não-ser qualificado” (VI, p. 234) ou, ainda, como “Nichturpräsentierbar que me é apresentado como tal no mundo” (VI, p. 269); o que, na enfática explicação do filósofo em nota inédita: “é absolutamente isto: ‘propriamente dado como o que não é originariamente doável’”.[2] Em suma, o invisível é um “verdadeiro negativo” (VI, p. 308), uma outra dimensão do visível, seu avesso ou o seu outro lado, como “transcendência pura, sem máscara ôntica” (VI, p. 282-283).
Portanto, do visível silencioso ao invisível falante não há contradição, mas imbricação do invisível no visível impelindo-o para outra dimensão além da pura positividade em que julgávamos encerrá-lo. Mas resta-nos ainda ver como é possível que o visível imbrique-se no invisível impedindo-o de ser pura negatividade e fazendo com que ele se extrapole para o sensível; ou seja, a questão é saber como é que o sentido é invisível sem ser contraditório ao visível, mas, ao contrário, indo ao encontro dele. É no diálogo com a literatura que Merleau-Ponty encontrará ajuda para aprofundar a compreensão deste difícil ponto de sua filosofia: o elo entre o visível e o invisível, o sensível e o inteligível, em suma, entre a carne e a ideia.
Portanto, do visível silencioso ao invisível falante não há contradição, mas imbricação do invisível no visível impelindo-o para outra dimensão além da pura positividade em que julgávamos encerrá-lo. Mas resta-nos ainda ver como é possível que o visível imbrique-se no invisível impedindo-o de ser pura negatividade e fazendo com que ele se extrapole para o sensível; ou seja, a questão é saber como é que o sentido é invisível sem ser contraditório ao visível, mas, ao contrário, indo ao encontro dele. É no diálogo com a literatura que Merleau-Ponty encontrará ajuda para aprofundar a compreensão deste difícil ponto de sua filosofia: o elo entre o visível e o invisível, o sensível e o inteligível, em suma, entre a carne e a ideia.
A LITERATURA E AS IDEIAS SENSÍVEIS: O CÍRCULO ENTRE O SILÊNCIO E A LINGUAGEM
A literatura não se distingue da ciência, no que ambas bebem na fonte do visível e desvelam nele um invisível. Contudo, elas se distanciam uma da outra quando nos detemos na natureza do invisível ou das ideias que cada uma apresenta-nos. Uma ideia literária é tanto ideia quanto a científica; mas, ao contrário desta, aquela não se deixa “separar das aparências sensíveis” e erigir-se “em segunda positividade” (VI, p. 196) ou pura significação. Por outras palavras, as ideias literárias não se deixam exaurir por suas manifestações; mas, ao contrário, encarnam-se nelas e de tal modo que “não poderiam nos ser dadas como ideias senão numa experiência carnal” (VI,p. 197). E é isto mesmo o que Merleau-Ponty mostra-nos com Proust. Nenhum outro escritor, para o filósofo, foi mais longe que este “na fixação das relações do visível e do invisível, na descrição de uma ideia que não é o contrário do sensível, que é dele o forro e a profundidade” (VI,p. 195).
Ao indagar, no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, a passagem da sonata de Vintueil, Merleau-Ponty afirma que Swann, o protagonista do romance, pode facilmente “aprisionar entre as barras da notação musical, ‘a pequena frase’” (VI, p. 197) que lhe suscita tanta emoção. Contudo, a partir do momento em que o fizer, ao pensar os signos da notação musical, o que ele terá não será mais “a pequena frase”; mas, como atesta o filósofo, “apenas ‘simples valores que, para a comodidade de sua inteligência, substituem a misteriosa entidade que ele tinha percebido’” (VI,p. 197). Na pequena sonata vivida por Swann, os momentos se aderem uns aos outros por uma coesão que dispensa os conceitos. Ela não se dá a ele como algo para pensar, mas para viver, não é ele que a possui, ela é que o tem. Ao procurar “vê-la sem véus”, explicitá-la, torná-la algo inteligível, o que Swann estaria fazendo é justamente distanciar-se dela; pois, embora a explicitação a torne mais manejável, ela continua sendo uma “versão segunda” (VI, p. 197) que não nos dá a própria ideia, mas seu retrato matemático, sem a pregnância peculiar em que ela surge como uma ideia sensível.
Na noção de ideia sensível, o visível começa a invadir o invisível, pois nela o sentido só pode ser apreendido numa experiência carnal. As ideias sensíveis são próprias da linguagem em sua face “conquistadora, ativa, criadora” (VI, p. 202), numa palavra, próprias da linguagem operante. Nela, o sentido é acolhido ou sustentado no próprio arranjo dos elementos que a compõem sem poder abstrair-se deles. Para Merleau-Ponty, a outra linguagem, aquela que conhecemos como “sistema de relações explícitas entre signos e significados, sons e sentido, é um resultado e um produto da linguagem operante” (VI,p. 202). A linguagem operante está para a instituída como “a pequena frase” para as notas musicais que posteriormente encontramos nela. Contudo, não devemos compreender com isto que sejam inúteis a partitura, a gramática, a linguística e todas as demais “‘ideias da inteligência’ – que são as ideias adquiridas, disponíveis” (VI,p. 202). O que se pretende frisar é que, ao se considerar a linguagem ativa e conquistadora, “o sistema de relações objetivas, as ideias adquiridas são, eles próprios, apreendidos como numa vida e uma percepção segundas” (VI, p. 202), sustentados pela linguagem operante como esta “região obscura de onde vem a luz instituída” (VI, p. 202).
No âmbito desta “região obscura” (VI, p. 202), som e sentido, signo e significado ainda não se separaram, estão mesclados um no outro, de modo que a significação linguística não pode se separar “da materialidade significante das palavras e de suas inter-relações” (COLLOT, 1997, p. 35). Por outras palavras, o sentido da fala não se destaca da disposição dos elementos que a compõem. Sem anular o sentido que liberam, os signos não se apagam para que o sentido exista; eles resistem, impedindo que o sentido se abstraia “da forma verbal na qual se encarna”, carregando-o, assim, como afirma Collot (1997) “de um teor concreto e como que físico” (p. 36) que o aproxima do sentido sensível. Em tais termos, parece claro que a ideia não pode ser um “invisível de fato, como um objeto escondido atrás de outro” (VI, p. 198), justamente, porque ela não está atrás da teia de signos, mas é esta própria teia; pela mesma razão, ela não pode ser um “invisível absoluto, que não teria nada a ver com o visível” (VI, p. 198), já que é estruturação, metamorfose do visível que a precede.
Do mesmo modo que vimos o visível extrapolar-se no invisível, fugindo à égide da pura positividade, vemos, agora, o invisível transcender-se em direção ao sensível ou ao visível como outra dimensão sua que o impede de ser pura negatividade. Com a literatura ou a linguagem operante somos levados a reconhecer um invisível que não é estranho ao visível, mas “que lhe dá seus eixos, sua profundidade, suas dimensões” (VI, p. 199), configurando como o “invisível” do próprio visível, “aquele que o habita (...), sua possibilidade interior e própria” (VI,p. 198).
Da eidética tácita da visão para aquela proferida da reflexão, a última se realiza como um invisível que não é o contrário do visível, mas exatamente seu “avesso”, a “potência” dele (VI,p. 190). A essência elaborada é esta fala que se torna efetiva não como o oposto do silêncio, mas como seu outro lado, aquele para o qual ela própria se dirige à medida que é este universo de estruturas, de passagens, de generalidades existentes, feita de diferenças de significações ao invés de significações fechadas. Deste modo, assim como visível algum é presença exaustiva, fala nenhuma diz tudo. A essência proferida ou a ideia está para o nível da fala como a essência silenciosa ou a coisa esta para o nível da natureza, isto é, sempre como um “Etwas” (VI, p. 273), não mais “a própria coisa” como um conjunto fechado, seja ele em si ou para si, mas como “alguma coisa” (Etwas), compreendida como campo de configuração aberto, concreção momentânea dada como princípio de diferenciação nos momentos que a institui. A essência silenciosa ou o sentido perceptivo e a essência proferida ou o sentido linguístico mostram-se, assim, como profundamente aparentadas, no que ambas surgem como “princípio de distribuição, o pivô de um sistema de equivalências” (VI, p. 258), membruras que não estão “acima do mundo sensível, mas abaixo, ou em sua profundidade, sua espessura” (VI,p. 273).
Tal como o sentido percebido, aquele expresso pelo logos falante permanece, ele também, opaco e inesgotável, recuando, justamente, para o lado daquilo que ele quer deslindar. A linguagem que se realiza quebrando o silêncio é, novamente, envolvida pelo silêncio que julgava envolver. Silêncio que não está somente atrás dela, mas também diante, ao redor, dentro dela mesma; contudo, jamais como seu contrário ou seu negativo absoluto; pois se ele é aquilo que a impede definitivamente de ser fala absoluta, plana, transparente e presente a si, é também o que lhe dá a profundidade e a porosidade que a torna falante, que faz com que ela diga sempre mais do que diz. O silêncio é o “negativo” da linguagem, mas seu “negativo fecundo” (VI,p. 316).
Mais que contrapostos ou inteiramente distintos, sensível e inteligível, visível e invisível, silêncio e fala são um para o outro “o avesso e o direito”(VI, p. 190), um para sempre como o outro lado do outro, atrás dele, o que faz do logos prophorikos, silêncio falante e do logosendiathétos, fala em silêncio. Este que fala através do prophorikos que, por sua vez, é silêncio através do endiathétos. O prophorikos dá voz ao silêncio que, assim, faz-se falante, dirigindo-se para seu outro lado; o endiathétos insere o silêncio no âmago da fala que, deste modo, remete-se para o silêncio como para seu avesso.
Estas reversibilidades entre os logos tácito e proferido, na qual o proferido é a estrutura do logos tácito formulada, remanejada, reconstruída pela linguagem, fazem, portanto, com que nosso mundo falante apareça sob uma nova luz; pois, como sublimação da estrutura sensível no nível das significações linguísticas, dirá Merleau-Ponty numa nota inédita, as “malhas secretas” do sensível “permanecem sob o desenho da vida lógica e elaborada, suas solidariedades ocultas se manifestam nela por irrupções, convergências inesperadas”, fazendo com que seu logosseja “sempre, sob todo aspecto, tácito”.[3] Portanto, como há um silêncio da visão, há também “um silêncio análogo da linguagem” (VI, p. 322). Ao invés do silêncio e da opacidade da natureza serem ultrapassados pela loquacidade e transparência do espírito, o que vemos é o próprio advento do espírito atrelado à facticidade de uma fala que recua sempre para um fundo de silêncio que o sustém. Logo, do ponto de vista ontológico, ao passarmos do Ser bruto para o elaborado, o caráter fundamental daquele invade o próprio nível deste, fazendo com que haja também “um estado bruto” do próprio Ser elaborado. As relações entre silêncio e linguagem, para além de toda “filosofia de Weltanschauung”, convergem, assim, numa “teoria do espírito selvagem” que só pode ser “espirito de praxis”(VI, p. 230).
Não há dúvidas de que é “pela combinação de palavras (...) que realizo a atitude transcendental, que constituo a consciência constituinte” (VI, p. 225), distante do mundo e capaz de transformá-lo em seu significado para ela. Mas, quando colocamos em questão este “pequeno homem que está no homem” (VI, p. 261) e que conhece o mundo como um “ob-jeto” (VI, p. 261) e buscamos abaixo dele “o homem face a face com o próprio mundo” (VI, p. 261), sem nada pressupor do sistema de significações já constituído num plano transcendental e de sobrevoo, mas vendo em cada coisa uma recriação e uma nova inauguração do mundo, então, no nível desta “visão das origens” (VI, p. 261), aquele que tenta dar voz ao que vê não mantém diante de si “as palavras ditas e compreendidas como objetos de pensamento ou ideatos” (VI, p. 255), justamente, porque o que ele vai dizer não está de antemão concebido na linguagem, mas encontra-se enraizado no seu próprio contato com as coisas. O sujeito falante, nesta perspectiva, “é o sujeito de uma praxis” (VI,p. 255). Do visível ao dizível, cabe-lhe dizer o que viu, o que não implica apenas em convertê-lo em palavras (calcando-se em significações já prontas, o dicionário sempre à mão), mas fazer falar o que viu, “a linguagem incrustada no visível e tendo aí seu lugar” (NC, p. 212), fala que vem da visão, o que implica em deixar-se possuir pela visão, para em seguida, mover-se com a linguagem a fim de encontrar no espaço linguístico a modulação ou a estruturação das palavras que acolha o que se viu. Uma concepção da palavra, portanto, “não como invenção, mas como ditada pela estrutura da visão” (NC,p. 219).
Mas se a expressão não é criação exnihilo, mas “ditada pela estrutura da visão” (NC, p. 219), não vejamos nesta relação, a ditadura da visão a uma expressão inteiramente submissa. Se o sensível fosse “uma camada de entes planos ou do em si”, dizer o que viu seria fazer o inventário de um sobrevoo, mas o sensível é “polimorfismo” (VI, p. 306), seu sentido, portanto, é sempre latente ou virtual.
A expressão como criação não é nem puramente incondicionada, nem puramente submissa, nem pura passividade, nem pura atividade, é atualização de uma das virtualidades múltiplas de sua relação com o sensível, é certo modo de modulação deste sensível polimorfo, criação de um mundo dentre tantos outros possíveis a partir do sensível. O enigma do logos estético reside nisto que, embora sendo possibilidade de todo outro mundo, dimensionalidade de todas as dimensões, ele mesmo não se diz, daí exigir de nós “criação para que tenhamos experiência dele” (VI,p. 251). O logos proferido ou exterior se antecipa no logos interior ou tácito, de modo que é sempre de logos que se trata, mas sem a reversibilidade entre eles, não há nenhuma expressão, para que ela exista é preciso o círculo inteiro que ambos formam juntos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, resta-nos afirmar: sem a linguagem tudo é silêncio. Mas já vimos que o silêncio não é contrário à linguagem, mas a solicita para ter voz. Por sua vez, linguagem que, sustentada no sensível, é remetida novamente ao silêncio, sem jamais chegar a ultrapassá-lo completamente. Silêncio e palavra solicitam-se mutuamente, não sendo mais o caso de reduzir, sobrepor ou opô-los, mas de ver a expressão como incessante e infinita conversão de um no outro e o Sensível como o verdadeiro transcendental que possibilita esta reversibilidade. Não podemos, portanto, instalarmo-nos nem apenas no ponto de vista da natureza, nem apenas no ponto de vista do espirito, pois são ambos insuficientes e abstratos em vista desta apresentação do Sensível como o Ser que já traz em si a teleologia da expressão que virá prolongá-lo e dar testemunho dele.
Em relação ao mundo de nossa vida natural, o mundo cultural constitui-se no advento da expressão compreendida como a reconquista do sentido em nível elaborado. A literatura, a filosofia e todo outro tipo de Gebilde humana que surge do contato com o Ser aparecem, assim, todas juntas, não como “fabricações arbitrárias no universo do ‘espiritual’ (da ‘cultura’), mas como contato com o Ser justamente enquanto criação”(VI, p. 251), a própria voz do Ser exprimindo através da obra. Nesta perspectiva, filosofia e literatura se assemelham no que ambas são o “‘Ser falando em nós’, a expressão da experiência muda por si” (VI, p. 250), integração do mundo selvagem no universo elaborado da cultura, todavia, sem destitui-lo de seu estado bruto, mas salvaguardando-o numa expressão que se realiza precisamente como espírito selvagem.
Mas enquanto a literatura “fazendo-se com as próprias coisas, o próprio sensível, os próprios seres”, não tematiza sua própria origem, o vínculo originário com o mundo, mas parte dele, dando, assim, “a ilusão de permanecer no habitual e no constituído”(S, p. 31), por sua vez, a filosofia sendo também Gebilde, sabe-se como tal, “pretende ultrapassar-se como pura Gebilde” e “reencontrar sua origem (VI, p. 250). Deste modo, como o próprio Merleau-Ponty anuncia em nota inédita de O visível e o invisível, “a distinção da filosofia e da arte ou da literatura” é mantida “como sentido que não se possui”.[4]Contudo, como “inscrição do Ser” (VI, p. 251), a filosofia é arte do mesmo modo que a literatura. Porém, uma arte que pretende desvelar sua própria origem: o Ser universal que a sustenta e sustenta toda a cultura. Neste sentido, como pretendia Souriau, a filosofia é “arte suprema” (VI, p. 251), cuja especificidade reside nesta “atenção ao fundamental que permanece como seu “privilégio” e sua “tarefa” (RC, p. 156), não havendo entre ela, como “produto extremo do mundo” e o sensível como “Ser universal” nenhuma “rivalidade ou antinomia”, posto que “é ela que o desvela” (VI, p. 224). A filosofia é este “logos prophorikos” compreendido como a “Gebilde” que apreende o sensível como o Ser bruto ou selvagem que contém “tudo o que para sempre será dito e, entretanto, permitindo-nos criá-lo” (VI, p. 224), não sendo, portanto, mais o caso de reduzir, sobrepor ou opor mundo mudo e mundo falante, mas de deslindar o quiasma entre eles, que faz da expressão esta incessante e infinita conversão de um no outro, sustentada pelo sensível como o verdadeiro transcendental que possibilita esta reversibilidade.
AUTOR
*Wanderley C. Oliveira, professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ-MG). Pesquisador do Núcleo de Estudos Corpo, Cultura, Expressão e Linguagem (NECCEL/CNPq).
[0] Este artigo é uma versão sensivelmente resumida e alterada do trabalho a ser publicado como capítulo em livro sobre Merleau-Ponty organizado pelos professores Iraquitan de Oliveira Caminha e Terezinha Petrúcia da Nóbrega, com publicação prevista para o segundo semestre de 2016.
[1] Usamos para as obras de Merleau-Ponty, as seguintes siglas acompanhadas do número da página: VI - O visível e o invisível, RC - Résumés de cours, S -Signes, NC - Notes de coursauCollège de France.
[2] Nota inédita do VI, 11 de janeiro de 1959.
[3] Nota inédita do VI. Provavelmente, 1958.
[4] Nota inédita do VI, provavelmente de 1958. Na sequência da citação, Merleau-Ponty escreve: “E entretanto, como não vou até uma filosofia especulativa que contenha absolutamente toda outra Sinngebung na sua, mostrar que esta filosofia é aberta, que ela se encontra por todo lado, e particularmente nas obras de arte”.
REFERÊNCIAS
CHAUÍ, M.S.Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981.
COLLOT, M. L’oeuvrecommepaysage d’une experience. In: CASTIN, N., SIMON, A. (Orgs.). Merleau-Ponty etlelittéraire. Paris: Presses de l’ENS, 1997. p. 23-37.
LEFORT, C.Avertissement. In: MERLEAU-PONTY, M.Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964. p. 9-14.
MERLEAU-PONTY, M. Le visibleetl’invisible. Suivi de notes de travail. Texteétabli par Claude Lefort, acompagné d’unavertissementet d’une postface. Paris : Gallimard, 1964.
_____. Résumés de cours: Collège de France (1952-1960). Paris : Gallimard, 1968.
_____. Signes. Paris: Gallimard, 1960.
_____. Notes de coursauCollège de France: 1958-1959 et 1960-1961. Préface de Claude Lefort. Texteétabli par StéphanieMénasé. Paris : Gallimard, 1996.
RAYNOVA,S.I. L’approcheduloitain: letournant de Maurice Merleau-Ponty. Synthesisphilosophica, v. 6, f. 2, p. 421-438, 1991.
VERRES, Daniel. La philosophiedusensible. LesTempsModernes, Paris, n. 298, p. 2067-2076, mai, 1971.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016
BAIXAR ARTIGO EM PDF
Nenhum comentário:
Postar um comentário