Tudo isso temos liberdade para fazer; mas quantos sabem que temos essa liberdade? Em sua maioria, as pessoas não creem em si mesmas como em fatos inteiramente consumados?
Nietzsche (Aurora, §560).
O trágico da morte é que ela transforma vida em destino, diz André Malraux. Ou seria melhor dizer, como Sartre mostra em Les jeux sont faits (1947), que o terrível da morte é que ela faz saber que destino é sinônimo de escolha (liberdade)? De fato. Imagine que uma pessoa morreu, e pode, agora, sem ser vista, acessar o mundo dos vivo se ver, por exemplo, o que seu amigo mais querido fala dela quando ela não está presente; ou saber, do fundo da invisibilidade, o que seu namorado faz quando viaja. Mas esses são apenas exemplos banais do que seriam as sérias consequências da experiência relatada no livro de Sartre. A pergunta geral da obra é sobre o que se passaria com pessoas que nunca se viram quando vivas e que se apaixonam depois de mortas. E, mais, se tais felizardos tivessem a chance de voltar à vida para se encontrarem sabendo que morreram, quem as matou, etc.; sabendo tudo de sua vida e morte e, acima de tudo, sabendo o que se passou com elas: que ambos já morreram e que obtiveram uma segunda chance, não de renascer, mas de voltar ao momento anterior à própria morte e ter vinte e quatro horas para realizar aquele grande amor, descoberto ‘do outro lado’. Essa é justamente a bizarra situação que se encontra no livro Os dados estão lançados, como ficou conhecido no Brasil (tanto o livro como o filme, ambos de 1947),que narra a trágica história de amor de Eve e Pierre, Eva e Pedro.
Eva é filha de família rica e, ainda jovem, perdeu o pai. De sua mãe nada se sabe, mas o livro mostra que, cedo, Eva se casou com um canalha, um tipo que se aproveitou de sua inocência e desamparo; e, evidente, de seu dote. E que, agora, interessado noutro dote e em Lucette, irmã mais nova da heroína, envenena sua esposa... claro que, para saber tantos detalhes, é preciso acompanhar nossos heróis até o ‘outro lado’, pois é também de lá que se pode saber sobre Pedro: revolucionário que luta contra o poder instituído, que criou a Liga, que foi baleado por Lucien, traidor da insurreição por ele planejada. A morte de ambos se dá no mesmo dia, na mesma cidade; e, mortos, foi a maneira mais fácil de se encontrarem. Afinal, onde, senão num cemitério ou noutra vida, há a efetiva possibilidade de uma burguesa apaixonar-se por um operário e, pior, revolucionário? O ocorrido foi que Eva morre antes de conseguir revelar à sua irmã que André Charlier, seu marido, nunca a amou; que sempre a traiu, que tem uma pilha de cartas de amantes... e, ao menos por hora, sem saber que morre graças ao veneno que ele, sorrateiramente, lhe administra todo dia. Pedro, por sua vez, morre baleado numa emboscada na estrada, na véspera de realizar um golpe contra a Ditadura, representada pelo Regente.
Mortos, começa aquilo que grosseiramente se poderia chamar de outra vida. Isso porque houve (e ainda há) críticas a esse livro, no sentido de que seria algo espírita; mas tal perspectiva revela ignorância explícita da doutrina de Allan Kardec e, ainda mais, incompreensão do lugar que esse livro teria no contexto fenomenológico-existencial da filosofia de Sartre. Seja como for, no romance a morte seria uma passagem a outro plano existencial que, no entanto, coincide espacialmente com o mundo dos vivos. Pedro e Eva caem mortos, mas levantam-se e seguem para a praça da cidade. No caminho cada um, a seu modo, descobre que morreu; mas suas características não mudam em nada, permanecem os mesmos sem, contudo, poderem se ver no espelho e provocarem sombra; mais, além de não poderem se comunicar senão entre si, ou seja, nada de contato entre mortos e vivos. Ainda, uma característica importante da vida ‘do outro lado’: eles não podem efetivamente sentir ou objetivamente fazer algo.
Essa breve apresentação da vida post mortem revela que, no contexto da filosofia existencial de Sartre, existir é ser para-si e para-outro, ou seja, a supressão da dimensão histórica da existência humana já seria um tipo de morte; no mesmo sentido, encontra-se a perda da consciência ou, em casos extremos, mesmo o sonho (sono) ou a loucura. Mas no caso em tela houve de fato duas mortes, e os mortos ao chegarem ao seu destino, a praça da cidade morreram, têm sua condição drasticamente alterada. Ali sentem-se atraídos a um endereço: Beco Laguenésia, e nesse misterioso lugar lhes é exigido apenas uma formalidade, que assinem um livro confirmando sua morte, nada mais. A partir daí estariam livres, sem julgamento nem pena. Ou, do mesmo modo que antes, quando estavam vivos, a verdadeira pena é existir, é passar ao ‘outro lado’ e, ainda assim, não se tornar em-si, não fazer com que passado e futuro se encontrem, mas permanecer sendo.
Pedro não tem uma história de amor a lamentar, não tem família. Ao ser questionado sobre o que se passou diz secamente: “Eu – explica – não deixo ninguém. Estou tranquilo. Põe-se a andar no quarto, com animação, e acrescenta: Além disso, o essencial é ter feito o que eu tinha que fazer!” (SARTRE, 1947, p.41).[1] Sensação de dever cumprido, de olhar para o mundo – vale dizer desde logo, a maioria das pessoas chega a essa mesma conclusão à noite, antes de dormir – e saber que fez sua parte ou, ao menos, que não deixou nada pendente. De fato, ele era o fundador da Liga que lutava contra a opressão e o opróbrio dos trabalhadores; ele tinha planejado em detalhes a insurreição, ele tinha armado e treinado seus camaradas, ele tinha feito o que tinha que fazer: eis a consciência feliz do revolucionário, aquela que pretende conhecer de fato a história. Mas em poucas horas Pedro descobrirá que nada está pronto, que é impossível, mesmo com a morte, fechar uma existência. Eva também comparece ao lugar misterioso, também assina o livro; mas ela permanece ocupada com a existência daqueles que ficaram, ela ainda acredita que poderá salvar sua irmã.
Não são mais que atos de fé acreditar, seja na revolução, seja que se pode impedir qualquer estupidez humana. Ao menos é o que se passa quando do encontro desse malfadado casal, que nunca se viu nem se veriam em vida, mas que presenciam, mortos, a injustiça no mundo: uma criança que, distraída por um show na praça, é roubada por alguém. Eles veem, Eva quer ajudar, impedir esse absurdo; Pedro, que até então dedicara sua vida à causa da justiça, brada em desespero: “O que você quer que eu faça? Eva encolhe os ombros. Nada! Mas volta a cabeça na direção da criança: Ah! Mas é odioso, afirma, odioso não poder fazer nada. Eva e Pedro se olham novamente” (SARTRE, 1947, p. 53). Se é assim, pode-se supor que Eva fizesse algo pelas crianças quando estava viva; mas não! Encontra-se aí um forte argumento que mostra que o livro de Sartre reflete literariamente sua ontologia da liberdade, antes e mais que qualquer outra coisa, ao colocar, de chofre, um desafio aos vivos: o que você faria morto que não pode fazer agora, já?
Depois de morto nada há a fazer. Lamentam e seguem sua morte, como deve ser. Mas se em vida foi possível não ver pequenas injustiças, afinal ambos estavam por demais ocupados, ela com toda a futilidade da vida burguesa, ele com toda a seriedade da vida revolucionária, em morte é imperativo vê-la; porém, na mesma medida, depois da morte não há muito mais a fazer, senão ver. E Pedro quer, precisa ver o que se passa na casa do Regente, seu inimigo; ou, ao menos, a pessoa que representa aquilo contra o que ele passou sua vida lutando. Claro que antes Sartre brinda o leitor com uma série de exemplos anedóticos da estupidez da vida, seja dos vivos, seja dos mortos. Digno de nota é o grupo de pessoas que segue o descendente de uma família da alta nobreza, e o fazem no intuito de insultá-lo quando ele morrer; ou o pai de Eva, que frequenta o clube para jogar, ou melhor, assistir o jogo dos vivos, tendo agora a enorme vantagem de ver as cartas que estão em todas as mãos. Do ponto de vista do existencialismo de Sartre isso mostra sem meias palavras o paradoxal da existência ante a finitude; ou, dito de modo direto, a estupidez de todos os projetos humanos quando confrontados com a morte.
Pedro, morto e, portanto, sem ser visto, adentra o quarto do Regente; muitos antes dele tiveram essa ideia. Assim, no quarto repleto de pessoas mortas, passa-se o encontro de nosso herói e seu principal inimigo e seu assistente, esses vivos. Mas, conforme Pedro já disse, tudo que havia a ser feito já foi feito. Sua consciência está tranquila, ao contrário de um miliciano, que nesses termos refere-se a seu líder: “Acreditei nele (...), morri por ele. E agora vejo esse guignol: uma mulher por dia, saltos altos. É o secretário quem lhe escreve os discursos e, quando os repete diante do espelho, riem-se ambos. Acha que é engraçado ver que você foi enganado sua vida inteira?” (SARTRE, 1947, p. 61-2). Ser enganado a vida inteira é o destino natural de quem segue, tem ou acredita em líderes, nisso não há nenhuma novidade. Pode-se mesmo dizer que é justamente isso que grande parte da humanidade busca, ser enganada, quando erigem no mais alto patamar seus líderes religiosos ou políticos: a farsa é a mesma, apenas substituindo-se a Magnificência de Deus (esse Deus, evidente) pela Magnanimidade da Ideologia. Mas isso não se aplica ao revolucionário, que não colaborou, que jamais aceitou submeter-se, que morreu por sua causa. É isso que pensa Pedro. Mas será mesmo assim?
Ao morrer fecham-se os olhos. Metaforicamente, na história proposta por Sartre, passa-se o contrário: a morte traz uma visão ampliada da existência, ela permite mudar o que cada homem pensa de si, exatamente porque ele passa a se ver pelo olhar do outro. Ao tornar-se passado, ao coincidir com o em-si, o para-si (o ser humano, enfim) acaba por fechar suas possibilidades no mesmo ato em que amplia sua visão. Eva notou isso quando do episódio da criança que foi roubada, por certo ainda tocada pelo nefasto futuro que se apresentava à sua irmã. Pedro não, ele fez o que tinha que fazer. Mas o que mesmo é preciso fazer para justificar uma existência, ou melhor, uma vida? Ante a prepotência de Pedro “Os mortos respondem em uníssono: Você também! Falhamos, por certo. Todas as pessoas falham na sua vida!” (SARTRE, 1947, p. 63). O pai de Eva falhou por não protegê-la do espertalhão André ou por não protegê-la de si mesma, que estava decidida a casar-se com ele. Há alguma maneira viável de garantir o sucesso de alguma existência, seja ela qual for? Ao que parece, o senso comum responderá que sim: se a menina da praça soubesse, antes, do charlatão que ocupa sua atenção para que outro a roube... se Lucette soubesse, antes, que André é um canalha... Se Pedro soubesse antecipadamente do fracasso da revolução... se.
Sartre não é nenhum pessimista, como por vezes foi pintado; mas sua literatura, assim como sua filosofia, não tem espaço para o rosa açucarado dos finais felizes. Um velho, com o qual Pedro conversa, deixa isso claro: “Falha-se sempre na vida, no momento em que se morre”, ele diz; “Sim, quando se morre cedo demais – exclama Pedro”. Mas, é preciso admitir, “Morre-se sempre demasiado cedo... ou tarde demais” (SARTRE, 1947, p. 63).Morre-se, é o fato. Mas mais que fazer da vida destino, a morte revela a gratuidade da existência, de toda existência. Claro que o revolucionário se vê como melhor que a infeliz esposa do secretário da Milícia: ele lutou para melhorar o mundo, lutou pela igualdade, pelo fim da injustiça e da submissão política. Ele fundou a Liga, ele... ele acredita que a iminente insurreição mudará as coisas, fará com que o Regente seja deposto. Mas e se a revolta falhar, ele terá mesmo feito tudo o que tinha a fazer? Ou ele teria morrido em vão? A notícia de sua morte, quando informada ao Regente em sua presença, faz Pedro conhecer a profundidade dos fatos: seu inimigo sabe da insurreição, sabe de seus líderes, um a um (comemora a morte de Pedro), e quer muito que a tentativa de golpe não seja abortada pelo fato de terem matado seu principal líder. Tudo o que Pedro fez, tudo por que ele lutou durante toda sua existência, encontra-se em risco... Ele morreu em vão, justamente porque, agora, ele perdeu o contato com o mundo e nada mais pode ser feito.
Pedro morto, em seu desespero ante o iminente fracasso da revolta, grita para seus amigos: “É uma armadilha, rapazes! Não façam nada, é uma armadilha! (SARTRE, 1947, p. 71). Porém, no além sartriano o contato entre mortos e vivos não é mais que visual; e, pior, ele é de mão única: apenas os mortos veem os vivos. Na verdade, não se passa o mesmo dentre os vivos? Retire-se por um instante essa pecha espiritualista da compreensão mais rasteira do romance e note-se: há um dito popular que conselho se fosse bom não era de graça. E, nesse contexto, nada mais verdadeiro, pois também Eva se desespera ao ver Lucette ser tomada por seu, agora, ex-marido (SARTRE, 1947, pp. 72-4). Momento duro, mas esclarecedor: Eva acredita, como se passa no senso comum, que se estivesse viva ela poderia fazer alguma coisa. Mas a presença de seu pai dá mostras desse engodo: “Acredita realmente – ele diz – que isso seja necessário? Eu tenho muito pouco tempo, minha filha” (SARTRE, 1947, p. 73). O pai, morto há mais tempo, sabe bem daquilo que poderia ser o senso comum dos que se foram, daquilo que foi insistentemente dito a Pedro, de que nada no mundo dos vivos pode ser alterado, justamente porque cada um vive sua liberdade como destino. Noutros termos, cada detalhe da vida de cada ser humano é creditável à uma entranhada relação entre situação (corpo, lugar de nascimento, período histórico, etc.) e liberdade (como se escolhe viver o corpo, o lugar de nascimento, o período...); mas, parece, isso apenas ficará claro após a morte.
Muitos creem num céu, paraíso, ou coisa que o valha; e, salta aos olhos, cada qual diz, de seu desejo, como seria essa vida post mortem. Mas nenhuma dessas invencionices propôs algo do tipo desse ‘outro lado’ conforme o faz Sartre. Até porque, é bom estar morto? “É uma bela porcaria isso de estar morto!”, diz Pedro, ao que é interpelado por alguém que, sem esperança, faz da necessidade uma virtude: “Sim... mas tem também suas pequenas compensações... (...) Nenhuma responsabilidade. Nada de preocupações materiais. Uma liberdade absoluta. Distrações à escolha” (SARTRE, 1947, p. 79). Não, não há qualquer liberdade na morte. Note bem que esse seria o inferno para um ativista, para Pedro, que acreditou cegamente que poderia mudar o mundo, promover a justiça, lutar pela liberdade; mesmo para Eva, da qual pode-se dizer, teve uma vida fútil, mesmo ela não encontra graça nessas compensações.
A sentença de Pedro é dura, porém necessária: “São os vivos que me interessam... veja, esse velho vagabundo. É um pobre homem, o último dos homens, mas está vivo. (...) Está vivo!” (SARTRE, 1947, p. 80). Ora, o que pode haver de bom em viver? Justamente aquilo que, ao que parece, ninguém se dá conta senão depois de morto: é-se livre quando vivo. A liberdade, nesse sentido (e diferentemente do que se passará em obras técnicas da filosofia de Sartre), coincide com a vida: os vivos, mesmo um mendigo, tem possíveis, possibilidades que são suas. Morrer é uma delas, por certo; mas casar-se ou não, cair ou não na armadilha política, ou seja o que for. Enquanto vivo, a história, o destino, tudo permanece aberto. O homem tem infinitas possibilidades; quando morto ele coincide consigo. E, se é assim, a pergunta, sobre se alguém já voltou, torna-se imperativa. Voltar da morte parece ser o sonho de todos os mortos, haja vista que todos que se perguntaram sobre isso criaram histórias (com maior ou menor sucesso) sobre a continuidade da vida, seja voltando a esse mundo, seja mudando desse para outro. Não importa, Pedro parece apaixonar-se por Eva. Sim, eles se encontram novamente, conversam, dançam; ele diz a Eva: “É estúpido (...). Se eu a tivesse encontrado antes...”, ao que ela pergunta: “O que é que você teria feito?” (SARTRE, 1947, p. 84). Nada.
Isso mesmo, nada. O sentido da vida se perde ante a presença esmagadora da morte. Pode parecer a Pedro que ele está apaixonado por Eva, mas no mesmo instante eles cruzam com uma linda dama que desce de seu carro enquanto um belo trabalhador braçal passa por ela. Formariam um belo casal, concordam; mas não seria ingenuidade crer que possa haver amor entre pessoas de classes distintas? No caso dos vivos, como é natural eles nem se olham. No caso dos mortos, olham-se, tocam-se, beijam-se; mas sem nada sentir. Assim como para Platão o criado de charrua de um agricultor pobre, se fora da caverna, vale mais que o governador geral dentro dela, um mendigo está em melhor condição que o mais rico ou mais importante dentre os mortos, se ali ainda se fizessem essas distinções. Mas não, do ‘outro lado’ nada se distingue, e, também, nada se sente. Eles estão apaixonados, isso é visível na cena em que se aproximam de dois jovens vivos que se beijam; mas o que os impede, eles que estão mortos? E o que os motiva?
Dançam apenas. Nesse balé, invisível ao entorno, aos esnobes que recebem uma madame em trajes de montaria, tem-se a mais bela declaração de amor possível, para um morto, é claro:
Diga-me – pergunta repentinamente Pedro – o que é que se passa? Há pouco não pensava senão em meus aborrecimentos e agora eu estou aqui. Danço e não vejo senão o seu sorriso... se isso fosse a morte... (...) Sim, dançar com você, sempre, e não ver senão você, esquecer todo o resto... (...) A morte valeria mais que a vida, você não acha? (SARTRE, 1947, p. 92).
Na verdade, não! Um beijo entre vivos, com seu característico roçar de línguas, calor do hálito, entreabrir e fechar de olhos, etc., é superior que uma eternidade disso que Pedro diz viver com sua amada. Um dia na vida de um homem ou uma mulher vale mais que a eternidade de uma existência sem existência, que é o que Sartre mostra como sendo ‘o outro lado’ em Os dados. A interpretação mais fácil, que Sartre teria se traído em seu ateísmo ao pleitear uma história dessa natureza, simplesmente se desfaz ante o elogio ainda implícito, mas absolutamente verdadeiro, da vida, da existência. Eles dançam, mas não se tocam efetivamente; podem se beijar, mas nada sentem. Não há condenação pior que esse quase da morte, conforme descrito por Sartre: quase amor, quase horror – além de ver o que efetivamente se passa com aqueles que vivem sem poder, em absoluto, intervir. Mas a vida é diferente, pelo simples fato de ser vida. Será mesmo? Pedro admite que encontrou seu amor demasiado tarde (SARTRE, 1947, p. 93), mas uma reviravolta na história mostrará que isso não é de todo verdade.
Num movimento inusitado do romance aparece a Referência ao artigo 140, que permite a casais destinados um ao outro, que por erro da direção não se tenham encontrado, a voltarem a vida e se realizarem (SARTRE, 1947, p. 95). Isso merece algumas palavras: a burocracia erra mesmo no plano da perfeição. A ironia sartriana, característica de sua obra, não foi entendida, ao menos por quem pensou ver aqui qualquer coisa efetivamente espiritual (no sentido religioso do termo). Nós, que estamos vivos, temos problemas; e, não raro, consideramos que sejam erros da administração: alguém se considera de gosto refinado demais para aceitar as condições econômicas que tem; ou, em nosso meio, onde não faltam grandes filósofos que não entendem por que ainda não foram reconhecidos. Enfim, gente importante demais para a situação em que foram lançadas no mundo. Houve um erro. Assim como no mundo dos vivos, do ‘outro lado’ há uma reparação: ainda não se teve notícia de algum assassino ou tribunal que tenha devolvido a vida a alguém, e até mesmo com isso a genialidade sartriana brinca, afinal, para ser efetivamente justa, se a administração errou deverá devolver-lhes a vida.
Nada é de graça. Para voltarem à vida e permanecerem vivos por mais algum tempo (não viverão para sempre!) Eva e Pedro serão submetidos à algumas condições: “Eis as condições às quais vocês devem satisfazer. Vocês voltarão à vida, não esquecerão nada daquilo que aprenderam aqui. Se ao final de vinte e quatro horas vocês tiverem conseguido se amar com toda a confiança e com todas as forças terão direito a uma existência humana inteira” (SARTRE, 1947, p. 97). Há, de fato, condições para viver; mas elas são ainda mais duras quando se trata de recuperar a própria vida. Ali eles se amam, querem uma chance de voltar e, se é assim, nada mais justo que a administração exija a realização dessa promessa. Ao longo da vida não é bem assim, afinal, faz-se promessas para não cumprir. Todas as pessoas que vivem já fizeram planos, e vez por outra acabaram desistindo de leva-los adiante; é claro que existem situações em que a contingência da existência impediu a realização do planejado. Mas o que impede a consecução de uma reeducação alimentar e o consequente emagrecimento? Ou parar de fumar? Fala-se aqui dos vivos, daqueles que podem, que são pilotos em seus navios. A resposta, Sartre a dá noutro lugar; e a razão desse fracasso, o filósofo mostra claramente, é a má-fé (não se assumir enquanto agente e responsável pelo que se é, mas transferir essa responsabilidade a outro, coisa ou pessoa). Mas ela não é possível no ‘outro lado’; é preciso voltar a nosso mundo para que a liberdade e a sua negação pela má-fé se evidenciem. E é justamente o que se passa: amparados no tal artigo 140, Pedro e Eva voltam à vida, ele na estrada, ao lado de sua bicicleta onde foi alvejado; ela em seu luxuoso quarto, onde André, já abraçado na não mais tão inocente Lucette, parece comemorar o luto (SARTRE, 1947, p. 102).
A vida poderia ser a solução para os mortos. Não para os mortos antigos, que há muito convivem com a triste visão cotidiana da miséria humana, há décadas ou séculos; mas para os recém-chegados nunca se viveu o bastante, aparece sempre algo que ele não fez quando vivo e que, depois de morto, ele quer realizar. Morre-se porque se fuma, por exemplo; mas quem pararia de fumar ante o pedido de alguém que já morreu, visto não atenderem o pedido de seus amigos ou parentes vivos? Pedro e Eva pretendem interferir na vida de outros vivos (membros da Liga, Lucette...), mas o que lhes foi cobrado foi apenas realizarem, com confiança, o amor que acreditam ter descoberto quando mortos. É assim que se encontra Eva, que tenta em vão mudar a perspectiva da irmã, agora visivelmente apaixonada por André. De seu lado Pedro tentará, inutilmente, impedir a continuidade dos preparativos da insurreição, já devidamente ciente de que o Regente sabe de tudo, e que se trata na verdade de uma grande armadilha (SARTRE, 1947, p. 106-9). Mas, de que adianta argumentar com quem acredita? Os camaradas de Pedro, Dixonne e Langlois, serão incapazes de ouvi-lo, escolherão considera-lo traidor; Lucette é incapaz de aceitar o malogro de sua paixão, na qual acredita piamente, e escolhe considerar André o marido ideal e sua irmã uma desvairada. Inclusive, escolhe não olhar a gaveta onde Eva insiste que estão dezenas de cartas de amantes de André. Mas cabe perguntar, e se a situação fosse inversa? Acreditaria Pedro em seus camaradas se lhe dissessem algo semelhante? Ou acreditaria Eva se fosse sua irmã a moribunda e ela a apaixonada?
Deixem que os vivos cuidem de seus vivos. O objetivo do casal não é resolver o problema dos outros (como se existissem problemas com seus respectivos donos... Sartre, já anunciando seu humanismo radical, mostra que os problemas humanos são, sempre, de todos os homens). Os mortos, agora vivos, reencontram-se: Pedro vai ao palacete onde vive Eva, aceita entrar pela porta dos fundos, encontra-a. “Estão ambos muito embaraçados, olham-se e riem, com ar confrangido, com a diferença que ele se sente num estado de inferioridade terrível e ela, pelo contrário, está muito comovida” (SARTRE, 1947, p. 113). No caso dos mortos do romance, do mesmo modo que no plano imaginário dos vivos, tudo é mais fácil; mas Pedro encontra Eva numa casa que em tudo se parece com aquilo que ele combateu toda sua vida. Mas ainda pior será quando, em meio ao constrangimento de seu reencontro, André adentrar a sala; e ainda mais constrangedor será quando Lucette chegar, no firme intuito de defender seu futuro marido, afinal sua irmã, agora viva, interpôs-se entre eles.
Por hora Pedro, todo sem jeito ante a opulência de Eva, parece mudar de ideia: “Era mais fácil lá em cima... levanta-se, dá alguns passos, mãos por trás das costas, cada vez mais deslocado e aborrecido com tudo que o rodeia. Eva, com rosto preocupado, olha-o agora, sem uma palavra” (SARTRE, 1947, pp. 115-6). No plano imaginário não é justamente assim que as coisas se passam? Tudo seria mais fácil se... não importa que palavras ou quais boas intenções completem essa frase. O fato é que, tal qual Pedro, todas as pessoas, sem exceção, vez por outra (ou vez por todas) agem de má-fé. Assim como aquele que sai da caverna platônica reclama dos maus tratos, da violência de ser libertado de suas correntes e de ser levado para fora, em geral os humanos tendem a buscar noutro lugar a razão de ser o que é; e se lhe disserem que ele é exatamente o que ele faz – o covardeporque age covardemente toda sua vida, o avaro porque age avaramente toda sua vida, etc. – seria, do mesmo modo violência. Era mais fácil lá em cima; é sempre fácil imaginar (sonhar).
Pedro está desolado, é verdade. Mas a vida a dois não é tão simples: “Tinha as minhas dúvidas... o amor é muito bonito dentre os mortos. Mas aqui... há tudo isto...”(SARTRE, 1947, p. 116). Não importa se Pedro ou Eva, mas qualquer um deles que, vivo, sonhasse ou imaginasse seu casamento, teria encontrado o mesmo descompasso entre o que deseja e o que efetivamente lhes acontece: para saber o que é um casamento é preciso casar-se e permanecer casado por um tempo. É evidente que não se trata de mera experiência (estamos aqui longe do empirismo), mas de experiência fenomenológica: a análise dos vividos intencionais de consciência é diferente da mera existência, distinção que repete Heidegger, o ser-no-meio-das-coisas quando contraposto aos primados ôntico-ontológicos do Dasein. Imaginar, sonhar ou crer são modos diferentes de existir; e se no romance Sartre faz uso da morte, parece claro que no contexto de sua obra isso não é mais que um recurso estilístico. Afinal, nos dias de hoje, não é preciso procurar muito para encontrar pessoas que respiram, falam, agem mas que, no fundo e do ponto de vista da ação sartriana, do projeto de ser, da recusa da má-fé, estão mortas há muito tempo. Estar morto é estar impossibilitado de agir ou escolher não agir; mas transferir ao outro ou às coisas suas possibilidades próprias de ser e agir é, sem dúvida, um tipo de morte, a má-fé por excelência.
Eis Pedro e Eva, eis o casal que descobriu seu amor no ‘outro lado’. Não seria muito diferente se eles, ao invés de terem morrido, tivessem meramente sonhado ou imaginado seu idílio; conforme a ontologia de Sartre, a disparidade entre aquilo que se almeja e aquilo que efetivamente acontece não é mais que o mostrar-se da contingência do Ser. Mas existir é assumir tal contingência: o para-si é uma necessidade, ser-no-mundo, entre duas contingências, pois não é necessária sua situação (lugar, classe, tempo, etc.) e, menos, que ele venha ao mundo. O início da existência, o nascimento, por assim dizer, é absolutamente gratuito, assim como o é o gênero, a época em que cada um vem à existência, sua etnia, condição social, etc.; e, evidente, desse ponto de vista nenhum homem ou mulher é necessário nesse mundo. Psicologicamente é compreensível o acalanto que se sente quando se pensa que fomos escolhidos para a vida por um Deus que nos conhece antes que cada um se formasse no ventre de sua mãe. Nesse sentido caberia a Ele dar o direcionamento para cada existência. Pedro, ao contrário, acreditava ter conseguido realizar-se (fiz o que tinha que fazer); Eva ainda acredita poder realizar-se (salvar Lucette). Acreditam deveras que há um destino e, assim, eles, que de certo modo sabem mais que os outros, podem agir sobre o mundo, modificar as coisas. Mas a descoberta de que o destino não é mais que aquilo que cada um faz mudará a sorte desse amor que capenga já na estreia.
O tempo urge, eles precisam se amar: “Pedro se acalma um pouco, mas acrescenta com ar preocupado: Eva, será duro... O que? [ela pergunta]. Nós dois, isso será duro” (SARTRE, 1947, p. 122). Apesar de ter percebido que sua irmã não era tão inocente como antes acreditara, Eva ainda acredita na mudança, não da irmã, mas de si mesma, ou ao menos de sua situação. Insiste com Pedro, que reafirma: “Antes era antes!”. Ela, por sua vez: “Pedro! Pedro! É preciso ter confiança” (SARTRE, 1947, p. 123). Ter confiança é, ao fim e ao cabo, a única alternativa da existência. Não é por outra razão que as pessoas vão às escolas, hospitais, igrejas: elas confiam. Mas confiar é mais que ter uma fé, afinal é preciso bastante confiança para acelerar um carro e contar com os freios, ou entrar num avião e reservar um hotel para depois do pouso. Metaforicamente, é lançar-se no abismo quando adentra uma ponte, é jogar com a morte fazer uma cirurgia, é uma operação de risco entrar numa casa ou prédio, visto que podem desabar. Não. Acredita-se no engenheiro, no piloto, no sistema, na ciência. O ser humano acredita em si, enfim; mas, curiosamente, no que tange aos projetos tem-se uma fé distinta: há um destino, preparado sabe-se lá onde e por quem, e talvez o homem possa alterá-lo. É preciso ter confiança, mas até que ponto? “Você tem certeza que não sente nem um pouco de vergonha de mim?, ele insiste”, ao que ela responde: “Pedro! É você que deveria ter vergonha” (SARTRE, 1947, p. 130).
O amor entre um revolucionário e a esposa do secretário da Milícia, do explorador e do explorado, da madame e do trabalhador braçal; pode até parecer, mas não é uma novela televisiva brasileira, que necessariamente tem dois núcleos, um rico e outro pobre, que sempre se entrecruzam e se relacionam. Ora, para ser minimamente realista, a menos que tal encontro seja post mortem, o mais próximo que chegariam um do outro seria como se dá com aquela dama e o operário, que para Eva e Pedro formariam um belo casal: passariam um pelo outro, sem se olharem. Pedro, apesar de seu flagrante medo e ressentimento, está sendo realista; e para piorar as coisas, Eva é esposa do secretário da Milícia. Eis o encontro do senhor e do escravo, não mais no sentido hegeliano (ideal), mas revestido de existência: eu me faço nobre em sua miséria, e você será miserável em minha nobreza. É, também, o que se passa quando Pedro e Eva deixam o palacete, o safado André e a inocente Lucette, e voltam à leiteria – o lugar onde descobriram que se amavam antes, na outra vida. Mas agora eles não estão mais mortos, eles podem ser vistos.
Há uma acusação à filosofia sartriana de O Ser e o Nada, de que se seria uma ontogênese privada. Isso significa que o mundo seria visto e vivido exclusivamente de um ponto de vista, o individual, de cada um; e de fato é assim que se passa em Os dados, enquanto nossos heróis estão mortos. Mas agora, que eles fazem sombra e aparecem nos espelhos, os esnobes podem vê-los: a visão de um operário dançando com uma burguesa incomoda muito. Eva, porém, acredita, assume que deixou o marido para ficar com um operário: “Pobres imbecis! Estão contentes com o que fizeram? Pois bem, vou lhes dar satisfação: podem ir repetir por toda parte que deixei o meu marido, que tenho um amante, e que é um operário” (SARTRE, 1947, p. 134). O olhar do outro, dos outros, desse Outro gigante que pode ser chamado de Cultura, Sociedade ou História, esmaga o amor entre eles. No plano imaginário (ou naquele das novelas) os esnobes convidariam Pedro a sentar-se, beber algo... Pedro aceitaria, e combinariam um bridge para depois do chá; ou, quiçá, uma reunião na Liga, logo a seguir. Mas Pedro não cabe ali, não se ajusta, assim como aqueles homens seriam linchados na sede dos revolucionários. No plano do sonho, desejo ou imaginação tudo se passa sem conflito; jamais no caso da filosofia sartriana, que tem o conflito como o fundamento do modo de ser-para-outro, o que mostra que reduzir a ontologia fenomenológica à uma ontogênese privada não é mais que um glamoroso e acadêmico ato de má-fé.
Assim, longe do sonho, da imaginação ou das novelas, tem-se a angústia de alguém que, de chofre, descobre a falácia do amor sonhado ante as agruras da realidade: “Ligados? O que nós temos em comum”, pergunta Pedro. “Ela lhe põe a mão no braço e responde com doçura: Nós temos nosso amor. Pedro encolhe os ombros com tristeza: É um amor impossível!” (SARTRE, 1947, pp. 134-5). Pedro declara, e isso não é pouco: amor impossível. Os possíveis, não é novidade, são possíveis de cada um, possíveis humanos, evidente, mas que se apresentam individualmente, a cada homem, mulher, a cada para-si; e isso em razão do que cada um fez até então. Sartre é preciso, apesar da insistência de um coro (de má-fé, evidente, um tipo de senso comum acadêmico) que não vê nisso mais que a identificação entre liberdade e vontade: em situação o para-si se projeta, e o que ele faz prepara, no futuro, o que ele será. Noutro termos, cada um, porque é o que faz, será futuramente aquilo que se fizer agora. Pedro se fez revolucionário e, assim, ele não se fez um amante, ainda menos de uma mulher oriunda da classe que ele combateu toda sua vida. Imediatamente alguém lembrará: ora, mas não é uma filosofia da liberdade? Então basta mudar, afinal ele é livre para mudar! Ele é, de fato! Mas note-se que não foi Deus, nem André, nem os esnobes e, ainda menos Eva, quem declarou a impossibilidade desse amor. Foi ele, Pedro, quem hipotecou seu futuro, quem escolheu, quem declarou: impossível.
Pedro faz mais: ele age de má-fé. Não satisfeito em decidir sobre os limites de suas possibilidades, afinal, quando ele diz que o amor entre ele e Eva é impossível, ele diz que escolhe seu passado, escolhe ser revolucionário, escolhe a causa política e não o amor. Pedro transfere a responsabilidade daquilo que ele faz a outrem: “É justamente o que nos separa. É por causa de seus amigos que eu estou morto. E se eu não tivesse tido a sorte de voltar à terra, amanhã eles teriam massacrado os meus” (SARTRE, 1947, pp. 135-6). Será que não passa pela consciência do revolucionário, por um segundo sequer, que ele foi morto por destratar Lucien? Ou, ainda, que sua morte está ligada às escolhas que ele fez, desde muito antes, quando ele decidiu por sua conta criar a Liga? Ah, pode-se dizer, ele foi coagido pela injustiça, pela opressão. Não parece. Ele significou para si tais coisas como insuportáveis, e se fez um revolucionário. Não há outro senão ele mesmo nesse seu fazer-se: que ele não tenha escolhido nascer pobre, isso é evidente. Mas todo o resto foi ele se fazendo, não como mera reação às condições materiais ou culturais de seu tempo, mas como escolhas. E de novo isso fica claro, afinal ele escolhe seus inimigos, escolhe seu senhor, escolhe a revolução como panaceia de sua existência. Escolhe inclusive a razão pela qual seu amor por Eva será irrealizável.
Para aliviar um pouco a tensão eles decidem ajudar a outros, aqueles que ainda não sabem a lição que eles estão prestes a aprender: seja ‘do outro lado’, seja aqui, o mundo não vai além das escolhas que cada qual faz. “Comecemos pelo mais fácil” (SARTRE, 1947, p. 137). Antes de Pedro e Eva voltarem à vida outro morto, Astruc, disse-lhes que deixou uma filhinha, e que ela está à mercê da mãe e de seu amante. Pedro e Eva prometem salvá-la, e ao encontrarem a criança descuidada, decidem pagar para leva-la a um lugar aonde ela receberia cuidados; eles cumprem a promessa que fizeram antes de voltar (SARTRE, 1947, pp. 140-5), fato secundário no livro, não fossem as consequências para Pedro de ter ido à casa do Secretário da Milícia, de ter saído dali e de ter sido visto dançando com a esposa do Secretário (leiteria) e de, agora, pagar uma vultuosa soma a um casal desprezível para levar sua filha, e isso na véspera do golpe contra a Ditadura. Parece claro que essa sequência dará a entender que ele é um traidor. Mas como pode ser isso, perguntará o partidário da determinação, se ele é livre? Ocorre que sim, ele é livre, em situação; no plano imaginário, idílico (não ‘do outro lado’), a intenção coincide com o intencionado. Mas no mundo, efetivo, Pedro faz escolhas, e de modo algum pode controlar o resultado daquilo que escolheu: escolher exige assumir a contingência do Ser e, assim, quando escolhe ir à casa de Eva, ele dá margem à essa interpretação; caberá a seus camaradas escolher se acreditam em suas explicações ou não, conforme mostrará a continuidade do romance.
Eva é mulher, é romântica, acredita. Mas a realidade não é menos dura com ela que fora embora com seu amor verdadeiro (houve o tempo que ela considerou André seu amor). Assim, após ajudar a filha de Astruc, eles se dirigem à casa de Pedro, onde agora irão viver juntos. Pedro, porém, escolhe (como ele diz precisa) falar com seus amigos e evitar o levante; ela fica só, sobe as escadas e entra no quarto de Pedro: “Eva está um pouco perturbada de ver o lugar onde vai viver, mas se recompõe depressa. Vai até a janela e a abre...” (SARTRE, 1947, p. 149). Ela é desonesta consigo mesma e com seus sentimentos, pois, nascida em família abastada, ela agora se vê num imóvel de uma peça, mal decorado, minúsculo; mesmo assim vai à janela, sorri a seu amado. Ele se vai, e só, consigo mesma, o mundo exige de Eva sua parcela de sofrimento; ou seria melhor dizer, ela escolhe ficar ali e esperar Pedro para sofrer com ele? “A sua alegria desaparece” (SARTRE, 1947, p. 150). A verdade é que agora o mundo se lhe mostra sem palacete, jantares, casas de campo, vestidos, casacos de pele, serviçais, etc., um mundo sombrio, pequeno e pobre se anuncia. Será o amor suficiente para colorir e engrandecer essa miséria?
Pedro, no entanto, não tem melhor sorte que Eva quando vai ter com seus companheiros: “É mesmo momento para brincadeiras, por Deus! Eu lhes explico que formos descobertos. Se nos mexermos, amanhã será um massacre e a Linha será liquidada. Por que vocês me vem falar da mulher de Charlier?” (SARTRE, 1947, p. 154). Do ponto de vista, divino ou imaginário, soa como uma injustiça o que fazem com o honesto revolucionário. Mas e se a perspectiva for mudada, e esse fato for visto pela ótica dos outros conspiradores? Note-se: um dos líderes da Revolução sofre um atentado e nem se importa com sua segurança; ao contrário, decide seguir sozinho e vai à casa do secretário da Milícia; sai de lá com a esposa do secretário, vai com ela a lugares inapropriados para um revolucionário, visita uma senhora paupérrima e lhe toma sua filha, deixando sobre a mesa uma enorme quantidade de dinheiro... e, agora, no calor do momento de atacar a Regência, vem dizer aos companheiros que é uma armadilha. Alguma dúvida? Não. Ele era amante da mulher do secretário, o que já dá pistas sobre seu caráter; e agora, na véspera da revolução, fez um acordo com Charlier, que aceitou abrir mão de sua mulher. Por que? Ora, ele estava interessado na irmã mais nova. Inclusive, por isso pagou a Pedro para que partisse com Eva. O caso da soma dada pela menina também se explica: certamente é filha dele, um amante inveterado, que engravidou a mulher de Astruc e agora, com dinheiro e sentindo-se culpado, tentou dar à filhinha melhores condições de vida. Um traidor, duplamente, da causa e dos casamentos alheios, que se vendeu e vem agora retardar o ataque revolucionário para dar tempo para que a Milícia se reforce.
Nada há de inverossímil na história assim contada. Os fatos são objetivos, mas sempre há uma camada subjetiva, não há como controlar a experiência de mundo alheia, não é possível cercear a liberdade de cada um, que livremente é no mundo (interpretação). Eis que o romance adentra os meandros do perspectivismo nietzscheano:“Pedro os olhou, um a um. Sentiu-se esmagado pela onda de acusações e impotente para convencê-los” (SARTRE, 1947, p. 155). Para os revolucionários tudo é límpido: um traidor, destruidor de famílias, que no fim traiu também a revolução, um homem indigno que agora merece a morte. “Mas então, meus pobres idiotas, o que vocês pensam? Eu, eu seria capaz de entregar a Liga?!” (SARTRE, 1947, p. 156). Note-se que Pedro recorre a algum tipo de caráter que ele teria, de ser um dos líderes revolucionários, de ter criado a liga, etc.; mas ele se esquece, pobre diabo, que todas essas ações estão no passado e que, uma vez que elas foram feitas, elas deixam de lhe pertencer, tornam-se públicas, fazem parte do em-si. No tocante a viver o amor com Eva ele limita seus possíveis sem se dar conta que, agora, ele de fato encontrou alguma limitação. Ele ainda tenta: ‘Ouçam rapazes...’ – eles lhe dão as costas.
Não há nada a fazer. “Tomaram-me por um traidor! Eva escuta, em silêncio” (SARTRE, 1947, p. 159). Ele, Pedro, que colocou toda sua força na possibilidade de voltar à vida, de fazer algo diferente, de realizar seu amor, amua-se por não poder impedir aquilo pelo que lutou toda sua vida: a insurreição. Mas isso porque, devido ao fato de ter morrido, ele sabe que o levante vai fracassar; e se alguém, não ele, dissesse que havia morrido e voltado, que sabia do fracasso da revolução, ele não o tomaria por um louco? Seus camaradas não perdem tempo, um traidor precisa ser expurgado: eles pretendem ir à casa de Pedro para matá-lo; e como Eva também estará ali, o melhor é não deixar testemunhas. Um amigo, talvez o único verdadeiro, vem lhe dar essa notícia. Pedro, agora o mártir, decide ficar; mas exige que Eva se vá, ao que ela responde: “Não tenho medo da morte, Pedro. Já sei o que é! Inclina-se para a jarra de flores, toma uma rosa e a põe nos cabelos. Além disso, continua, de qualquer maneira vamos morrer, não é?!” (SARTRE, 1947, p. 161). De fato, se em menos de vinte e quatro horas eles não se amarem, sem qualquer medo ou desconfiança, voltarão ao ‘outro lado’. Mas pior que morrer é falhar: o mesmo Pedro, que disse triunfante quando de sua primeira morte, que já tinha feito o que tinha de ser feito, amofina-se agora porque não consegue impedir que aquilo que ele preparou, a revolução, aconteça. Sartre, num lance de dados, mostra não apenas que a interpretação contrária dos camaradas de Pedro é legítima como indica que também Pedro pode mudar sua acepção das coisas, bastando para tanto lhe dar razões para isso, vive-las de modo diferente.
Pedro, já avisado, deveria fugir e salvar sua vida; mas ele decide ficar, escolhe morrer. Eva se desespera: “Vamos lá, Pedro, confesse... que não foi por mim que quis voltar à vida. Foi pela sua insurreição... agora que ela vai falhar, a morte é indiferente. Sabe que eles vêm mata-lo e fica aqui”, ao que Pedro responde: “E você, não foi por Lucette que voltou?” (SARTRE, 1947, p. p. 161). A troca de acusações mostra a incerteza das ações quando decididas em função do outro; afinal, quando souberam do artigo 140 pode ser que, ambos, tenham visto aí a possibilidade de não falhar: Pedro reagendaria a insurreição para um momento mais propício, retardando por um tempo a felicidade do Regente; Eva estragaria a felicidade do ex-marido e a felicidade, temporária que seja, de sua irmã. Ambos preferem a morte, já que seu fracasso lhes foi imposto, de um lado pelo Regente, doutro por Lucette. Os assassinos, talvez justiceiros fosse mais apropriado (ainda que a morte seja uma e a mesma), chegaram: “Eles vão disparar pela fechadura, vão disparar sobre nós. Mas senti seu corpo contra o meu e só por isso valeu a pena ter voltado à vida” (SARTRE, 1947, p. 163), assim como antes apenas dançar com Eva e ver seu sorriso valeria toda uma eternidade. Ela, além de romântica e crédula, a essa altura não se lembrava de que Pedro não cumpre suas promessas amorosas; ela escolhe acreditar nele mais uma vez.
“Eva, não há ninguém a não ser nós dois... estamos sós no mundo. É preciso que nos amemos, é nossa única oportunidade” (SARTRE, 1947, p. 164). De fato, a iminência da morte parece corroer a realidade: Lucette, a essa altura, dorme com André, e os camaradas de Pedro estão à porta para mata-lo e à Eva, seu amor; mas o mundo não importa, estamos sós. Por alguma razão os assassinos vão embora, e o leitor pode exercitar-se para inventá-la, já que o livro dá margens para isso. Pode ser que fossem supersticiosos, e que tenham combinado que se houvesse flores sobre a mesa era um sinal para não os matar (e havia, Eva decorou o quarto); pode ser que fossem românticos, e que ao verem os dois abraçados, tenham decidido mata-los no dia seguinte. Pouco importa, pois assim como se passa com o horóscopo, tarô, bola de cristal ou seja lá o que for, cabe ao agente decidir o sentido de seu ser. Cabe a Eva e Pedro decidirem sobre o porquê de não terem sido mortos: “Eu te amo... (...) Eles partiram porque nós ganhamos o direito de viver”, ou melhor, de permanecerem vivos (SARTRE, 1947, p. p. 165-6).
No mundo há o outro, para o bem ou para o mal. Eles haviam dito, “Estamos sós no mundo” (SARTRE, 1947, p. 167). Mas será mesmo assim? Em sua ontologia Sartre mostra que o ato absoluto do aparecimento do para-sié, também, o momento em que o mundo vem ao ser e, ademais, ocorre o aparecimento do outro. Isso mesmo: na ontologia o ser-para-outro é contemporâneo do ser-para-si, o que mais uma vez desautoriza aquela interpretação de ontogênese privada, pois ela se deu, desde sempre, ante o olhar estrangeiro; não se pode esquecer que Sartre insiste que o outro é o que há de mais importante para que eu me conheça, afinal, ele é o único que pode nos conhecer de fora. E é por isso que eles se traem, que traem seu amor: “Não tens pena de seus companheiros?”, pergunta Eva, já pressentindo o que vai acontecer; “E você? Tem de Lucette?” (SARTRE, 1947, p. 166). A cena é dramática, desagradável, triste; longe do sonho ou da imaginação (e das novelas), esse momento expressa aquilo que em geral se passa na realidade: Pedro ouve a marcha dos soldados da Milícia, pensa em seus amigos, decide falar com eles ao menos mais uma vez, quer dissuadi-los, convencê-los que se trata de uma armadilha. Melhor, quer ter razão, quer mostrar que ele não é um traidor, quer novamente liderar. O amor não pode fazer frente ao orgulho, menos ainda ao desejo de poder.
Nada pode impedi-lo. “Ajoelhada diante dele Eva suplica: Pedro, neste momento... você tem deveres comigo”; e ele, a pedra, decide: “Tenho de ir lá embaixo” (SARTRE, 1947, p. 168). Tudo isso pode ser descrito como uma nobre atitude. Mas, em verdade, o uso inadequado das noções de respeito e liberdade tem feito seus estragos! E Pedro acredita em algo a fazer. Insiste:
Não tudo. Ouve: há uma reunião de chefes de seção dentro de meia hora. Vou lá. Tentarei detê-los. Qualquer que seja a decisão deles, voltarei antes das dez e meia. Iremos embora, Eva. Sairemos da cidade, juro! Se você me ama, deixe-me partir. Sem isso não poderei nunca mais me olhar num espelho. Ela aperta-se desesperadamente contra ele. (...). E você, me esperará aqui? (SARTRE, 1947, p. pp. 169-0).
Pobre Eva, abandonada por seu amor. Não! Melhor saber antes o que ela responde à essa pergunta: “Não, vou tentar encontrar Lucette. Você me telefona” (SARTRE, 1947, p. 170). Enfim, tanto um como outro mostram que preferem não falhar naquilo que escolheram como sua verdade do que, abrindo mão de seu destino, realizarem seu amor.
Ambos parecem desesperados. Mas vale perguntar: para viver ou para não falhar? Pedro corre para a reunião dos revoltosos, a última, antes do início da insurreição; Eva corre ao palacete, precisa tentar uma última vez dissuadir Lucette de envolver-se com André. Mas Eva descobre que sua irmã já ocupou seu lugar em sua cama, ao lado de seu ex-marido; então, ela poderia deixar isso para lá, ir ter com Pedro. Mas não, ela obriga Lucette a ouvir sua história, a sequência de traições a qual foi submetida. Ela o faz para que, se a irmã já estava apaixonada e já tinha ocupado seu lugar? Não é possível saber, mas essa nobreza fraternal esconde ares de um enorme prazer vingativo. E enquanto Eva conta a história de André, usando a arma de Pedro para convencê-los a ouvir, Pedro invade a reunião e tenta, contra Dixonne e Langlois, explicar que não é traidor e que sua intenção é evitar um massacre. Sartre é genial ao mostrar indiretamente tanto o prazer sentido por Eva ao fazer a irmã e André sofrerem com sua história, ela porque perde sua ilusão, ele seu dote, quanto ao fazer ver o ar vitorioso, os risos contidos de Pedro, quando percebe que parte dos revolucionários começam a ceder a seu discurso, que eles voltam a acreditar nele. Então, vingados e justiçados, eles podem ficar juntos? Claro, se fosse uma novela. Mas a literatura de Sartre é coerente com as mazelas mundano-concretas; uma ligação telefônica põe em marcha o último ato de má-fé de Pedro: “Já começou. O grupo norte ataca a Prefeitura” (SARTRE, 1947, p. 182).
Pedro reveste-se da pele de mártir. Ele faz o que faria Eva, se voltasse daqui a alguns anos e pudesse falar com sua irmã: “Vocês tinham apenas que me escutar quando ainda era tempo. Agora, virem-se, eu lavo minhas mãos!” (SARTRE, 1947, p. 183). Lavar as mãos não é a fala do mártir, não foi Jesus, mas Pilatos quem a escreveu na história. Ele pode fazê-lo, é claro, ele deve fazê-lo, ele jurou a Eva e, ademais, se ele tem alguma pretensão de continuar sua luta pela justiça e por suas convicções políticas, o único meio de fazê-lo é fugindo, é indo encontrar Eva, é vivendo, enfim. Mas não, ele é livre, é ele quem elege prioridades, é ele – e lamentavelmente não é o leitor – quem irá decidir. E para o desespero geral ele conclui: “Está bom, eu fico...” (SARTRE, 1947, p. 183). Ele diz, em quatro palavras, que está feliz, pois agora é novamente reconhecido como líder, como incorruptível, como honesto... ele diz mais: não se importa com a morte, desde que seja honrosa e, claro, que seu amor por Eva – aquele descoberto ‘do outro lado’ – não é suficiente para que ele abandone suas crenças e arrisque, uma vez na vida, ser feliz. Mas cabe ao menos dar uma satisfação a seu amor: ele entra na cabine telefônica, a mesma na qual uma ligação acabara de informar do início da insurreição. Ele precisa dar alguma satisfação a Eva.
Eva não é esperta, mas é romântica, sonhadora... ela, conforme ela mesmo disse, acredita: “Ah, não, não Pedro! – repete, perturbada. Não podes... Não é possível! Você vai se matar, é absurdo. Lembre-se que eu te amo, Pedro... e foi para nos amarmos que nós voltamos” (SARTRE, 1947, p. 185). Nesse ínterim Lucien, que seguia Pedro há algum tempo, avisa a Milícia do lugar onde os conspiradores estão reunidos; e enquanto o barracão é cercado Pedro permanece irredutível ao telefone. Eva suplica: “Não Pedro, não faça isso! Você mentiu... me abandona... nunca me amou!” (SARTRE, 1947, p. 187). Essa pergunta Eva poderia fazer a si mesma: eu, amei? Faltam minutos para completar as vinte quatro horas e o amor entre eles morre, numa brutal expressão de que também o amor é uma escolha. Escolhe-se amar ou odiar, e nesse caso, escolhe-se quem e o que amar, antes e mais do que o amor. Ao menos é assim que, do lado de Pedro, morre seu amor por Eva: “Mas eu te amo, responde Pedro. Amo, mas não tenho direito de deixar meus companheiros” (SARTRE, 1947, p. 187). De novo, Pedro e sua má-fé: esconde-se atrás do direito, que ele mesmo se nega, de amar Eva completamente. Dez e meia: enquanto LucienDerjeu dispara raivosamente sua arma contra Pedro Eva cai morta, no quarto que fora seu, dessa vez ao lado de Lucetteque chora, preocupada com o bem-estar de André, seu amor.
A violência se espalha por toda cidade, a revolta é esmagada. Pedro está sentado, alheio a tudo, morto num banco da praça, ao lado da morta Eva: “Parece que pela primeira vez Eva foi atingida pela indiferença da morte”(SARTRE, 1947, p. 191). De fato, Eva teve esperança, de mudar a irmã e de que Pedro a amasse, que ele fosse encontra-la no palacete; Pedro, sabe-se lá por que, ainda pergunta sobre Lucette. Eva responde: “Dentro de algumas dezenas de anos (...) ela estará morta como nós... um breve momento que passa...” (SARTRE, 1947, p. 191). A vida, um breve momento que passa; e que comporta consigo tudo o que pode valer a pena, tudo o que poderia justificar toda e qualquer existência, tudo... que não é mais que a abertura ao ser, as possibilidades próprias de cada existência. O mendigo vivo vale mais que o nobre morto justamente por isso: aquele pode, por improvável que seja, tornar-se rico enquanto esse não mais existe, não será mais que o pó (cadáver, cinzas, nada) que é ao olhar dos vivos. Viva Eva poderia encontrar outro marido, encontrar um amor verdadeiro, ser feliz... ou felicitar-se quando sua irmã viesse lhe falar do quanto André é ruim. Vivo, e ele mostrou isso, Pedro pode convencer as pessoas, pode fazer política, pode organizar uma insurreição, pode vencer a injustiça... pode até mesmo apaixonar-se e se fazer amado. Já mortos, é como estar sonhando ou imaginando.
O último movimento do livro é perturbador. Ao serem vistos novamente ali, ‘do outro lado’, sentados juntos, o velho do início do livro lhes pergunta sobre o que se passou; e a desesperança da morte é terrível. Eva responde: “Não, não conseguimos. Os dados estavam lançados. A oportunidade foi apenas uma” (SARTRE, 1947, p. 192). Sim, os dados estavam lançados; mas quem os lançou? Não foi Deus, nem a natureza, nem qualquer outra pessoa. A administração lhes deu uma oportunidade, e eles não aproveitaram; Eva tinha sido fútil toda sua vida e, agora, até deu mostras de que queria de fato mudar, mas, ao fim, ao invés de usar a arma de Pedro ou as suas armas para impedir que ele fosse ver seus amigos, ela aceitou deixa-lo partir (note-se: faltava uma hora para que não mais morressem e tivessem todo o resto de suas vidas pela frente); mas em troca ela também foiter com sua irmã. Pedro até olhou para si como homem, por alguns momentos ressentido na luxuosa casa de André e Eva, por uma noite amado por Eva; mas ao fim seu orgulho político falou mais alto, e como se passa com todo mártir, ele foi morto – de novo sem lutar e, de novo, antes de ver seus amigos serem esmagados. E pior, ele não pôde evitar o curso da história, já decidida. Não por nenhuma força que paira sobre a cabeça das pessoas, mas de um lado por seus amigos, de outro pelo Regente e pela inteligência da Milícia (traidores, evidente).
Não há muito mais a dizer. O amor falhou. A despedida é nefasta: “Virá ao tal clube? – pergunta Pedro. Talvez, ela responde. Então... até breve. Apertam as mãos e separam-se” (SARTRE, 1947, p. 193). Mas o amor que falhou foi justamente a farsa encenada pelo casal que, a despeito da real intenção de cada um, usaram sua paixão como justificativa para terem uma segunda chance. Sartre foi sim, irônico, ao mostrar que mesmo no plano da perfeição a burocracia erra; mas o refinamento da ironia somente pode ser entendido em sua totalidade no final do livro: o erro da burocracia, mesmo lá, é o erro das escolhas, aqui. Mas antes de tirar as conclusões finais desse trabalho, que nada tem de espírita, um pouquinho de espiritual e muito de espirituoso, é preciso falar de um casal de jovens que interpela Pedro e Eva para saber se eles tinham mesmo voltado à vida e, claro, saber mais notícias sobre o artigo 140. “É verdade que se pode tentar recomeçar a vida?, insiste o rapaz” (SARTRE, 1947, p. 194).Comovente essa história, de jovens cheios de esperança, que nunca se viram em vida e descobrem, mortos, que se amam. A postura de Pedro e Eva é enigmática. Não dá para ter certeza do porquê, se é devido ao mais seco amargor da morte ou se porque estão com pena do casal: “Pedro e Eva se olham, hesitantes, e sorriem com simpatia para os jovens. Experimentem!, aconselha Pedro” (SARTRE, 1947, p. 194).
Experimentem! A vida, ou melhor, a existência, não é muito mais que essa experimentação. Mas se pode haver alguma beleza nisso tudo é que, embora sabendo do futuro, enquanto vivos tudo pode ser alterado. Eva sabia que André a envenenou, que teve amantes... e deduziu daí que ele fará o mesmo com Lucette. Mas será mesmo assim? Pedro tem certeza que a revolução ia ser esmagada, e de fato o foi; e ele julga isso ruim. Mas o que ele propunha para substituir o Regente era mesmo melhor do que o que já se tinha? São apostas. Pode-se usar aqui um termo técnico, projeto: projetar-se é fazer uma aposta. Eva, quando não ouviu seu pai para casar-se com André apostou, e perdeu; Pedro, quando fundou a Liga e escolheu um lado para lutar, não conquistou o poder, ou seja, perdeu. Mas perder não é exclusividade deles: o miliciano, que lutou ao lado do Regente também perdeu, Lucette que elegeu seu cunhado para marido... ainda não perdeu. A vida é a abertura, é a existência, é nadar num mar de possíveis. “Experimentem, apesar de tudo, murmura Eva” (SARTRE, 1947, p. 194). E os jovens, sorridentes, descem para a leiteria; e “Lá embaixo, na pista deserta, os jovens se abraçam e começam a dançar, tentando voltar à vida...” (SARTRE, 1947, p. 195). Vale experimentar, sempre! Apesar de tudo...
AUTOR
*Luciano Donizetti da Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (1999), mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (2002) e doutorado em História da Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor de Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, no Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Filosofia. Bolsista CAPES, Estágio Sênior (Université Jean Moulin, Lyon), processo n° 2631/15-6.
[1] Tradução nossa, do original, 1947. SARTRE, J-P. Les jeux sont faits. Paris : Les Éditions Nagel.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016
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Belíssimo texto!
ResponderExcluirTexto maravilhoso, obrigado por isso.
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