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Filosofia e Literatura: caminhos cruzados

Douglas Garcia Alves Júnior*



        Proponho ao leitor percorrer comigo alguns caminhos nos quais ele encontrará questões que surgem quando começo a pensar a relação entre filosofia e literatura. Sem pretensão de exaustividade, trata-se, antes, de indicar aquilo que, no meu entender, parece funcionar melhor quando se trata da abordagem filosófica de obras literárias.

           O CAMINHO DE SUBIDA E O CAMINHO DE DESCIDA

É um hábito comum pensar em literatura e filosofia como categorias sólidas, essenciais, como se tivessem existido desde sempre em um céu das idéias. Há uma longa história por trás deste engano, que, se não é mais o do especialista, ainda tem influência sobre os juízos presentes na cultura. Essa noção do senso comum pode ser retraçada na história da filosofia, a partir de um contraste entre duas maneiras de conceber a relação entre filosofia e literatura. São dois caminhos diferentes.

 O caminho de Platão não fala de literatura, mas de mímesis, imitação: as obras dos poetas e dos compositores de tragédias levam as almas para longe da verdade. Essas obras poderosas aprisionam a alma no mundo sensível, onde, cativas, deixam de ascender ao inteligível, fonte do belo, do bom e do verdadeiro. A filosofia é aqui entendida como algo normativo, transcendente e sem história: filosofia, atividade da parte mais elevada e inteligente da alma, que permite condenar o desvio pelo sensível que as palavras dos poetas abrem.

Há a via de Aristóteles, que também fala de mímesis: as obras dos poetas e dos compositores de tragédias são imitações de ações humanas, carregadas elas mesmas de elevação, pois as paixões não excluem a nobreza dos caracteres. A filosofia é também aqui normativa, mas de modo imanente e histórico: há uma gênese das tragédias, que o filósofo se esforça por reconstituir. O que medirá o valor das tragédias será uma análise imanente dos seus elementos estruturais, empiricamente reconstituídos pelo filósofo. As obras dos poetas e autores de tragédias, longe de aprisionar as almas, estimulam a ação de sua mais nobre potência, o desejo de conhecer, que se exercita no reconhecimento do nexo das ações e da coerência dos caracteres dos personagens representados.

Esses dois caminhos, o de Platão e o de Aristóteles, permitem entrever dois tipos ideais de relação da filosofia com a literatura, na modalidade da relação de ambas com a história. Platônicos, desejamos estabelecer valores sem história e condenar na literatura aquilo que a aproxima dos poderes do sensível. Aristotélicos, buscamos na história dos meios de representação as condições de sua inteligibilidade imanente, valorizando na literatura aquilo que, com os meios do sensível, aponta para a dimensão metafísica da ação humana.

MÃO PESADA DA FILOSOFIA E TECIDO DELICADO DA LITERATURA? 

Escrevi dois ensaios sobre a obra do escritor brasileiro Modesto Carone, mais especificamente, sobre seus livros “Resumo de Ana” e “Por trás dos vidros”. Escrevi também um ensaio sobre “Infância”, obra memorialística de Graciliano Ramos[1]. Acredito na validade das interpretações que desenvolvi nestes artigos. No entanto, sou filósofo, e, como o gênio maligno de Descartes, a dúvida me persegue, de tempos em tempos: terei descido a mão pesada da filosofia sobre as fibras delicadas da literatura? Terei imposto à experiência complexa daquelas obras literárias um molde de leitura filosófica, exterior ao seu elemento literário, e, portanto, redutor e deformante? É difícil saber, e a dúvida, aqui, funciona como motivação para um esforço de respeito à especificidade literária das obras que o leitor-intérprete-filósofo irá abordar no futuro.

Encontrei em Fábio Durão, pesquisador e docente da UNICAMP na área de Teoria Literária, uma pequena “fábula” que ilustra bem o que pode ser essa relação redutora entre a filosofia e literatura:

Não deixa de ser engraçado imaginar o mercadão das Letras, uma feira com todo mundo aos berros: “Olha aqui a minha Clarice e o indizível, olha aqui, tá barato hoje, madame, é só hoje, olha aí a Clarice e o indizível”. E o outro, do lado dele: “É o nosso Machado dialógico! Compra dois e leva três!” – “É o Derridaaah, é o Derridaaah, quem vai querer?” – É só na minha mão, Adorno e a formação, é só na minha mão...[2]

O que Durão imagina de forma divertida é um fenômeno bastante sério, ele sabe bem disso, pois é um crítico das práticas reificadoras da Academia, tanto no Brasil quanto em âmbito internacional. Práticas que sufocam o objeto que deveriam iluminar, sob o pretexto de exibir informação teórica atualizada[3].

Na verdade, eu próprio tomei consciência do que poderia chamar do problema da filosofia da literatura lendo Hannah Arendt, em um texto sobre a filosofia da política. A passagem principal a esse respeito é a seguinte:

Parece óbvio demais, quase uma banalidade, e no entanto geralmente se esquece de que toda filosofia política expressa, antes de mais nada, a atitude do filósofo em relação aos assuntos dos homens, os pragmata on’ antrôpôn, aos quais também ele pertence, e de que essa atitude envolve e expressa a relação entre a experiência especificamente filosófica e nossa experiência quando nos movimentamos entre os homens. É igualmente óbvio que toda filosofia política, à primeira vista, parece enfrentar a seguinte alternativa: ou interpretar a experiência filosófica com categorias cuja origem se deve à esfera dos assuntos humanos, ou, ao contrário, reivindicar prioridade para a experiência filosófica e julgar toda a política à sua luz[4].

Pela primeira vez, já faz muito tempo, tomei consciência da mão pesada que a filosofia pode mostrar quando interpreta um fenômeno da experiência humana, isto é, algo da ordem do contingente, do perecível, do ambíguo e do particular.

AQUILO QUE FUNCIONA E AQUILO QUE NÃO FUNCIONA

“Sim”, o leitor poderá me responder, “mas como vou me orientar, como distinguir entre uma leitura filosoficamente orientada que respeita e amplia a compreensão de seu objeto literário, e outra leitura, que apenas o apanha em sua rede de conceitos, como ‘exemplo’ ou ‘aplicação’ de noções previamente articuladas?”

Vou ser bem direto: não funciona aplicar um motivo filosófico prévio à interpretação de um texto literário. Vou chamar isso de “jogar a rede”. As obras, como “peixes”, ficam presas nessa rede de malhas tão estreitas.

Vou ser um pouco menos direto, pois aqui há margem para indeterminação: o que funciona na interpretação filosoficamente orientada de um texto literário é uma espécie de fotografia do “pulo do gato”. É mostrar, a partir de “dentro”, o que faz um texto literário ser bom, ser um grande texto literário. Não há receita de como fazer isso, e são poucas vezes que isso é conseguido por um leitor-intérprete-filósofo – aliás, seja este filósofo de profissão, ou não. O que me importa, quando uso o termo “filósofo”, é a capacidade que tem um intérprete de fazer uma explicitação racional de um construto literário, em suas relações internas, no plano do texto, e externas, no plano da sociedade e da experiência humana. João Luiz Lafetá[5] lendo Graciliano Ramos é filósofo, assim como são filósofos Alfredo Bosi[6] e Alcides Villaça[7] lendo Drummond. Saímos da leitura de seus ensaios críticos mais conscientes da dimensão filosófica das obras literárias tratadas por eles.

O “pulo do gato”, contudo, é difícil.

Darei o exemplo de um excelente crítico literário, Otto Maria Carpeaux. No mesmo texto, ele faz o que chamei de “jogar a rede” para pescar os peixes (o problema todo é que os peixes já estão previstos na rede) e, assim, fracassa, a meu ver, e – como um zagueiro que marca um gol contra no primeiro tempo, mas acaba por se redimir no segundo tempo, ao marcar um gol no adversário – ele também faz a “fotografia do pulo do gato”. Passemos ao texto de Carpeaux, “Visão de Graciliano Ramos”, publicado como posfácio a Angústia, de Graciliano Ramos.

Carpeaux “joga a rede”:

Vou escolher um processo estranho, estranho como o meu assunto. Vou construir uma teoria para apanhar a minha vítima, vou construí-la de pedaços de outras criações, alheias, com as quais Graciliano não tem nada que ver, entregando-me ao jogo livre das associações. ‘Gastei meses construindo esta Marina que vive dentro de mim, que é diferente da outra, mas que se confunde com ela’. Vou construir o meu Graciliano Ramos[8].

“Vou construir uma teoria para apanhar a minha vítima”, escreve Carpeaux, como quem se prepara para jogar uma rede. E passa a falar de motivos literários de Gontcharov, Saltykov, Julien Green, Thomas Hardy e, finalmente, da filosofia de Schopenhauer:

Como psicólogo [Schopenhauer], reconheceu que toda misericórdia para com outros é secreta misericórdia para consigo mesmo: e salvou-se moralmente pela identificação panteísta do seu eu angustiado com o mundo sofredor, pela fórmula budista: “Tat twam, asi”, “Isto, és tu” O seu supremo egocentrismo chegou até a negar a realidade do mundo exterior; considerou a vida um sonho, sonho horrível do qual existe apenas uma possibilidade de acordar: em outro sonho, na arte[9].

Schopenhauer fornece a Carpeaux a “rede”, a “teoria” que determinará a leitura de Angústia, de Graciliano:

Explica-se assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o egoísmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda generosidade; mas a substitui por um sentimento mais vasto de identificação quase mística com as criaturas da imaginação, até a cachorrinha Baleia: “Tat twan, asi” (...) Todos os romances de Graciliano Ramos – e este é o sentido do seu experimentar – são tentativas de destruição: tentativas de “acabar com a minha memória”, tentativas de dissolver as recordações pelos estranhos hiatos de um sonho angustiado.[10]

Graciliano Ramos deve ser um peixe ensaboado, pois ele não se deixa pegar nesta rede, penso eu. Mas Carpeaux faz melhor, no mesmo texto. Ele chega perto de algo como a fotografia do pulo do gato:

[Graciliano] é muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial, as descrições pitorescas, o lugar comum das frases-feitas, a eloqüência tendenciosa. Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, capítulos inteiros, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo: para guardar apenas o essencial, isto é, conforme o conceito de Benedetto Croce, o elemento ‘lírico’. O lirismo de Graciliano Ramos, porém, é bem estranho. Não tem nada de musical, nada do desejo de dissolver em canto o mundo das coisas (...) o lirismo de Graciliano Ramos é amusical, adinâmico; é estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um oculto passado parnasiano do escritor. Não quer dissolver o mundo agitado, quer fixá-lo, estabilizá-lo. Elimina implacavelmente tudo o que não se presta a tal obra de escultor, dissolve-o em ridicularias, para dar lugar aos seus monumentos de baixeza[11].

Perfeito. É uma atitude, um ângulo de abordagem inteiramente diverso, no mesmo texto: ele penetra surdamente no reino das palavras de Graciliano. É interessante perceber que Carpeaux-rede se faz Carpeaux-gato, isto é, ele acerta a visão – verdadeiramente filosófica – da obra no momento mesmo em que passa a mimetizar seu ritmo, seu estilo quebrado, anguloso e avesso à totalização de sentido.

            É preciso que a rede se faça gato, e que o gato seja entendido como rede.

AS VOLTAS QUE O GATO DÁ

       O percurso que propus ao leitor é, de fato, simples. Ele pode ser reduzido a três enunciados: Filosofia e literatura são práticas culturais, não essências anistóricas.

São possíveis leituras filosóficas de textos literários, mas não ao modo de aplicação de filosofemas.

            A leitura filosófica de um texto literário é uma exposição imanente de seu processo de constituição.
           

AUTOR 

*Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em Filosofia pela UFMG, com pós-doutorado pela UERJ, é professor do Departamento de Filosofia e do Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da UFOP. É autor dos livros: Depois de Auschwitz: a questão do anti-semitismo em Theodor Adorno (Annablume), Dialética da vertigem: Adorno e a filosofia moral (Escuta) e organizador dos livros Os destinos do trágico: arte, vida e pensamento (Autêntica) e Artefilosofia: antologia de textos estéticos (Civilização Brasileira).







[1] Quanto aos dois primeiros, cf. “A restituição do corpo na Teoria Estética” e “Figuras do deslocamento em Por trás dos vidros, de Modesto Carone”, ambos publicados em Adorno material: ensaios de Teoria Crítica. Ouro Preto: Editora UFOP, 2015. E quanto ao último, cf. “A fenomenologia do estético em Infância, de Graciliano Ramos”, publicado em: Freitas, Verlaine; Costa, Rachel; Pazetto, Debora (orgs.). O trágico, o sublime e a melancolia. Volume 2. Belo Horizonte: Relicário, 2016.
[2] Durão, Fábio Akcelrud. Fragmentos reunidos. São Paulo: Nankin, 2015, p. 119.
[3] Há outro aspecto do mesmo fenômeno, que atinge a formação do estudante de Letras, de Filosofia e de áreas afins: a substituição da leitura do texto literário pela leitura do comentário filosófico. Ao invés de ler Proust, “é preciso” ler Deleuze. Ao invés de ler Baudelaire, “é preciso” ler Walter Benjamin. É o que “cai na prova”. A experiência com os textos literários é, assim, reduzida ao conforto da “aplicação de teses”.
[4] Arendt, Hannah. Filosofia e política. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, p. 106s.
[5] Cf. “O mundo à revelia”. In: Lafetá, João Luiz. A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004.
[6] Cf. “ ‘A máquina do mundo’ entre o símbolo e a alegoria”. In: Bosi, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003.
[7] Cf. Villaça, Alcides. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
[8] Carpeaux, Otto Maria. Visão de Graciliano Ramos. In: Ramos, Graciliano. Angústia. 28ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 241.
[9] Idem, p. 243s.
[10] Idem, p. 245s.
[11] Idem, p. 239.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 3 | vol. 1 | Ano 2016

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