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Vinhos, garrafas, segredos

Nilo Henrique Neves dos Reis*


Uma característica fundamental do realismo mágico, como gênero literário, é a sua capacidade de que os eventos relatados tenham uma relação muito estreita com a realidade, mas, por incrível que seja a semelhança, é improvável que tal liame se estabeleça. Como o tempo é distorcido, neste universo cíclico, as percepções sensoriais que são irreais se misturam com uma força mística ao real. (Olin Sier, My life, 1968, p. 46)

Era uma noite de alto-cúmulo protocolar, mas não por vontade própria, pois ainda não tinha conhecimento das coisas que se localizam sob a lua, e sim porque as nuvens obedeciam à classificação científica.  Interesso-me somente por mulheres e vinhos.  Ultimamente, no entanto, tenho pensando na alma feminina. Contudo, mesmo os gregos não chegaram de modo preciso neste assunto, uma vez que eles entendiam como psiché, isto é, como um duplo do corpo, como uma sombra; depois, como movimento; e, finalmente, nas seitas posteriores, algo próximo ao conceito cristão.  Porém, não fazem nenhuma notificação à feminina.

Mais de uma vez procurei encontrar tal entidade e, uma vez ou outra, tento pensar e expor com alguma clareza acerca deste tema. Tendo em mente o conselho do filósofo Ortega y Gasset, procuro demonstrar (como a uma equação matemática) minhas imprecisões com esta cortesia. A pergunta O que é a alma feminina? ocorreu-me em diversas fases de minha existência.  No entanto, para que o pensamento tenha uma alvenaria adequada, visto nossa incapacidade de perscrutar, cabe recorrer a algum filósofo, pois suas ideias podem nos orientar com alguns cuidados. Pouca importância teria nosso tentame se não me aproximo de seus conceitos, mas no momento é só uma ideia.  Posto isto, algumas ideias de Althusser visitavam-me, mas algo dificultava entender a filosofia como um instrumento de demarcação entre as ciências e as ideologias e sua relação com o objetivo proposto. Jean-Paul Sartre nos indagava sobre a existência da responsabilidade com o outro e tampouco sucesso obteria com essa ajuda. Apelava a outro filósofo alemão que trata de questões próximas, mas só mirava a angústia. Encontrava-me realmente numa situação de altibaixos. As pálpebras teimavam em ficar pesadas, assim como os nervos cranianos se recusavam a descansar, porém, em algum lugar, imaginava uma pequena conspiração a favor, pois acreditava que alguns impulsos inibidores terminassem aquela longa noite, longa noite...

Por um lado, resolvi recusar todas as evidências dos livros, pois neles não aprendemos nada sobre as mulheres e suas almas femininas. Recusava, assim, todos os pressupostos para uma crítica embasada numa história e, desgraçadamente, ousava um resultado inesperado.  Decidi caminhar pelas margens das coisas imprensas. De outro lado, procurei encontrar um meio capaz de conduzir o pensamento a superar seu próprio esquema de pensar, isto é, abandonando Althusser, Sartre e qualquer outro pensador presente e, principalmente, uma recente influência vinícola que recebeu a designação: incondicional bloqueio alógico para o pensar. Quanta contradição: recebendo influências e, ao mesmo tempo, negando-as.

Busquei na poesia dos Mários, Quintana e de Sá-Carneiro, a compreensão deste nôumeno kantiano de difícil acesso aos sentidos. Se por um deles se entende por alma aquilo que é guardado dentro de cada um que se indaga sobre si mesmo, na dispersão do outro, Raul Vilar, protagonista do amor mais puro e doentio, encontrei um ser que existe, e insiste, em se esconder aos olhos. De um modo ou de outro, nem sequer a composição literária pode me orientar em conhecimento, não obstante, com seus recursos estilísticos, me provocaram uma tormenta de sentimentos, me ensinaram que, em caso de dúvidas sérias, não procure na arte poética o caminho da salvação.

          Pensei em vidros e ferros, em caixas, caixa de vidro, caixa de alma, caixa multicor de alma que, exceto poucos, não precisam de impulso externo para renovar sua vida espiritual; pensei na arquitetura coeva que se indagava sobre o que é a Alma. Nesta bela obra, encontro o sentido do ser afetado, atormentado por suas experiências, que pede, implora por algo que garanta sua cristandade, prove sua existência metafísica, pondo sua alma em salmoura para conservação, consoante pensava Beirce. De todos os males que sofre o bom cristão, nada pode ser pior do que a ausência da percepção física de suas crenças, nada como o poder da vista para sossegar o espírito daquele que põe sua fé na eterna Providência. Quantas almas seriam salvas se se apresentassem aos órgãos da vista dos crentes descrentes. É fácil depositar fé no recebimento da dívida quando se empresta a um bom pagador, porém, como o Deus universal só se pessoal para aqueles que não exigem sua presença física, vive-se em um mundo cercado de suspiros e tempos tristes, no qual cada um, escolhendo os meios de prolongar sua existência perante o brinquedo do tempo, ardil fabricado pelo grande artífice para provocar dores, gasta seu tempo em adquirir coisas para suas almas.

            O calor insuportável me fazia companhia durante a noite e, para aumentar o sofrimento, não acatei as recomendações do Osvaldo. Lembrei-me dele, uma vez que tentou demonstrar o valor das lâmpadas fluorescentes no lugar das fornalhas incandescentes que instalei no meu ostracista quarto de meditação. O que mais faltava? Nada!, pensei. Neste instante, rompeu-me uma azia imensurável. Mas como? Afinal, não tinha me alimentado de nada naquela tarde.  Estava acometido de indisposições, tanto físicas como psíquicas, contudo ainda não sabia destas, mas estavam lá, ou melhor, aqui!

Do ponto estrutural, a crônica ganha vida própria, pois a estória é expressa sem nenhuma submissão às normas da língua-padrão e sua exposição realiza cortes de tal forma que não sabemos a fonte de sua nutrição. Para entender o que digo é preciso... Basta!

Escutava uma música e pensava em comprar uma boa botella de vino quando percebi seu movimento traiçoeiro com os olhos. Ela foi rápida e precisa, tal como um franco atirador. Suas pernas conduziam seu corpo de voluptuosidade pelo estabelecimento comercial; seminuas, pois eram duas, atravessaram a plantação de frutas carnudas, idêntica aos seus membros inferiores, e a cada metro em direção ao quarto ou à cozinha, imaginava o final de suas pernas como o cortejo de membranas muito finas e calientes que antecipam a entrada dos órgãos externos femininos. Finalmente, parou no baño. Entorpecido pelo aroma do vinho, vigiava por um viés, e com certa vilania, a parte do corpo que sufoca os pulmões e o coração. Santo Padre que faço! Coloquei-me à disposição do serviço sanitarista da cidade e não estou percebendo nenhuma quantia por este trabalho. Não! Não estou a laborar pela comunidade, e sim vigiando seus passos como um canalha bisbilhoteiro que investiga a vida alheia descaradamente. Minto às vezes para mim, mas com um cuidado cristão e social e, às vezes, pervertido. Com uma aparência quase respeitável informou o preço da garrafa, assim como as qualidades do sumo e quais seriam os queijos mais adequados para o “desfrutamento” do líquido vermelho.

Uma vez em casa, e aceitando suas recomendações, coloquei o disco de Belchior e comecei a escuchar sua linda canção La vida es sueño. Pensei se seria possível entender as mulheres. Duas amigas, outro dia, visitaram-me. Depois de muita conversa e vinho, uma pediu um analgésico. Enquanto enfatizava suas virtudes amistosas, começou a reduzir o compactado remédio a pedacinhos ainda menores. Foi uma experiência horripilante. Neste instante, procurando dar seguimento ao empreendimento natimorto de conhecer a alma, ouvia o suplício do comprimido sendo mastigado como uma guloseima melificante e o propósito se perdeu diante da chacina. Classifiquei-a como exótica pelo ato. A outra continuava embalando nossas conversas e, de maneira quase imperceptível, recriminava a conduta da colega, pois tais privacidades necessitam de sigilo e não poderiam ser executadas na presença de uma testemunha masculina. Procurei entender as entrelinhas da advertência, mas não conseguia captar o objetivo de sua fala. Tentei, então, explicá-las, enquanto pelejavam, que não me encaixava perfeitamente no perfil de um homem no sentido estrito da palavra, talvez homem pela condição universal do substantivo português e sem nenhuma referência a ontologia dos antigos filósofos medievos.

Quanta saudade das aulas de química, uma vez que a minha acidez aumentava a cada tritura dental de minha amiga. Quanta maldade feminina, se não fora suficiente o desconforto provocado pelo ácido lático que avançava sem trégua nesta unidade de carbono, ainda tinha que suportar tal violência com a filha química industrial e as cenas veladas de uma briga secreta.

Talvez fosse uma punição pela ousada empreitada: descobrir a alma feminina. Talvez fosse uma atitude machista continuar com tal ousadia ou mesmo tomado por um espírito superior estivesse contribuindo para instrução dos meus pares. Embora soubesse que toda tentativa masculina para compreensão do universo feminino não seja muita bem aceita pelos membros deste conjunto. Talvez alguma relevância para um pequeno seguimento ou quiçá deleite das futuras filiadas do universo, mas creio que uma excessiva falta de confiabilidade e um demasiado pudor dificulte a leitura do texto.  Qual é, então, o segredo que estimula a continuar?  Talvez seja melhor optar por uma anedota daquelas e dormir em paz. Porém, não estava com humor suficiente. Talvez por medo de algum dia alguma mulher desvelar estas linhas agridoces.  Talvez... Mas pretendia me aproximar de uma posição acertada ou mais próxima possível desta alma. Uma coisa é certa: neste parágrafo são demasiados “talvez”.

         Volto à loja, compro outra botella de vino e ouço sua explicação sobre a safra. Moça respeitável e professora da minha incompetência vinícola. Tenho um ótimo emprego, um bom salário e nenhum conhecimento sobre vinhos; conheço mulheres incríveis e desconheço completamente a alma feminina; sofro de uma terrível azia e nada entendo do processo fisiológico que se promove em meu organismo; escrevo sob o auxílio de uma lâmpada elétrica e careço de informações sobre esta maravilhosa transformação de energia em luz. No entanto, por contradição, nos livros e, principalmente, no senso comum e em bares todos explicavam tudo.  Por exemplo: meu jardineiro explicava tudo de futebol; meu fornecedor de cerveja revelava todos os planos dos governos com as novas medidas políticas; meu sobrinho de doze anos modificava meu equipamento sonoro para que eu pudesse escutar melhor Belchior; e Pedro, que, no auge dos seus dezoito anos, namora duas meninas ao mesmo tempo, me ensinava como me comportar diante de uma mulher. Todos sabem tudo e eu nada. Absolutamente nada.  Mas cadê a alma feminina?

         Volto à loja e peço outra garrafa de vinho e me atrevo a convidá-la a um jantar. Ela pergunta-me o quê? Digo que foi um equívoco, mas ela insiste para que repita o convite. Digo: -As ameixas maduras caem! Digo: - Quero uma boa amante! Digo: - Desculpe, aceita jantar? Olhando-me nos olhos responde: - Volte para casa, tome seu vinho, decida o que você quer e amanhã, com mais convicção, e depois de estar certo sobre o que você realmente deseja, fale! 235-0235 (não se esqueça de colocar o 3 antes!). Afinal, o que pretendo ligando para um número que entrou na estória sem nenhuma ligação causal, sem nexo com o mote das preocupações? Não tenho tempo para ligar para ninguém, pois preciso saber o que quero e se ainda vou tomar vinho, ou melhor, se ainda vou comprar vinho naquela loja. Assumo que sou inseguro e que desejo – desculpem-me todas as mulheres – possuir muitas, mas que obedeçam alguns critérios básicos: gostem de mim.  Na juventude, desejei conquistar as mulheres mais lindas; na madureza, decidi domesticá-las com meu vigor; hoje, só desejo entender a alma da vendedora espanhola de vinho. Quanta ausência de explicação: vou comprar uma garrafa de vinho e fico envolvido de forma perturbadora por uma mulher. Qual a relação causal de dois fatos aparentemente sem conexão? Talvez algum filósofo determinista queira declarar que exista uma questão intrínseca sobre os eventos. Por outro lado, nada retira esta perturbação ou me fará entender como uma estranha que só fala de vinhos pode fazer-me sonhar com coisas do vinho e outras coisas mais...

Indeciso, frouxo, covarde, mas mostrando que as aulas de teatro tiveram alguma utilidade, me apresento “energetizante” para o próximo encontro. Dentro de mim, uma ambivalência completa, coragem e medo disputam e ocupam, para a incompletude da física, o mesmo espaço, no mesmo tempo e lugar. Aproximo-me com ousadia e, ao mesmo tempo, desculpando-me pelas coisas ditas no dia anterior. Ela olha, interrompe minhas futuras ondas sonoras com as suas e, calmamente, fala: Hoje você ainda continua indeciso; então, tome esta botella como cortesia e retorne quando tiver uma posição sobre o que você quer!

Convém agora colocar tudo em ordem e tomar uma decisão e romper com os males que ameaçam minha existência. Estou com pensamentos pecaminosos e cada vez menos angelicais em relação ao que devo fazer com a moça. Uma explosão de moral ocorre-me, afinal, uma acusação diante do juízo final é demais para um anticristão que sonha com a salvação, pois quem dúvida da Onipresença do Criador não tem tantas virtudes teologais na pauta de suas meditações. Visando salvar uma alma do pecado e possuindo um gênio moral pervertido como o meu, seria prudente parar um pouco para rezar.  Como se vê, ainda não estou completamente perdido, uma vez que o drama de minhas fraquezas se chama vendedora de vinos e a esperança de gozos mundanos sem prejuízo para o além-túmulo. Talvez um purgatório administrativo.

Provêm já uma confissão e retornar a pesquisa sobre a alma feminina.  A partir de agora prestarei mais atenção aos discursos dos doutos medievais e, com ajuda de Avicena, unir-me com outras mulheres.  Enfrentarei a solidão e o trajeto da redenção, pois o conselho anterior é de um sábio e nele não existe pecado e sim salvação.  Erro romântico de um pervertido, porém realista com os conteúdos cristãos, embora com pouca fé e que sabe que todas as propostas não me prejudicarão a garganta teleológica.  Afinal, sua sensualidade, seus movimentos, seus lábios doces e o fogo de sua luxúria será o meu fim.

Nesta série de frustrações sobre a alma e a deliciosa vendedora de vinhos, deva me convencer que as mulheres não possuem almas ou, se as têm, estão em algum lugar inacessível aos filósofos. Até mesmo ao gênio de Althusser que, tentando dissociar os escritos do jovem idealista com o velho revolucionário, prestou uma significativa contribuição à filosofia, mas que de mulher pouco entendia; tampouco o brilhante Sartre que conquistou tudo como pensador existencialista, mas perdeu o coração de Beauvoir para um poeta. A reflexão filosófica e a pesquisa científica podem nos ensinar a entender a nossa existência e o mundo, não obstante pouco nos revela sobre as mulheres. No entanto, as ciências insistem, porém não percebem a diferença hercúlea entre mulheres e o mundo fenomênico: que as pálpebras revelam o cansaço do corpo e o prenúncio do sono; que o calor é uma sensação derivada pela quentura de algo em relação a outra coisa; que as lâmpadas antigas utilizam o tungstênio e, por conseguinte, provocam o calor mais do que iluminam; e que a azia do meu corpo pode ser neutralizada com um antiácido, haja vista que sua base possui força oposta ao ácido lático que provoca a sensação de mal-estar.

Lendo, resolvo alguns problemas fundamentais da minha existência. Tudo sobre ácidos e bases, sobre as vantagens do argônio, fósforo e tungstênio é entendido com aulas de química. Impulsos inibidores para o córtex cerebral podem ser aprendidos em um curso de medicina.  No entanto, ainda não existem pós-doutorados para compreensão da mulher e, muito menos, para essa coisa tão pouco inteligível: a alma feminina. Mas por que criar problemas com as coisas simples do mundo quando tudo está resolvido nos livros da estante? Obviamente que os livros sabem de tudo e fica desfocado quem não tem livros para estudar. Mais de três mil anos de história e muita escrita e nenhuma evidência da alma feminina e da submissão masculina à sua dominação inteligente; só mulher que não pensa é que é subjugada pelo macho. Ninguém descreveu nada sobre o assunto e não será agora o sucesso deste empreendimento. Em algum lugar, alguém escreveu que a mulher é o veículo do diabo e incita-nos aos pecados, pois a própria Bíblia nos comunica de sua natureza, mas nada fala de sua alma. Devo agir como um misógino contemporâneo e me afastar desta Eva disfarçada de vendedora.

Amanhã vou comprar outra botella de vino e esquecer o assunto. Afinal, não preciso desta mulher e nem de sua concupiscência. Vou ficar quietinho ouvindo outra música do poeta brasileiro Belchior: Donde esta mi corazón.

         Enfim, cabe um pedido de desculpas aos filósofos Ortega e Gasset (são duas pessoas agora) pela falta de clareza e pelo insucesso do empreendimento. Por outro lado, é-me necessário retornar aos livros dos pensadores e perscrutar sempre próximo a eles.  Afinal, Odisseu, para seu retornar a Ítaca, teve que perguntar aos antigos no Hades. Hoje, Tirésias frequenta as estantes. O livro, então, transforma o pensar e possibilita conhecer as coisas do mundo. Certamente que algumas informações valiosas necessitam de tempo e de cuidados especiais; no entanto, a mulher continua um mistério.  Se for um veículo do demônio, uma centelha do Criador, a musa do amor, promiscuidade, caminho da luxúria, redenção, tentação, fonte de vida, pecado, castigo e salvação, nunca, desconfio, saberemos. Entretanto, sou tolerante com as torturas femininas.  Com efeito, a mulher em si é uma ameaça. E sua alma, uma insólita pesquisa. Mas qual será seu nome...  Bem-me-quer, malmequer, bem-me-quer, malmequer....


AUTOR

*NILO HENRIQUE NEVES DOS REIS
Professor Titular de Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 2 | vol. 1 | Ano 2015

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