Considera-se
o cão o melhor amigo do homem. Aplicado aos caninos socráticos que sorviam a
água na concha das mãos, o provérbio cai como uma luva. Cínicos, ou cães, não
só por recordar constantemente aos próximos a sua animalidade, ou perambular
por um recinto específico da antiga Atenas; mas também por cobrar de cada um aquela
árdua excelência da qual abrimos mão com tanta facilidade. Assim como fazem os
melhores amigos. Em epigrama sobre Antístenes – ouvinte de Sócrates e a quem
Diógenes de Sínope não raro escutou—[1]
Diógenes Laércio associa o símile do cão à mordacidade típica dessa filosofia:
“Na vida, Antístenes, foste um cão autêntico, preparado pela natureza para
morder o coração humano com palavras, e não com os dentes”.[2]
Que palavras? As do tipo cortantes e percussivas.
A
filosofia cínica é indissociável de sua poética. Trocadilhos no registro da
semântica e reiterações no registro sintático. Importa petrificar o
significante a fim de frear, literalmente, a aparente obviedade do curso do
mundo.[3]
Palavra com sangue e tutano – matérias presentes nos ossos, quitute favorito de
cães. Também os dentes, ossos cortantes e percussivos, contêm esses elementos.
Palavras com matéria. Por quê? Na especulação filosófica clássica, as palavras
são vetores do sentido. Poesia acontece, outro modo, quando se mira a própria
palavra. No trocadilho, suspende-se o funcionamento da língua em seu aspecto
literal e o poético vem à luz. Dupla suspensão que produz deleite (o riso) ao
pôr em evidência uma incongruência, a qual nos confronta, no mesmo golpe, a um
sentido inesperado, contudo admissível – momento em que o riso se converte em
dúvida. O sabor acerbo da ironia.
A
materialidade da palavra cínica a muitos levou julgarem-na pura cena. A
filosofia cínica recusaria o logos em prol do gesto. Erasmo, contudo, não rezou
este terço nos Apopthegmata, ao
preceder a seção dedicada ao cão falsificador de moedas um elogio por sua
supremacia, com relação a Sócrates e a Aristipo, no bem falar.[4] Um
estudioso dessa filosofia reconhece a fineza retórica própria aos cínicos e
designa o seu modus dicendi, aquela
prática verbal provocativa e fruto da improvisação, o preciso meio pelo qual
tal filosofia se afirma. Indica também que ela se transmite, posteriormente, em
formas literárias que renovaram o campo da literatura grega.[5] É
possível dizer mais. Penetraram a literatura e a filosofia do ocidente da forma
impossível mais fiel: como atualização revigorada e independente. O Elogio da Loucura, de Erasmo, passagem
na qual descreve o filólogo, homem doutíssimo da mais fina pompa e erudição,
descabelando-se de felicidade ao achar o excerto perdido de uma obra inacabada
inscrito num pedaço de papiro. Todo o sentido de sua vida, toda a recompensa
por seus vivos e enérgicos esforços ali: num papelzinho de pão! Toda a sua
vida! Um papelzinho... Não é um extrato do Diógenes ateniense. Ninguém melhor
que um humanista diariamente implicado com as agruras da filologia para captar
o ponto em que um saber humano se converte em gesto delirante. Rabelais
sublinhou o absurdo em se armazenar “ces mots de gueule”,[6]
essas tiradas irônicas sempre à mão. Não conservar a palavra é um dos traços do
Cinismo. Tampouco é preciso: enquanto a incongruência for presente aos costumes,
esse tipo de palavra permanece vivo. Daí o interesse dos modernos pela
estratégia poética daqueles cães antigos. A fortuna da sátira no Renascimento é
objeto de inúmeros estudos e profunda meditação. O laço entre os satiristas e
Luciano de Samosata[7]
tampouco passa despercebido por exercícios acadêmicos salutares: os que
mobilizam método e erudição para produzir pensamento percussivo e carnal,
pensamento que toca e mobiliza.
O
bem falar de Diógenes. Reiteração sonora que contesta a palavra dogmática e a
palavra normativa. No chiste, dito espirituoso, ou no gesto: “fazer
trocadilhos, comer em praça pública, copular ou masturbar-se em público,
mastigar ostensivamente grãos de tremoço durante um pomposo discurso oratório”
(ou uma tediosa exposição sobre controvérsias recentes em torno da história da
mecânica seiscentista), “são todas exibições cínicas feitas para ser vistas e
apreciadas por um público, de modo a desencadear um riso de proteção, ou
melhor, uma inquietude ligada às evidências sociais”.[8] Dessa
inquietude, nasce o pensar se elas são fundadas ou não. Da interrogação ética, surge
a possibilidade de refundar o comportamento em outros valores. Remanejo radical
a que os cães de Atenas jocosa e corajosamente se propuseram.
Riso
e virtude. Corrosão da norma e purificação dos costumes. Porque a excelência
está nas ações e necessita poucas palavras, esta filosofia não se transmite num
corpo de doutrina, mas numa atitude, ou exercício moral. Como arrogou Sexto Empírico
ao Ceticismo Pirrônico: um modo de
filosofar, mais que uma filosofia.[9]
Contudo, enquanto este concebe o sábio como alguém capaz de acomodar seus
hábitos aos valores do universo particular que o abriga, guardando-se de associá-los
a verdades permanentes, para os cínicos, o sábio não deve viver de acordo com as leis vigentes na cidade, e sim
segundo as leis da excelência. Quais são? Entre outras, a parrhesia[10]:
o falar franco que abraçou Montaigne, cético e cínico na medida de sua balança
moral.
Ceticismo
e cinismo são, porém, atitudes que não se confundem obscuramente. Relata
Diógenes Laércio: “o próprio Antístenes recebeu o nome de cão puro e simples e foi o primeiro, como diz Dioclés, a dobrar o
manto e a vestir somente essa roupa, e usar um bastão e uma sacola. Neantes
também afirma que ele foi o primeiro a dobrar o manto”.[11]
Dobrar o manto? “A Diógenes, que lhe pedia uma túnica, Antístenes ordenou que
dobrasse o manto em dois e o usasse assim”.[12] A
túnica simboliza cidadania entre os atenienses. “Dobrar o manto e usa-lo assim”:
abrir mão da aparência da excelência por sua efetivação cotidiana: sua prática.
Usos e costumes. O cético veste a túnica, impassível que é. O cínico,
impassível, dobra o manto.
Dois
elementos: manejo da palavra – veio poético – por método filosófico, ou esquema
de manifestação do pensamento; e corrosão sistemática dos elementos aos quais
se atribui valor pela suspensão operada sobre e contra o signo no qual eles se representam
para nós. Torcer a palavra, minar a coisa. Em teatro, comédia ou tragédia, chega
a ser óbvio indicar o recurso constante e sistemático ao expediente cunhado
pelos cínicos. Nas formas breves da prosa, domínios da máxima, do pensamento
solto, do verbete de dicionário ou do aforismo, a sua técnica se acomoda
confortavelmente. Quantos autores de aforismos doloridos e sarcásticos não reiteram
ao longo de seus escritos o exercício filosófico canino? Chamfort, Bierce,
Cioran, Krauss, o Canetti dos diários quando bem entende. Cada aparente afronta
reverberando o som emitido pela voz de quem atentamente nos guarda e nos observa,
para manifestá-la ora em ultraje, ora em lamento, ora em riso. Consoante o
símile grego, em rosnados, uivos e latidos.
85 ideias sem consequência
1.
A
desconcertante necessidade do início. Antes do Apocalipse, o fim do homem foi
pronunciar seu fim supondo algum começo.
2.
A
religião cultural dá lucro. Já não vinga seita sem receita.
3.
A
arrogância é uma espécie de surdez aguda que se torna crônica.
4.
O
médico não é bem-vindo no gueto dos advogados. Presentemente, o mundo
processual rejeita o riso.
5.
O
governo impugnou a imprensa golpista porque impugnava a farsa. Em seguida, desapareceu.
6.
Viver
num mundo onde todos proponham a mentira e escolher a que me for mais
agradável.
7.
O
circo se tornou um coletivo e de comum acordo expulsaram o palhaço – o
projeto sério não suporta a sátira.
8.
O
ditado popular nasceu de um chiste, mas o povo o acredita anterior à
humanidade.
9.
A
democracia é tagarela e aterroriza os segredos de Estado. Cobrar-lhe a
eficiência dos governos totalitários, ou arbitrários, ou corruptos é
completamente descabido.
10.
Não
há criminoso incapaz de incriminar a mãe – pelo que naturalmente ela tem parte
da culpa.
11.
Quando
a lei interfere no curso doméstico, cumpre acrescentar-lhe mais parágrafos, se
não for possível suprimi-la. Não fica bem à coisa pública coibir a esposa
prestimosa de açoitar o marido fetichista.
12.
Viver
num mundo onde o registro da fala inconsistente esvaneça conforme avance, ou
ainda mais rapidamente.
13.
Sucumbir
ao amor e se casar. Sucumbir ao
casamento e trair – o amor é mais difícil que o casamento.
14.
Ei-lo
agora! Permanece o que tem sido.
15.
A
sacralização da família é a eureka
política do mundo laico. A sacralização da infância é a eureka imbecilizante do hedonismo vulgar.
16.
Não
há boa alma pronta a perdoar a falta execrável do objeto de desejo não
correspondido: recusar-nos. Na igualdade dos gêneros, a moça impetuosa a desprezar
o ser humano incapaz de agir como máquina vibratória; o homem entediado a
condenar o ser humano apetecível em virtude de sua resistência em servir-lhe
por depósito de sêmem.
17.
Os
laços de sangue são tão sagrados quanto a cadeia alimentar. Lobos dependem de
cordeiros como filhos de seus pais.
18.
Libelos
eternos tratam dos três impostores: o estado, a lei e a humanidade. A impostura
maior é alinhavar, à noção de humanidade, uma lei capaz de libertá-la da
necessidade formal de estado, posto exprima tal lei em seu íntimo, doravante
infeliz – a consciência proibida aos deleites da trapaça.
19.
Uma
formiga livre é uma formiga morta – ou cínica. Uma formiga morta é uma formiga
cínica – ou livre.
20.
Alma
amiga: aquela que deseja, em prol de seu prazer, fazer um mal profundo, mas
evita executá-lo quando oportunidade para tanto se apresenta.
21.
Não
assassine a laranja podre e o mundo permanecerá igual. Assassine-a e o mundo
permanecerá igual.
22.
Tragédia
é o tipo de drama cujo desenvolvimento e solução implicam morte inexorável,
conquanto injusta. Fosse justa, dificilmente seria inexorável. Mas aí entramos
no domínio da Comédia.
23.
O
desvelo de não poucos historiadores das ideias em sublinhar o papel fundamental
da memória à cognição talvez se alinhe a um ideário cujo interesse pelo
patrimônio é obsessivo.
24.
Como
se toda legitimidade do que somos se fundamentasse no desejo do que poderíamos
ter sido.
25.
Mais
extensa a linhagem, mais fino o trato: exercício de autoestima aristocrático
inaplicável a Homero ou Lutero.
26.
Uma
política cultural ancorada no patrimônio tende a ser fundamentalmente
reacionária. Definir o que somos é empedernir almas nascituras. Decretar
autos-de-fé après la lettre.
27.
Registro
da anedota, registro da fábula: inventário de estereótipos, ou memória coletiva
enquanto figuras morais. A educação pelo drama antecede a estética propriamente
burguesa. Antecede a estética propriamente dita. Também à filosofia.
28.
“Le
fils naturel”. Que houvesse a necessidade de explicitar a condição do bastardo
não evidencia o primitivo-arbitrário da instituição familiar?
29.
Um
estado que retarda a adoção, superprotegendo indivíduos habituados ao abandono,
à violência doméstica, ao abuso de poder.
30.
Quando
um ideal de felicidade está nas antípodas de nossas interações cotidianas,
reina o tédio, a angústia, a desolação. Mentes claras cogitam, ademais, o
suicídio. Cogitam, posto cogitar não conduza necessariamente à execução alguma.
Tédio, angústia, desolação.
31.
Como
o mau-caráter não pode ser combatido, resta neutralizá-lo, o que significa
dizer desmoralizá-lo, ou reduzi-lo à insignificância que lhe é característica e
da qual emana a sua conduta desprezível. Argumentação circular, prática sem
efeito. Ninguém escapa ao combate com mais diligência que os corações
mesquinhos.
32.
Em
geral, aqueles cuja morte saberíamos valorizar se aferram de tal forma à vida
que não nos resta saída senão extingui-los no interior da memória.
33.
A
inteligência média raramente aceita que se combine franqueza e cordialidade.
“Parecença ou morte!”
34.
O
mal do coração intolerante é desejar ardentemente que todos procurem de bom
grado a liberdade.
35.
John
Lee Roth me emprega, me indica a boa hipoteca, empresta-me dinheiro para que eu
tenha um carro, canta com sua musa odes ao cartão de crédito. Deseja
ardentemente que eu me torne um cidadão livre.
Ponho
à venda o terreno excedente de sua propriedade, ensino-o a fazer pão e a
modelar o barro, entoo-lhe as agruras do excessivo e os milagres da
frugalidade. Vendo seu carro e o insto a demitir-se. Desejo ardentemente que se
torne um cidadão livre.
36.
Tarefa
ancestral da humanidade: convencer o oponente de que erra. Angariar adeptos.
Formar partidos.
37.
Por
alguma razão, perdemos de tal modo a resistência física à infelicidade, que
jamais estivemos tão infelizes. A infelicidade move o mundo e a felicidade o
conserva. Sedento de revolução, o espírito moderno não vai sem melancolia.
38.
Por
impaciência em aguardar que o mundo mude, transmutam a si mesmos.
39.
O
socialista é um luterano ferrenho ou um estadista empedernido?
40.
Curar
o louco, mitigar os problemas que o determinam. Missão abraçada com fervor pelo
puro-espúrio.
41.
Extirpemos
o delírio e pereceremos todos. Sem cérebro, morte. Igual sem coração.
42.
O
artista crítico-social é a flor de lis da tagarelice democrática.
43.
A
visão política do artista é um quadro sublime, elegante ou melodramático. Nunca
a sobreposição indiferente de circunstâncias que se entrechocam.
44.
Evitando
o fim de um Policarpo, a esquerda de meia-idade começa a formular sofisticadas
explanações sobre um mundo que já não é o mesmo. A jovem direita galhofa.
45.
Grandes
comentadores: o convidado que traz à ceia a narrativa de sua digestão.
Pensadores: cozinheiros cujo repasto é a degustação da ceia.
46.
Dificuldade
de diálogo entre o espírito reflexivo e o espírito bovino: falar do banal de
forma banal e evitar o complexo pela morbidade que o complexo suscita.
47.
De
início, parecem pessoas. Pouco a pouco, provam ser humanos. A pessoa é um ideal
sublimado da crueza da espécie; subjaz à espécie, cuja tendência à metamorfose
produz pessoas.
48.
Quase
sempre a morte é um adversário menos cruel que a vida, disse alguém. Fica bem
aparentar não temer o perecimento. Escapar em silêncio à vida pungente é,
contudo, bem mais frequente que ostentar indiferença à morte.
49.
A
constância. As constantes. Mesmo o materialismo histórico ancorou-se numa
constante. A história buscando narrativas para descobrir constantes.
50.
A
antropologia nasce da necessidade de expandir territórios ou da esperança de
achar no homem algo diferente do que ele sempre foi. A motivação filosófica é
absorvida pela finalidade política e reina afinal o homem de todos os tempos: o
do massacre. – Depois ela muda de direção, acha o outro e mata o mesmo.
51.
Enquanto
a esquerda clama e teoriza, a direita age e estuda na teoria alheia a melhor
maneira de amarrá-la. A esquerda é vaidade; a direita, astúcia – Aquiles contra
Ulisses (até outro dia; agora todos correm à barca de Ulisses).
52.
Um
século de reconhecimento não vale uma hora de felicidade. A felicidade do
patrício é o reconhecimento – o martírio do burguês é sacrificar a felicidade
anônima ao bem comum. A moralidade aristocrática como pedra no sapato da ética
burguesa. Cristo foi príncipe; Calvino, mercador.
53.
Supervaloriza
a educação das crianças quem recusa acatar sua parcela de culpa. Nascemos
culpados e reverter o quadro resulta invariavelmente inútil. A pedagogia como
disciplina da culpa matizada pelo grau da sinceridade entrevista no
arrependimento... E há quem se interrogue sobre a razão oculta da formidável
vocação das crianças à encenação.
54.
O
homem soberbo está fadado à adulação dos parasitas ou à companhia dos parvos.
De toda forma, quando não veste uma pele, usa a outra.
55.
Quanta
implicância entre as “raças”. Quando o dinheiro neutralizou a antiga discórdia,
quanta implicância com o dinheiro. O erro está sempre no outro, nunca no mesmo.
56.
Ele
supõe quão magnífico seria formar jovens capazes de ler em latim como se lê
bibliografia secundária. Como se reler toda Roma no original pudesse evitar que
a perdêssemos ou a reconstruíssemos.
57.
Orfeu:
espécie de alma inexoravelmente dedicada ao belo, ainda que produzi-lo lhe
custe o usufruto pessoal de seu deleite.
58.
O
intelectual vazio frequentemente se dedica à metodologia. Incapaz de criar,
procura fundamentar o invento alheio sobre quimeras estapafúrdias.
59.
Na
era dos letrados, só a metáfora podia explicitar a ciência. Na era dos ignaros,
o que poderia explicitar a língua e o letramento?
60.
A
difusão do conhecimento é um dos mais pronunciados compromissos da modernidade.
Daí o sólido estatuto a que se alçou a ignorância.
61.
Visão
política para um nacionalismo coeso: dizimar os autóctones do território
recém-usurpado. Falta de visão: fundar um reino num território ocupado por
populações cuja mentalidade política repugne a noção de estado.
62.
Uma
garrafa de vinho: doses civilizadas de espírito, manifestas em sentenças
mal-acabadas sobre a dor, o mal e o desespero. Todas muito alegres.
63.
O
partidário assume, o tolo crê, o artista exprime, o libertário exclama e o
libertino ri. A democracia os abraça a todos em prol do lucro – ri melhor quem
ri por último...
64.
Nasceu
dissoluto, cresceu guerrilheiro, viveu hedonista e morreu homem de família.
Nunca soube o que lhe faltava, tampouco perdeu completamente o desconforto
profundo com a insignificância de sua vida. No epitáfio, chorou as invasões
bárbaras.
65.
A
esquerda subiu ao poder. A direita se pronuncia. A esquerda recrimina sua fala.
Seu espírito voltado ao bem universal rejeita o princípio de oposição.
66.
Queria
ser poeta, mas não tinha talento. Fez de si jornalista e de suas metáforas
insossas, fatos documentalmente comprováveis.
67.
O
que choca os corações profundamente sempre foi e ainda é a liberdade. Se um
grupo decidir que assassinar cadelas grávidas é um sinal de nobreza, e arrancar
cenouras da terra antes que amadureçam, um sinal de ousadia, os que liquidam
cadelas grávidas serão louvados e os que colhem cenouras prematuras serão
condenados – tudo consoante a um código civil. Libertinos de todo canto,
muni-vos...
68.
A
modernidade parece odiosa porque divisou um ser escondido no ser indefinidamente.
Somos nela fragmentos de um todo que nos é impossível reconstruir. Anteceder à
cisão entre sujeito e objeto, homem e natureza: reconstruir a possibilidade do
divino.
69.
Pudera,
fisicamente falando, o mundo caísse, a terra se abrisse e a água inundasse a
vida pela raiz! O inconveniente está em que o seu interior abriga o magma:
férvido, calcinante, instável, letal.
70.
O
louco que acaba em sanatórios: pessoa avessa à marginalidade que gentilmente
lhe concede uma sociedade vulgar, substituindo na alma o não alheio ao sim que
lhe é peculiar.
71.
Intoxica
o organismo na mesma proporção em que desobstrui o automatismo. O que é o que
é? Filosofia, evidentemente.
72.
Democracias
pasteurizadas: a tudo absorvem, tudo dissolvem – sem vida microscópica a gerar
putrefação. Lactose na glicerina.
73.
O
turismo é uma invenção empresarial destinada a fazer com que pessoas que não
entendem o sentido de uma viagem nutram a impressão de haverem conhecido um
lugar específico.
74.
A
loucura é manifestação deturpada da liberdade racional. Posto a liberdade
racional frequentemente deturpe as coisas, coibir discursos insanos é antes de
tudo limitar um modo como a liberdade se manifesta.
75.
O
estranho temor da imprensa. Que o louco afirme ser Napoleão não ressuscita o
imperador impertinente, apenas comprova a infinita espontaneidade do intelecto.
Temor, antes, dos loucos carismáticos voltarem a invadir a Rússia, condenando
milhares de almas a definhar em seu inverno gelado. Temor da quantidade de
imbecis sedentos em abrir mão do raciocínio. Temor que um íntimo se faça
público e que este público controle os íntimos.
76.
O
intolerante: pessoa cujo tempo livre é dedicado a combater o próximo que usa do
seu próprio como bem entenda.
77.
Se
uma política nos bastasse, a revolução científica não teria prosperado.
Sem florescimento da ciência, sem reviravolta iconoclasta. A inteligência
política dos estados milenares está em inverter na escala de valores a
dignidade da verdade e da ficção. Quem relega a desconfiança com busca ao desprezo frui de
estabilidade política inabalável, milenar, sólida.
78.
Acatar
a anormalidade, recusar medicações e padecer as consequências de uma existência
desequilibrada: terapêutica prudente contra os desvios da psiquiatria.
79.
Por
que os loucos têm de ser tratados e os ordinários exprimir padrões? A loucura
gera dificuldades, naturalmente. Mas se sublinharmos que a tacanhice é um
problema, haveremos de convir que as almas estáveis, prudentes, consequentes e
comedidas geram o problema da tacanhice, de acabrunhar o mundo com suas
existências ordinárias.
80.
Quando
não há crença comum, repudia-se toda forma de coletivismo. Plano refratado,
sociedade de múltiplos unos possíveis. Aos entusiastas da univocidade, mal
universal.
81.
Um
homem: animal, pessoa, poeta, filósofo, cientista, ateu, suicida, mortal. Todo
homem é mortal. Sócrates é um homem. Sócrates é um animal. Pessoa. Poeta.
Filósofo. Cientista. Ateu. Suicida. Mortal. Logo, Sócrates é mortal.
82.
Covardia
convertida em ética profissional: olhar nos olhos de alguém que se ama e
descrever a controvérsia em torno de um parecer exposto na última reunião do
conselho superior.
83.
Não
terminar projetos. Não dar início a erros futuros. Combater na raiz o emblema
do cão perseguindo a própria cauda. Evitar pensar para viver bem: projeto de um
pessimismo epistêmico.
84.
Planejar
um minucioso estudo sobre os sintomas de uma febre específica; executá-lo;
suscitar a descoberta de medicamentos atenuantes; vê-los circular
comercialmente; descobrir-se com a febre maldita e comprar socorro na esquina
de casa: o objetivo concreto do mundo tecno-científico moderno, aquele que
desgraçadamente nos cindiu a alma em dois.
85.
Sem risco, sem o prazer do risco, sem a mania do risco, sem o vício do risco não há licença poética, nem olhos abertos à licença poética, nem amor pela licença poética, pela licença de existir de outro modo, já que a natureza é tão instável e infinita que seria tolo e pobre homenagear todos os dias a mesma coisa, a mesma forma, a mesma linha, a mesma ideia.
Sem risco, sem o prazer do risco, sem a mania do risco, sem o vício do risco não há licença poética, nem olhos abertos à licença poética, nem amor pela licença poética, pela licença de existir de outro modo, já que a natureza é tão instável e infinita que seria tolo e pobre homenagear todos os dias a mesma coisa, a mesma forma, a mesma linha, a mesma ideia.
AUTORA
*BRUNA TORLAY
Graduação e Mestrado em Filosofia pela Unicamp. Mestrado profissional em Sociologia (Políticas culturais) pela Université Paris 7 – Paris Diderot. Professora de Filosofia na Universidade Estadual de Feira de Santana.
[1]
Diógenes Laercio, em Vida e Doutrina dos
Filósofos ilustres, relata-nos que “morando no Peiraieus, Antístenes andava
diariamente quarenta estádios para ouvir Sócrates”. (Edição UNB, tradução de M.
G. Cury, p. 153)
[2]
Obra citada anteriormente, p. 157.
[3]
Michèle Clément, no capítulo IX de seu estudo Le cynisme de la Renaissance en France, intitulado “Poétique de la
parole cynique”, analisa detidamente o meio poético da filosofia dos cínicos
que é o trocadilho. M. Clément. Le cynisme de la Renaissance em France. Genève,
Droz, 2005.
[4]
Também essa referência a Erasmo, devemos à autora supracitada.
[5]
Robert Bracht Branham. “A retórica de
Diógenes e a invenção do cinismo”. In
M.-O. Goulet-Cazé e R. Bracht Branham (orgs.), O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado, São Paulo:
Loyola, 2007.
[6] M. Clément. Le cynisme de la Renaissance em France. Genève, Droz, 2005, p. 190.
[7] Jennifer Hall,
Lucian's Satire. New York: Arno Press, 1981. Estudo
no qual se reconsidera a sátira menipéia da antiguidade ao século XVIII. Em
português, temos a tradução do estudo clássico de Quentin Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso. São
Leopoldo, Unisinos, 2002. Sobre Diderot, cujo Sobrinho de Rameau encarna a figura moderna do cínico, temos de R.
Romano, Silêncio e ruído: a sátira
em Denis Diderot. São Paulo: Editora da Unicamp, 1996. A bibliografia
desses três estudos é um indicador do interesse recente pela visível fortuna e
atualização independente da sátira, veículo por excelência da filosofia cínica.
[8] M. Clément. Le cynisme de la Renaissance em France. Genève, Droz, 2005,
p. 190.
[9]
Sexto Empírico. Hipotiposes pirrônicas (Livro I, capítulos I a XII). Tradução de Danilo Marcondes.
In: O que nos faz pensar, no 12, setembro de 1997(a).
[10]
Uma das conferências de M. Foucault sobre o Cinismo e sua atualidade versa “O
significado da palavra Parrhesia”. A tradução em português desta aula pode ser
acessada livremente no endereço seguinte: seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/download/1550/1423
[11]
Diógenes Laercio, Vida e Doutrina dos
Filósofos ilustres. Brasília: UNB, pp. 155-56.
[12]
Diógenes Laercio, Vida e Doutrina dos
Filósofos ilustres. Brasília: UNB, p. 154.
BIBLIOGRAFIA
BRACHT BRANHAM, R. “A retórica de Diógenes e a invenção do cinismo”. In M.-O. Goulet-Cazé e R. Bracht Branham
(orgs.), O movimento cínico na
Antiguidade e o seu legado, São Paulo: Loyola, 2007
CLEMENT, M. Le cynisme de la
Renaissance em France. Genève, Droz, 2005
LAERTIO, D. Vida e Doutrina dos Filósofos ilustres. Brasília: UNB, 1988
[imagem: cena de Kárhozat (Condenação ou Damnation), filme de Béla Tarr, 1988]
[imagem: cena de Kárhozat (Condenação ou Damnation), filme de Béla Tarr, 1988]
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 2 | vol. 1 | Ano 2015
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