Laurenio Sombra*
Texto produzido originalmente a partir de participação no debate “Políticas,
refugiados e religião: Paris está por toda parte”, na Faculdade de Educação da
UFBA, sob a coordenação do professor Nelson Pretto, em 23 de Novembro de 2015.
O ataque do Estado Islâmico na França (Novembro/2015)
acentua confronto cada vez mais frequente de grupos fundamentalistas contra o
mundo ocidental. Embora muitos ataques como esses também tenham ocorrido contra
países não ocidentais, o acontecimento deles (ou a sua mera ameaça) em locais
como Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra, Itália e outros propiciam
repercussão bem maior. Sempre que tais coisas acontecem, é quase inevitável
lembrar do ensaio produzido pelo neoconservador norte-americano Samuel
Huntington, que defendia, já em 1993, que as grandes guerras contemporâneas
tomarão cada vez mais a forma de um “choque de civilizações” (HUNTINGTON, 1993),
especialmente entre o Ocidente e civilizações não ocidentais. Visões como
essas, que acentuam um grande confronto de valores entre Ocidente e
não-Ocidente, podem ser reforçadas de diversos modos. Em coluna de Contardo
Calligaris na Folha de São Paulo (2015), o psicanalista via o ataque dos
terroristas movido por um grande ressentimento contra o que mais os seduziria:
nosso hedonismo, nossa vida cada vez mais voltada para “esse mundo” e não para
um mundo transcendente.
É verdade, por outro lado, que diversos
intelectuais, como o palestino Edward Said (2005), atacaram e argumentaram com
veemência e argúcia contra o mito do “choque de civilizações” e o que há de
simplificador em visões como essas. De todo modo, ele acaba ganhando um efeito
descrito na filosofia como performativo[1],
isto é, o que eventualmente parece ser uma inocente constatação da realidade,
em muitos casos se torna uma criação da
realidade. Assim, ao tempo em que pensadores como Huntington descrevem o
grande “choque de civilizações”, dão ensejo ideológico e justificativa a
processos bem mais profundos de enfrentamento a adversários dos grandes líderes
ocidentais. Processos que ganham adicional “poder de prova” sempre que
reforçados por ataques bárbaros, como os ocorridos com algum grau de
recorrência ao menos desde o 11 de Setembro.
Mas o que é mesmo o “Ocidente” tão propalado nessas
discussões, especialmente em contraposição aos seus adversários? É claro que
termo tão amplo como esse carrega uma série de imprecisões. Mais do que isso, é
claro que há algo de construído, convencionado e até mesmo imaginário em torno do que se chama tão vagamente de mundo
ocidental. Mas não é disso que se trata em boa parte da nossa vida cultural?
Não há algo de puramente convencional em olharmos, no computador ou no caixa
eletrônico, o saldo das nossas contas e acreditarmos
que temos esse “valor” em caixa? Ou acreditarmos que somos brasileiros e
vivermos sob a égide de uma série de relações políticas e econômicas disso
decorrente? Do mesmo modo, pensar em um imaginário ocidental não significa
descartarmos esse imaginário, mas tentarmos compreender como ele se consolidou
e, mais uma vez, qual o significado pragmático dessa consolidação.
Na “mitologia” do imaginário ocidental[2],
ele tem suas raízes no alvorecer do mundo clássico grego, em seu desdobramento
romano e no advento do cristianismo. Teria começado a se consolidar a partir do
Renascimento, com certa retomada dos valores clássicos, e ganhado impulso com o
que chamamos de modernidade, com vários aspectos fundamentais, como a reforma
protestante, a revolução científica, o desenvolvimento de políticas liberais, a
universalização formal do conceito de direitos humanos, a ideia de democracia,
o fortalecimento dos Estados-nação... Foi inerente ao desenvolvimento dessa
ideia de Ocidente o avanço desse monstro de mil faces que é o capitalismo, com
seu furor produtivista e necessidade, inerente à sua própria condição, de
avanço permanente para novos mercados, novas tecnologias, novas fontes de
energia, novos territórios, novos consumidores.[3] Esse furor, aliás, impõe transformação em todos os aspectos anteriormente
citados. A nossa religiosidade é transformada em função do capitalismo; com
ele, a cada vez nos transformamos mais em consumidores que em cidadãos e a
noção de liberdade está, quase sempre, associada à nossa capacidade de consumir
e trabalhar; a igualdade tende a
tornar-se, cada vez mais, uma igualdade formal que não pode ser suplantada pela
desigualdade inerente à própria lógica de competitividade capitalista, que
impõe, sempre, vencedores e vencidos. O desenvolvimento do Estado-nação, por
sua vez, se deu, pari passu com o
avanço do capitalismo. Finalmente, a própria ciência tornou-se, cada vez mais,
uma parteira da tecnologia, ferramenta indispensável para a “destruição
criadora” que o capitalismo impulsiona[4].
Todo esse processo, supostamente, forjou alguns dos
“atributos” essenciais ao sujeito moderno ocidental. Atributos embasados,
certamente, por uma hierarquia valorativa segundo a qual o homem ganhava, progressivamente, a primazia em relação a Deus ou
aos deuses e em relação ao mundo, ainda que, em diversos momentos, tentando
alguma conciliação com valores cristãos[5].
Essa primazia, me parece, foi a mãe da moderna relação sujeito-objeto, relação
que transformava praticamente tudo o que pode ser pensado em objeto de
conhecimento do sujeito. E, como tal, manipulável por esse mesmo sujeito,
preferencialmente a partir de um controle e uma previsibilidade só possível a
partir do embasamento na matemática e em experiências empíricas fortemente
intervencionistas[6].
Nesse sentido, do planeta à mente humana, tudo passou a ser alvo possível da
intervenção tecnológica. O aparente contraponto a essa visão foi o
fortalecimento cada vez maior da noção de indivíduo, mas que deve ser pensada
como um resultado natural da própria relação sujeito-objeto: a sociedade, a
comunidade ou a polis devem ser
pensadas não como uma matriz que possibilita os indivíduos, mas como objeto de interesse deles. Assim,
invertendo o modelo aristotélico, primeiro vem o indivíduo; este, por sua vez,
decide por contrato, porque lhe é
conveniente, construir uma sociedade civil para os seus interesses[7].
Se casarmos esse processo com um capitalismo ascendente, vemos que o indivíduo
deve receber todos os atributos concernentes ao self made man, àquele que é capaz de resolver por conta própria os
seus problemas, e agir com eficácia, produtividade e agilidade, como talvez seu
modelo mais acabado, que foi o personagem Robinson Crusoé, capaz de recriar um
mundo “funcional” perdido numa ilha[8].
Mas falta ressaltar aspecto essencial, onde, depois
dessa volta, talvez cheguemos ao cerne da questão. Se a modernidade ocidental
foi forjada a partir de certo tipo de relação sujeito-objeto, é fundamental
compreender que esse sujeito que ela coloca na relação é, naturalmente, o
sujeito ocidental, inicialmente o europeu ocidental. Mas como o europeu se
arvorou a esse papel, o sujeito por
excelência da modernidade? Arrisco a dizer que uma série de eventos
possibilitaram isso, mas a Conquista da América a partir do final do século XV,
foi fundamental. Antes dela, já havia, certamente, um princípio de
autoidentificação da Europa católica, mas ainda não estava colocado um aspecto
fundamental, que era a sensação de superioridade
desenvolvida pelo povo europeu. Durante a Idade Média, os europeus tiveram
várias constatações até contrárias a isso: a descoberta de um mundo islâmico e
um mundo chinês extremamente sofisticados, a convivência com derrotas bélicas,
como para o império mongol, entre outros aspectos.[9]
A conquista da América gerou um imaginário novo
nesse sentido (QUIJANO, 1992 e 2005). Primeiro, o mundo europeu discutiu com
fascínio a presença, no Novo Mundo, de “selvagens” que não conheciam Jesus
Cristo, mas que também supostamente teriam um grau de civilização inferior.
Essa mesma noção foi reforçada pelo crescente tráfico de escravos africanos,
também tratados como inferiores. Esses dois contatos iniciaram a constituição
do que posteriormente seria cada vez mais nomeado como raça: os diversos povos do Novo Mundo, categorizados como indígenas, e os diversos povos
africanos, como negros, cada um
deles, recebendo dos europeus determinados atributos essencialistas acerca de
sua inteligência, sensualidade, capacidade de trabalho e assim por diante...,
ambos frequentemente reduzidos em sua humanidade, condição que, afinal, era
altamente conveniente para o processo de exploração mercantilista desenvolvido.
Ambos, posteriormente, alvos do racismo
científico desenvolvido a partir do século XIX (BANTON, 1979), que só foi
minorado quando atingiu os próprios europeus, com o advento do nazismo[10].
Mas a identidade se constrói a partir de relações
diferenciais (SOMBRA, 2015). E a concepção de negros e indígenas também
possibilitou a nomeação do “homem branco”. Em contraposição às outras “raças”,
cada vez mais o homem branco europeu assumiu a identidade de sujeito por
excelência do mundo ocidental. Esse ponto é fundamental, pois se dissemos que a
modernidade se instaurou a partir de certa primazia do homem, é preciso ter
clareza que essa primazia sempre foi seletiva e, consequentemente, acompanhada
de profundos mecanismos excludentes. No caso da relação com negros e indígenas,
com os processos já bastante conhecidos de opressão e extermínio, atingindo
dezenas de milhões de indivíduos.
Mas essa lógica, cada vez mais consolidada, se
estendeu a povos asiáticos e povos muçulmanos. Nesse último caso, se o conflito
com o cristianismo remonta à Idade Média, só a consolidação moderna do homem
branco europeu pôde trazer-lhe uma justificação, pretendida científica, de
superioridade. Quando o império otomano foi finalmente vencido, no século XX, a
Europa Ocidental (e depois os Estados Unidos) se sentiu habilitada para
negociar a sua partilha, por meio de protetorados ou por tutela a países
supostamente independentes. Com o crescimento da indústria petrolífera, cada
vez mais o “Ocidente” interessou-se, estrategicamente, pelo Oriente Médio. As
tentativas de criação de governos autônomos e nacionalistas foram debeladas
sempre que pareceram ameaçar interesses ocidentais, e nunca houve receio ao
apoio aos fundamentalistas, quando eles poderiam representar interesses
favoráveis, como na Arábia Saudita, ou com Bin Laden, no Afeganistão pré-11 de
Setembro[11].
Como fundo de tudo isso, uma percepção ao mesmo
tempo difusa e concreta. A diferença
que o Ocidente estabeleceu com os outros povos, seja pela cor da pele, seja por
seus “valores”, produziu uma máquina quase perpétua de tratamento excludente e
políticas que admitem, na prática, que uma vida não ocidental não vale o mesmo
que uma vida ocidental; que a autodeterminação dos povos não-ocidentais não tem
a mesma importância que a dos povos ocidentais. Dentre os povos atingidos
diariamente por esse discurso e essa prática, as reações são muito complexas
para caberem nesse espaço de discussão, envolvendo diversas e híbridas
possibilidades.[12] Obviamente, só uma pequena parte cai no canto da sereia das ações terroristas e
dos homens-bomba. Mas justamente essa pequena parte, numa espécie de pacto
sinistro com os mecanismos ocidentais mais excludentes, reforça a tese da
diferença e do choque das civilizações, reforça os mecanismos de segregação,
reforça a vigilância diferenciada pela cor da pele e pelos costumes...
“Paris está em toda parte” porque o imaginário do
homem branco ocidental está em toda parte. Ele também é replicado, diariamente,
no modo com o qual a maior parte da população negra brasileira é submetida a
políticas excludentes pelo Estado. Está replicado, também, porque, aqui como
lá, nós somos atravessados por meios de comunicação e por uma indústria
cultural que nos educa a sensibilidade de modo a nos sentirmos atingidos mais
com as dores de determinados grupos que com as dores de outros.[13]
Aqui como lá, há espaços de revolta e, também, a
ultrapassagem para zonas de violência que alimentam e reforçam o ciclo
iniciado. Aqui como lá, se fala de guerra (guerra ao tráfico, guerra ao
terror), mas enquanto não houver a convicção de que a raiz dos males é muito
mais política do que bélica, estaremos distantes de alguma paz.
AUTOR
* Laurenio Leite Sombra é professor Assistente da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS). Doutor em Filosofia pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília
(UNB). Particularmente interessado na constituição humana de sentidos e
sujeitos, e nas relações de poder e aliança entre os sujeitos no seio da
constituição de sentido. E-mail: lausombra@hotmail.com
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[1] Esse conceito é desenvolvido, em
geral, a partir do filósofo britânico John Austin (1976) e foi desdobrado por
John Searle (2001). São também muito importantes abordagens como a de Butler
(1998) por aportar mais diretamente uma perspectiva política ao conceito.
[2] Não seria possível debitar,
aqui, as diversas fontes que me possibilitam traçar essa breve genealogia. Pela
relação direta, contudo, devo citar obras de Charles Taylor (1997 e 2010), mas
também o desenvolvimento do conceito de “colonialidade do poder”, por Aníbal
Quijano (1992 e 2005). Por outro lado, a problematização que me permitiu buscar
estas questões foi amadurecida pelo desenvolvimento conceitual recente que fiz,
em torno do conceito de rede de sentidos
(SOMBRA, 2015), que articula em sua constituição certas hierarquizações de
atributos e de sujeitos.
[3] Mesmo tendo decorrido mais de
150 anos da sua publicação, provavelmente ainda não há descrição mais
contundente desse processo que a realizada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (MARX e
ENGELS, 2014).
[4] Termo popularizado pelo
economista austro-americano Joseph Schumpeter (1952).
[5] O filósofo espanhol Juan Estrada
desenvolve um interessante histórico da cosmovisão ocidental (2003a e 2003b),
estruturado a partir das noções, com clara inspiração kantiana, de mundo, Deus
e homem. De certo modo, o período grego foi estruturado hierarquicamente a
partir do kósmos, o período medieval
a partir da noção de Deus e a modernidade, a partir da primazia do homem,
culminando discursivamente com a “morte de Deus” nietzschiana.
[6] Praticamente toda a obra de
Heidegger abordou essa questão, de um ou de outro modo. Alguns trabalhos podem
ser ressaltados, contudo, como “O tempo da imagem do mundo” (HEIDEGGER, 2002),
ou conferências dos anos 50, como “A questão da técnica”, “Ciência e Pensamento
do sentido” ou “A superação da metafísica”, abrigadas no livro Ensaios e Conferências (HEIDEGGER,
2006).
[7] Quijano (1992) defende essa
subordinação da noção de indivíduo à relação sujeito-objeto moderna.
Possivelmente, Heidegger também subscreveria isso, naturalmente sem a mesma
perspectiva política de Quijano.
[8] O professor de literatura
italiano Franco Moretti produziu interessante livro (2014), que mostra como a
literatura ocidental, especialmente nos séculos XVIII e XIX, forjou o ideário
do indivíduo burguês. Nesse processo, certamente Robinson Crusoé é figura exemplar.
[9] Aqui, foi fundamental a discussão
do sociólogo Oliver Cox (1959), que já mostra, antes de Quijano, o ineditismo
do preconceito racial europeu e a concomitante formulação de uma autoimagem de
superioridade, vindos apenas com a modernidade.
[10] Seguindo afirmação do pensador
martinicano Aimé Césaire, em seu libelo contra o colonialismo (CÉSAIRE, 2010).
[11] Muitas referências devem ser
pertinentes. Para esse artigo, me baseei principalmente em textos do
intelectual libanês Gilbert Achcar, especialmente no capítulo que aborda os
fatores políticos regionais do mundo islâmico em livro produzido a partir da
“primavera árabe” (ACHCAR, 2013).
[12] Esses aspectos foram pensados,
repito, a partir do meu conceito de rede
de sentidos (SOMBRA, 2015), que não caberá detalhar aqui. Basta dizer que a
nossa produção de sentidos tem sempre natureza valorativa e é, frequentemente,
hierárquica, inclusive no que diz respeito à classificação de sujeitos
(homem-mulher, ocidental-não ocidental, branco-negro, cristão-muçulmano, para
ficar com algumas dualidades possíveis). O encontro de grupos sociais
diferentes com redes de sentidos incompatíveis propicia relações de antagonismo, que exigem diversos modos
possíveis de negociação de sentidos.
É nesse contexto que se inserem diversas possibilidades híbridas resultantes
desses processos de negociação. O termo (negociação) não deve sugerir que as
“soluções” encontradas sejam sempre dialogadas. Fazem parte das “negociações”
mecanismos violentos de dominação, submissão e resistência, até porque os sujeitos
coletivos são frequentemente assimétricos em seus mecanismos de poder.
[13] Em artigo a ser publicado em
breve (SOMBRA, s/d), discuto essas implicações na realidade brasileira. Mas
essa perspectiva, com algumas diferenças de fundamento, já aparece no modo com
Jessé Souza aponta o desprezo pela “ralé” brasileira, tratada como uma
subcidadania (SOUZA, 2012).
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 2 | vol. 1 | Ano 2015
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