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Sessões não numeradas - Algumas notas sobre o cinema e a emancipação do olhar

Eduardo Pellejero*


Volta-te e torna a confiar nos teus olhos! Confia na velha máquina de filmar. Ela ainda pode produzir imagens.
(Lisbon Story (Wim Wenders, 1994)

LIÇÕES DE INTERPRETAÇÃO

            Em Rear Window (1954), uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, L.B. Jefferies (James Stewart), fotógrafo de guerra, preso a uma cadeira, praticamente desvalido, resolve um crime através da observação atenta e prolongada do que o rodeia. Em Blow-Up (1966), a provocativa adaptação de um conto de Julio Cortázar que filmara Michelangelo Antonioni, Thomas (David Hemmings), frenético fotógrafo de moda, fechado num quarto escuro, acredita revelar outro através da exploração obsessiva das suas imagens. Quietos ou inquietos, heróicos ou delirantes, as personagens que o cinema propõe muitas vezes encarnam as aventuras do olhar, e ao fazê-lo nos submetem a uma prova, na qual o que está em jogo é a nossa capacidade para interrogar as evidências do que é e descobrir o que não é – pelo menos imediatamente – visível[1].

            Não é preciso internar-se nas cinematecas para embarcar nessa aventura, que perpassa o cinema no seu conjunto, inclusive quando adota as marcas do gênero, as prescrições do sistema de estudos ou as prerrogativas do mercado. Sob as suas formas mais explícitas, ganha algumas vezes as formas de um desafio manifesto, como em certos filmes nos que somos a priori convidados a solucionar o mistério que a intriga nos propõe, antes que encontre propriamente a sua solução argumental; é o caso das adaptações de alguns policiais clássicos, como Murder on the Orient Express (1974), de Sidney Lumet, assim como de boa parte dos thrillers contemporâneos, como Zodiac (2007), de David Fincher. Outras vezes, o desafio nos é lançado a posteriori, resolvido já o mistério, expondo-nos a imagens que vimos e não fomos capazes de observar com a necessária suspicácia; é algo que encontramos em alguns filmes de twist ending, como em The sixth sense (1999), de M. Night Shyamalan, onde no final somos confrontados com o que todo o tempo esteve à nossa frente, chamando-nos a redobrar a nossa atenção em relação às imagens. Outras vezes, por fim, o desafio coloca em causa, não apenas as nossas competências para ver e apreciar, mas também o alcance e os limites do que aparece enquanto via de acesso ao real – como em Memories of murder (2003), de Bong Joon-Ho, onde a ambiguidade das imagens e a interrogação crítica do olhar tencionam os elementos definidores do gênero até fazê-los em pedaços.

            Em todos esses casos é a intriga que nos instrui sobre o tempo e o esforço que exigem de nós as imagens, oferecendo-nos uma lição sobre o que significa ver e interpretar.

A DESEDUCAÇÃO DO OLHAR

            Mas as imagens do cinema também podem oferecer-nos a possibilidade de uma aprendizagem, nas aparências e pelas aparências, que excede as histórias que conta e a lógica da lição.

            Em The third man (1949), de Carol Reed, uma das primeiras coisas que chama a nossa atenção é o uso e o abuso do plano holandês ou aberrante. As imagens aparecem inclinadas, em constantes jogos de plano e contra-plano, nos que a inclinação se dá em ângulos opostos. O recurso, provavelmente utilizado com a intenção de sublinhar a tensão de algumas cenas, consegue, de fato, perturbar-nos, produzindo em nós certo incômodo, alimentando a nossa ansiedade. Mas, ao mesmo tempo, o recurso se denuncia a si próprio, não dissimula o seu papel na disposição das imagens. Vemos as cenas, podemos sentir a tensão, e ao mesmo tempo vemos essa rara propriedade estética das imagens que a compõem. Não é improvável que esta última se imponha em nós sobre os efeitos induzidos, ao ponto de que, ao reingressar no domínio da horizontalidade que rege a maior parte das imagens que vemos diariamente, sintamos uma ligeira moléstia, uma espécie de enjoo, como um marinheiro ao pisar terra firme depois de um prolongado tempo em alto mar. Não é que a perspectiva aberrante dos planos de Reed seja mais adequada que a perspectiva da horizontalidade, mas a desestabilização da nossa predisposição perceptiva projeta uma sombra crítica sobre as poéticas que pretendem ocultar a sua artificialidade detrás dos prestígios de certas construções historicamente identificáveis[2].

            Filmes como The third man nos oferecem a possibilidade de ilustrar-nos sobre as formas de pôr em imagem ao mesmo tempo que nos instruem sobre os fundamentos da interpretação (ao fim e ao cabo, apesar da sua singularidade, não deixa de ser um thriller). Esse trabalho não é necessariamente mais subtil nem mais discreto, ainda quando, acostumados a falar do cinema em termos de narração, possa resultar-nos mais difícil identificar as suas apostas e as suas operações. Em realidade, enquanto que a compreensão da trama de um filme depende do conhecimento prévio de uma série de convenções, as imagens, em si, se oferecem ao nosso olhar sem pressupostos, não solicitando de nós outra coisa que o nosso tempo e a nossa curiosidade, a nossa memória e a nossa imaginação.

            O que nos resulta inquietante, em verdade, é o estranhamento que a colocação em jogo de recursos desse tipo produzem em nós, habituados pelas poéticas televisivas e cinematográficas hegemônicas a que as imagens se nos ofereçam sob os modos da naturalidade e da transparência (por princípio, impossíveis). Por exemplo, estamos acostumados a que as imagens sejam filmadas em enquadramentos fixos, ou em deslocações suaves, de preferência imperceptíveis. Daí que quando, num filme, se introduzem cenas filmadas com câmara subjetiva e sem expediente a mecanismos de estabilização, identifiquemos de imediato uma espécie de anomalia. Em realidade, a nossa visão está mais próxima disto, inclusive se o nosso cérebro é capaz de compensar boa parte dos nossos movimentos na construção do que vemos. Basta que nos alteremos um pouco para que as imagens comecem a dar saltos.

           Em Irréversible (2002), Gaspar Noé nos oferece uma experiência intensa de todo o que pode entrar nessas variações da percepção. Durante os primeiros minutos do filme, a câmara assume uma posição subjetiva e um comportamento frenético, agitando-se constantemente, transmitindo-nos uma sensação de angústia e nervosismo difícil de suportar, que nos contagia o próprio ânimo de Markus (Vincent Cassel) e nos faz partícipes da vingança. Mais tarde a câmara tomará distância e assumirá uma posição de total imobilidade, dando-nos a ver, durante quase dez minutos, sem véus nem cortes nem rodeios, a tremenda cena da violação de Alex (Monica Bellucci). Aí também, a opção da câmara fixa tem um objeto específico, que é enfatizar a crueldade da cena, reduzindo a zero qualquer distração possível, impedindo-nos de focar a vista noutro lugar que não seja o corpo torturado da protagonista. É difícil, se não impossível, contemplar a cena do princípio ao fim, pelo menos sem parar para tomar ar, para recuperar a compostura. E não se trata de um efeito decorrente apenas do conteúdo da cena, que em última instância é (lamentavelmente) humana, demasiado humana, mas da composição estética da imagem, em si mesma totalmente inumana: ninguém é capaz de contemplar com semelhante frialdade, sem piscar sequer, uma cena assim. Raras vezes o cinema demostrou tão claramente que a composição de um plano é uma questão moral[3]. Aí onde está a câmara, não há ninguém, apenas uma máquina. Só pode tratar-se do olhar de um deus perverso ou, o que é o mesmo, do nada[4]. Essa paradoxal quietude da câmara perante a imagem que nos revolve o estômago não só suspende a progressão da história, mas a coloca de cabeça para baixo, forçando inclusive a inversão da sucessão temporal que pressupõem os incidentes da trama. Em todo o caso, esses recursos (câmara frenética/câmara imóvel), que certamente procuram golpear a sensibilidade do espectador antes que este tenha clara consciência do que está vendo, se encontram totalmente à vista; logo disponíveis para a nossa consideração crítica – ao contrário do que em geral acontece nas poéticas da transparência que procuram manipular a nossa percepção sem que o notemos. Como é possível não sermos sensíveis, depois de ver o filme de Noé, às formas habituais em que é posta em imagem a violência[5]? Como esquecer que o movimento ou a quietude das imagens são algo mais do que metáforas do compromisso ou da indiferença do olhar?

            De modo geral, chamando a nossa atenção sobre as propriedades estéticas das imagens, sobre as formas sempre singulares da sua articulação, o cinema afirma sem rodeios a sua própria artificialidade. À consciência ou não dos seus realizadores, habitualmente às costas dos seus produtores, nega assim que seja possível dar conta de uma história através de imagens sem pôr em jogo uma série de operações complexas, que ao mesmo tempo velam e revelam aquilo que as imagens evocam.

            Baz Luhrmann dizia que no cinema tudo é técnica, inclusive quando parece não haver. Na sua frequentação, contudo, o reconhecimento da artificialidade, da opacidade e do perspectivismo do cinema podem converter-se em oportunidade para aprender sobre os dispositivos que aspiram a naturalizar um certo tipo de imagens, dando por descontada a sua transparência e neutralidade – logo, proclamando o seu caráter indicial, exigindo a sua assimilação referencial e a adesão total (acrítica) do nosso olhar.

            A minha intenção, com isto, não é distinguir um cinema bom ou libertário de um cinema ruim ou alienante, nem estabelecer uma diferença essencial entre o cinema e a televisão. Os clichés nos quais se anquilosa o nosso olhar, e que nos levam muitas vezes a equiparar certas poéticas cinematográficas ou televisivas às formas naturais em que se manifesta o mundo aos nossos olhos (se é que tem algum sentido falar dessa maneira), assombram por igual todos os modos de pôr em imagem. Ao mesmo tempo, a potência disruptiva das imagens pode manifestar-se em não importa que campo da criação artística, inclusive a rebeldia dos seus criadores, contrariando o sentido das fábulas que se propõem contar[6].

            O que me interessa assinalar é menos ambicioso, mas não menos instigante. Se trata de considerar algumas das formas em que o cinema pode contribuir para a (des)educação do olhar, para a desnaturalização dos modos incorporados que temos de ver, e, pelo mesmo, para a denúncia das poéticas da transparência que, ao mesmo tempo que procuram satisfazer as expectativas desse olhar normal ou normalizado, contribuem  para o seu endurecimento.

            As neurociências nos advertem que detrás do rápido funcionamento da nossa visão se estende uma inteligência tão vasta que ocupa quase a metade do nosso córtex cerebral, e que, por sua vez, coloca em movimento as zonas do nosso cérebro associadas à afetividade, à memória e à imaginação (Hoffmann, 2000, p. 12-13). Ver não é apenas uma questão de recepção passiva, mas um processo que põe em jogo toda a nossa inteligência.

            Agora, boa parte das operações que dão lugar à visão têm lugar em geral de modo inconsciente. Isso significa que, em teoria, conhecendo os modos em que tende a responder um cérebro médio, em circunstâncias normais ou normalizadas, seria possível propiciar (sobredeterminar) certo número de reações psicofísicas, e inclusive emocionais (algo similar já afirmavam os psicólogos da Gestalt). Na prática, por outra parte, constatamos que parece perfeitamente possível, através do agenciamento estratégico das imagens, manipular, com propósitos artísticos ou políticos, ideológicos ou comerciais, o modo em que se comporta o nosso olhar e vemos o mundo, induzindo expectativas perceptivas, associações mecânicas, reações afetivas, etc.[7]

            Mas também é possível, assim como nos mostra a ciência, através de experimentos pensados especialmente para identificar os automatismos aos que em geral se encontra preso o nosso olhar, suscitar o nosso estranhamento enquanto espectadores através do reagenciamento das propriedades estéticas das imagens, obrigando-nos a pôr em variação e, através disso, a pôr em questão, o que significa ver e dar a ver, olhar e resignificar, contemplar e fazer sentido.
            As nossas mentes não se prestam passivamente à manipulação, como temia Platão e muitas vezes continua a temer a filosofia. As nossas mentes não são como a cera. Porém, sem a desnaturalização do olhar à qual dá lugar a experiência estética, seriam muito mais vulneráveis ao constante bombardeamento de publicitários e ideólogos.

UMA APRENDIZAGEM NAS IMAGENS

            Além das lições sobre o olhar que possa dar-nos através das suas histórias, e das experiências que possa oferecer-nos para que problematizemos os modos habituais de pôr em imagem, o cinema também pode ser ocasião para o livre exercício das nossas faculdades, sem ideias preconcebidas de um objeto ou um fim a alcançar[8].

            Isto é assim porque não existe sintaxe das imagens. Se as imagens, em si mesmas, pensam, o fazem sob a forma de uma espécie de parataxe. A priori, entre uma imagem e outra, não existem nexos de nenhum tipo. As imagens têm isso: cintilam. E não se trata apenas de uma singularidade atribuível à precariedade técnica dos começos do cinema: se trata de uma característica essencial[9].

            Por isso mesmo, também, a experiência que nos propõe o cinema é sempre maior e menor que as histórias que nos conta. É um convite para que estabeleçamos por conta própria as conexões que consideramos pertinentes ou insólitas, interessantes ou graciosas, críticas ou paradoxais, a partir das justaposições de imagens que nos propõem os seus filmes.

            Isso quer dizer que podemos aprender do cinema mais do que o cinema nos ensina. Ao fim e ao cabo, mesmo quando o cinema se proponha oferecer-nos lições sobre o que significa ver e interpretar, não está livre de recair em lugares comuns, nem de funcionar de modo preceptivo.

            Spellbound (1945) é um filme desse tipo: falho, pelo menos do ponto de vista do que quer ensinar-nos sobre a interpretação. Como é habitual em Hitchcock, a história abunda em grandes observadores, mas os seus olhares não se dirigem desta vez às coisas mesmas, mas repousam todas sobre um saber autorizado (a psicanálise, que funciona como uma espécie de código) e uma série de preconceitos fortemente enraizados (começando por um machismo exasperante). Não é que a intenção de introduzir a teoria dos deslocamentos do inconsciente a partir de certos artifícios do surrealismo careça de qualquer interesse. A questão é que as imagens transbordam constantemente a moldura conceitual na qual pretende enquadrá-las a perspectiva de interpretação adotada.

            Seja a cena do beijo. Com a escusa de discutir um livro, Constance (Ingrid Bergman) irrompe em meio da noite no quarto de Edwardes (Gregory Peck) – de quem alega ser o Dr. Edwardes, pelo menos (em realidade, John Ballantyne). No momento em que ambos deixam cair as máscaras e se aproximam um do outro, a câmara vai encurtando os planos em rápida sucessão, suspendendo a história num instante extático. Os olhos chegam a ocupar todo o quadro. Por fim, os dela se fecham para o beijo. Então a imagem se funde na de uma série de portas abrindo-se, uma detrás da outra, dando lugar a um corredor que se perde numa espécie de bruma branca. Evidentemente, se trata de uma metáfora, de uma bastante óbvia, inclusive, pelo menos da perspectiva de análise que propõe o filme, que deixa pouca margem para a sua interpretação. E, contudo, na sua simplicidade, essa imagem nos desvia, por excesso e por defeito, daquilo do que pretende ser metáfora, suscitando o livre devaneio da nossa imaginação.

            As imagens não se traduzem umas às outras. As imagens ressoam entre si, não apenas as que se sucedem na trama, mas em geral, em nós. Assim como na cena do beijo, ou perante a imagem estática da árvore outonal da abertura, o que vemos nos afeta sempre, em parte, à margem de qualquer rede estabelecida de sentido, de qualquer quadro de interpretação. Não independentemente de tudo isso, mas numa tensão constante, sem resolução evidente[10]. Nesse sentido, o mais interessante do filme de Hitchcock é que, além das suas apostas ostensivas, das suas intenções e dos seus artifícios, nos oferece uma experiência intensa dessa dimensão do funcionamento das imagens, da qual quiçá não haja lição alguma a extrair, mas da qual talvez possamos apreender muito. Quando a história seja retomada, nos submergiremos nela novamente, com mais ou menos interesse, mas é improvável que voltemos a aderir completamente ao argumento que rege a intriga, que sejamos fascinados por ele, agora em plena consciência de que as imagens não são apenas uma pista a ser decifrada e de que o olhar é algo mais do que um mero instrumento de exame. Pelo menos esse feitiço já não pesa sobre nós.

            Sem lugar a dúvidas, as imagens cumprem diversas funções no cinema: ilustram a intriga, pontuam a trama, enfatizam os momentos dramáticos, materializam o estado de ânimo das personagens, etc. Mas a sua singular natureza faz com que, independentemente dos serviços que possam vir a prestar, acabem sempre por fraturar a intriga, contrariar a fábula, exceder o drama, despersonalizar as personagens, etc. Nesses momentos, que são indissociáveis do seu caráter sensível, as imagens nos oferecem a oportunidade de exercitar-nos em algo mais do que na moral das histórias que nos conta o cinema.

            Isso não quer dizer que o cinema não possa contar histórias, nem que as histórias careçam em si mesmas de interesse. Pelo contrário. Porém, a partir do momento em que certas imagens perturbam o decoro do seu desenvolvimento argumental, escorregam, indo ao encontro de outras imagens, de intuições e de ideias, desencadeando uma miríade de histórias possíveis, assim como dando lugar a experiências que não traduzem bem as figuras da narração.

            O cinema nunca deixou de contar histórias, e hoje, na época que é a nossa, quiçá privilegiemos a sua forma de fazê-lo sobre qualquer outra. A questão é que o cinema não conta nunca apenas uma história, ou não se limita nunca a contar histórias. A sua intimidade com as imagens lhe impede isso. Entre a história que resume o argumento e as operações que, numa dialética complexa, se articulam no entrelaçamento do argumento e as imagens dos filmes, por um lado, e a memória e a imaginação dos espectadores, por outro, as aventuras da percepção e do sentido proliferam sem controlo.

            Isso é assim inclusive nos filmes que se inscrevem no cinema de gênero, no sistema de estudos ou na indústria do entretenimento[11]. Em The player (1992), Robert Altman, que nunca ignorou a abertura das imagens às quais dá lugar o cinema, e que em certa medida deixava sempre o corte final em mãos do espectador[12], faz a crítica mais corrosiva desse cinema que se propõe filmar “The Graduate – Part II”, ou “a cynical, psychic, political, thriller comedy with a heart”. Mas Altman não deixa de filmar por isso. Sabe que, inclusive sendo obrigado a negociar, o cinema sempre acaba por se vingar desse sistema, transgredindo as suas leis, transbordando a lógica do plot.

            De um ponto de vista filosófico, quiçá seria mais apropriado falar de um excesso do real sobre a representação. A consciência histórica que temos desse excesso, modifica as formas pelas que fazemos, vemos e pensamos a arte. E, no caso do cinema, nos é difícil imaginar como poderíamos fazê-lo, vê-lo ou pensá-lo de outra maneira (seja porque o cinema contribui para a emergência dessa consciência, seja porque ganha consistência em virtude dessa consciência emergente[13]). O certo é que, para os homens que somos, as suas imagens jamais chegam a identificar-se completamente com a representação, e, além de funcionar como ilustração ou pontuação das representações das que formam parte, põem a trabalhar o excesso da sua realidade contra as próprias figuras da representação às quais dão corpo.

            Mais uma vez, isso não significa que, perante as imagens do cinema, devamos evitar qualquer representação, que não possamos acompanhar a intriga ou contar-nos histórias que divergem mais ou menos da intriga. No fundo, como diria Bergson, qualquer representação é particular, artificial, e em certa medida arbitrária, mas o fato de nos fazer representações é universal, natural, e em certa medida, também, necessário (e essa distinção é quiçá outra forma de definir o princípio da emancipação).

            Mais simplesmente, digamos que o cinema não se esgota nas histórias que conta, nos argumentos que encena, mas que se encontra essencialmente aberto a uma articulação do que os seus filmes nos propõem com tudo aquilo que somos capazes de pôr da nossa parte.

CINEMA E EMANCIPAÇÃO
                       
            Os exemplos expostos não têm nenhum valor especial, não constituem um modelo nem propõem um método. A aprendizagem à que nos convida o cinema, em virtude da distância que assegura o exercício livre das nossas faculdades em relação ao espetáculo[14], é inevitavelmente um processo sempre individual, que ninguém pode poupar-nos, e necessariamente devemos conduzir nós próprios.

            Evidentemente, as imagens que interrompem as suas intrigas e contrariam as suas fábulas podem ser, e muitas vezes são produto das obsessões de um realizador (por exemplo, homens pendurados na borda de um abismo em Hitchcock), ou uma marca de gênero (como quando nos filmes de terror a câmara se aproxima, da praia ou do mato, à janela de uma cabana no meio da noite), ou inclusive efeito da aura de um ator ou de uma atriz (os olhos de Greta Garbo). Mas também, de forma mais geral, essas imagens podem ganhar a sua força suspensória dos investimentos do nosso olhar – com o qual qualquer imagem poderia, em princípio, ser arrancada de um filme, arrancando pela sua vez o filme do seu progresso intrínseco, para inscrever-se num jogo livre de associações e dissociações, de invenção e de crítica.

            O cinema é capaz de lições magistrais, assim como de uma potência crítica imponderável, mas, sobretudo, é ocasião de aventuras afetivas e intelectuais. Se nos entregamos a elas com paixão, lucidez e perseverança, podemos chegar a apreender muito sobre nós, sobre a profundidade da nossa sensibilidade e a espontaneidade da nossa inteligência, sobre a persistência da nossa memória e a rebeldia da nossa imaginação. No seu espaço[15], ao fim e ao cabo, não só tem lugar a suspensão da incredulidade que exigem as suas fábulas, mas também – e isso é menos evidente, mas muito mais importante – a das formas habituais de relacionarmo-nos com o sensível, com o que se dá e aparece.

            Em última instância, o cinema não é um espelho da natureza nem do homem. A ideia de que a arte levanta um espelho no qual se contemplam o homem e a natureza, dizia John Berger (2002, p. 155) é uma maneira de subestimar a realidade em lugar de interpretá-la. O cinema é, antes, um lugar de experimentação – não sempre para os diretores, os atores ou os estúdios, mas seguramente sempre para nós – onde as imagens forçam as nossas faculdades a duvidar e especular, a interrogar e propor hipóteses, abrindo gretas que podem chegar a comover os cimentos da nossa percepção e os modos que habitualmente damos por descontados para a sua interpretação.

            Nisso, as aventuras do cinema guardam certa semelhança com as da observação científica. Num como noutro caso, do que se trata é de “ligar o que se sabe com o que se ignora” (Rancière, 2010, p. 27), mesmo quando “o ato de olhar uma imagem seja muito menos concentrado e a imagem atraia uma gama mais ampla e variada das experiências do espectador” (Berger, 2002, p. 179). Resta que, no caso do cinema, ao contrário que no caso da ciência, o saber do qual partimos não exige nenhum prestígio particular. Desde as suas origens nas feiras, o cinema sempre foi fiel ao seu ascendente popular, sobretudo quando os seus artifícios formais aspiram a assombrar o olhar do espectador comum. O singular exercício da liberdade que nos propõe se dirige a todos e cada um de nós, não importa quem, na espera de que assumamos o nosso papel de intérpretes ativos, capazes de fazer das suas histórias a nossa própria história (Rancière, 2010, p. 27).

            Já em 1935, Walter Benjamin celebrava essa abertura democrática do cinema, que conjugava, de forma nunca antes vista, as distrações do povo e as provocações da vanguarda, e que, sob a forma de uma experiência lúdica, propiciava a emancipação intelectual dos seus espectadores. Com o tempo, tornou-se comum fazer pouco do seu otimismo, reduzindo as suas teses a uma definição da essência das suas imagens. Mas o que estava em jogo para Benjamin, e continua a estar em jogo para nós, era a possibilidade de uma relação.

            Com frequência esquecemos que qualquer homem é capaz de interrogar criticamente o que vê a partir do visto e do pensado, do vivido e do imaginado, quando é dessa potência comum que depende a sobrevivência do sonho benjaminiano de uma arte de massas que seja ao mesmo tempo promessa de aventuras espirituais[16]. À margem das apostas da indústria cinematográfica, e dos filmes – bons ou maus – que continuam a fazer-se, o cinema continua a ser um convite para que a exercitemos em liberdade.

AUTOR 
*Eduardo Pellejero — Universidade Federal do Rio Grande do Norte/CAPES

Referências bibliográficas:

BERGER, John. El sentido de la vista. Madrid: Alianza, 2002
EISENSTEIN, Sergei. El sentido del cine. México: Siglo XXI, 2006.
HOFFMANN, Donald. Inteligencia visual. Barcelona: Paidos, 2000.
PELLEJERO, Eduardo. Eikasía: A consciência nas sombras do cinema. Em: Paralaxe, nº especial. São Paulo: PUC-SP, 2014
PELLEJERO, Eduardo. Modos de fazer / Modos de ver / modos de pensar (Arte sem superstições). Em: Multitão: experimentações, limites, disjunções, artes e ciências. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012
RANCIÈRE, Jacques, O destino das imagens. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.
ROJAS, Sergio. El pasado no cabe en la historia. Conferencia oferecida na Universidad Complutense de Madrid no dia 5 de Junho de 2015. Madrid: UCM, 2015 (sem publicar).
SARTRE, Jean-Paul, Que é a literatura? São Paulo: Editora Ática, 2004.
SONTANG, Susan. “Um século de cinema”. Em: Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.



[1] Refiro-me ao visível, mas certamente não podemos deixar de considerar todas as dimensões que fazem parte do cinema: o som, a linguagem, a narrativa. O cinema também nos oferece uma aprendizagem nessas matérias. The conversation (1974), de Coppola, e Blow out (1981), de Brian de Palma, por exemplo, retomando respectivamente Rear window y Blow-up, oferecem uma verdadeira lição do que significa ouvir e escutar.
[2] Nem todas as imagens cinematográficas se prestam a essas aventuras, que, pelo contrário, muitas vezes tendem a reforçar os esquemas psicofísicos de reação condicionada e os códigos expressivos instituídos, sobredeterminando o sentido das imagens e deixando pouco ou nenhum espaço para o exercício crítico do olhar. Quando o cinema se abre a tal, implica um desfasamento em relação ao seu funcionamento comum (Rancière, 2011, p. 12). Cf. Pellejero, Eduardo. Eikasía: A consciência nas sombras do cinema. In: Paralaxe, nº especial. São Paulo: PUC-SP, 2014.
[3] Como é sabido, Godard afirmava que “o travelling é uma questão moral”, brincando com uma frase de Luc Moullet, que pela sua vez afirmara que “a moral é uma questão de travellings”.
[4] Para nós, pelo contrário, as imagens sempre estão em movimento, inclusive as imagens estáticas da pintura e da fotografia, mesmo que não seja senão porque os nossos olhos nunca ficam quietos.
[5] Recentemente, Dan Gilroy tematizou de forma arrepiante os dispositivos televisivos de pôr em imagem a violência. Cf. Nightcrawler (2014).
[6] Sobre o sentido da fábula contrariada, cf. Rancière, Jacques. La fable cinematographique. Paris: Seuil, 2001.
[7] O próprio Einsenstein considerava que “o estudo da conduta do homem (…) e dos seus métodos de percepção da realidade e formação de imagens, seria sempre determinante [para os cineastas]” (Eisenstein, 2006, p. 54). E, como assinalávamos antes, alguns grandes cineastas foram verdadeiros especialistas no cálculo das respostas prováveis dos espectadores às imagens, e utilizaram estrategicamente esse saber probabilístico para lhe armar ciladas, criar e frustrar expectativas, ou condicionar as suas reações psicofísicas (com mais ou menos sucesso).
[8] Sartre dizia que, de forma geral, a arte nos apresenta o mundo, não como uma totalidade fechada, historicamente sobredeterminada, mas como um processo, um devir, sempre em jogo, ao contrário do que acontece na realidade cotidiana, onde “o mundo aparece como o horizonte da nossa situação, como a distância infinita que nos separa de nós mesmos, como a totalidade sintética do dado, como o conjunto indiferenciado dos obstáculos e dos utensílios – mas jamais como uma exigência dirigida à nossa liberdade” (Sartre, 2004, p. 49).
[9] Mesmo quando se encontrem incorporadas numa intriga, mesmo quando possam estar articuladas por uma narração, as imagens são paratáxicas. Imaginemos um exemplo limite, em que as imagens se sucedam separadas por placas com conectores lógicos. Inclusive nesse caso, a conexão entre as imagens (incluídas as imagens dos conectores lógicos) não é uma propriedade do que aparece, mas depende sempre das relações que estabelece cada espectador. As imagens não são apofânticas, não são proposições nem enunciados; são uma condensação que excede qualquer figura do sentido. As imagens proliferam, mesmo a contrapelo da sucessão temporal na que se encontram inscritas (por exemplo, uma imagem modifica retrospectivamente o sentido das anteriores).
[10] A música também pode contrariar a fábula cinematográfica. Em Lisbon story (1994), de Wim Wenders, há um longo momento musical, quando Winter (Rüdiger Vogler) descobre o ensaio de Madredeus, que nos arranca totalmente do filme. Como o protagonista, fechamos os olhos, ou, mantendo-os abertos, perdemos a vista num ponto qualquer, como numa sala de concertos, e viajamos com a música. O cinema também nos depara coisas assim: verdadeiros momentos de arrebatamento.
[11] Nisto guardo uma dívida impagável para com as aulas de Mário Jorge Torres, com quem aprendi tudo o que entra em jogo quando vemos um filme.
[12] Robert Altman acostumava filmar os seus filmes utilizando várias câmaras, que exploravam cenas múltiplas, nas que tinham lugar muitas coisas ao mesmo tempo. Essa estranha forma de filmar tinha um propósito. Altman dizia que estava à procura de um momento especial, de um momento verdadeiro. Mas o reconhecimento da verdade é algo que deixava em última instância em mãos do espectador. Para multiplicar ainda mais as aberturas, nos anos setenta começa a utilizar uma gravadora de oito canais, que lhe permitia gravar a voz dos atores individualmente, para depois, na mesa de edição, misturá-las de tal forma que duas ou mais conversas tivessem lugar ao mesmo tempo, como em The long goodbye (1973) – é o espectador que deve decidir a que conversa prestar atenção, dado que não é possível escutar todas ao mesmo tempo.
[13] Sabemos que Deleuze lia a desconexão entre a intriga e as imagens a partir do que denominava a ruptura do laço sensório-motor, que atribuía, por outra parte, aos acontecimentos traumáticos da Segunda Guerra Mundial, retomando, de alguma maneira, a ideia adorniana de que não é possível continuar a escrever poesia depois dos campos. Da mesma forma, já não seria possível continuar a fazer filmes como se faziam até então, algo grande demais teria acontecido, algo que invalidaria inevitavelmente as formas de inscrever as imagens numa trama. A pertinência desse recorte, em todo o caso, se presta à polêmica. Walter Benjamin identifica esse momento decisivo nas próprias origens do cinema; John Berger nos primeiros anos do cubismo; Jacques Ranciére, na literatura francesa do século XIX. Quiçá o que se encontra em jogo exceda qualquer tentativa de atribuir um acontecimento desencadeante à mudança operada no que respeita aos modos em que fazemos, vemos e pensamos as imagens (Pellejero, 2013). O certo é que constatamos uma mudança na nossa consciência histórica, para a qual “o passado já não cabe na história” (Rojas, 2015), assim como a realidade não cabe na representação.
[14] “A distância não é um mal a abolir, é antes a condição normal de toda a comunicação.” (Rancière, 2010, p. 19)
[15] Não me refiro apenas à escuridão das salas onde tradicionalmente teve lugar, mas também à luz com que emana das telas de qualquer tipo.
[16] Cf. Sontang, Susan. “Um século de cinema”. Em: Questão de ênfase. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 2 | Ano 2015

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