INTRODUÇÃO
O cinema tem sido, ao longo de sua história, alvo de inúmeros questionamentos a respeito de sua natureza. Desses, destacamos alguns que podem nos ajudar a pensar o seu papel frente aos atuais modelos de comunicação e, mais especificamente, o lugar do som dentro da construção cinematográfica.
Um dos problemas surgidos nas primeiras décadas do século XX, como uma espécie de consequência de um modelo industrial de produção que se instaurava, é o da autoria da obra cinematográfica. Essa discussão se acirrou por conta de movimentos de vanguarda que reforçavam seu caráter de manifestação artística sob a responsabilidade de autores individuais, impondo, cada um destes, sua marca distintiva ao filme. Essa postura certamente tem raízes no romance do século XIX e repercute até os dias de hoje.
Em segundo lugar, a ideia (ou “as ideias”) de realismo tem gerado e pautado outras questões mais complexas, seja no tradicional cinema ainda filmado e exibido com o suporte de celulóide, seja em modelos de cinema digital, em que nem a película e, muitas vezes, nem a existência real dos objetos filmados, são necessários para sua concretização.
Este trabalho pretende explorar alguns desses pressupostos, tomando como base a discussão proposta por Joachim Paech (2000) em que este aponta uma transição de um modelo de cinema visto fundamentalmente como arte independente para uma confluência ou uma quase indistinção das diversas mídias, o cinema incluso, no cenário contemporâneo.
Para essa exploração, partiremos de uma crítica à noção de linguagem como estruturante da experiência cinematográfica. Apresentamos alguns argumentos de teóricos como Christian Metz endossando essa posição e, ao mesmo tempo, propostas discordantes por autores como Berys Gaut. A definição de linguagem, como apresentada por Donald Davidson, também nos fornece uma alternativa interessante ao determinismo estruturalista de Metz e demais pensadores centrados em um modelo linguístico de cinema.
CINEMA COMO ARTE E CINEMA COMO TEXTO
Joachim Paech, ao fazer uma análise das mudanças de acepções de cinema ao longo do tempo, identifica uma progressiva alteração do filme: visto inicialmente como “obra de arte”, depois tratado como “texto” e, posteriormente, encarado como meio/mídia. A discussão de Paech é direcionada à maneira como, ao pensarmos traduções entre os diversos formatos e modelos de criação artística, mantemos ou adaptamos características específicas de cada um desses modelos. Se o fazemos simbolicamente, como, por exemplo, filmando a história contada em um romance, ou se o fazemos materialmente, adaptando características físicas ou procedimentos materiais específicos de uma mídia a outra. A esse fenômeno chamamos de “intermidialidade”, compreendendo no termo essas duas dimensões: a simbólica ou representacional e a material.
Como “obra de arte”, o cinema está intimamente ligado ao conceito de “autor” e define-se a partir de sua “aura” de criação única. Como “texto”, o cinema passa a partilhar de esferas de significação comuns a outros meios e fica sujeito a uma análise de caráter interpretativo. Como meio/mídia, sobressaem suas características materiais, tanto como especificidades quanto como pontos de interseção entre os vários modelos de comunicação.
A partir dos anos 60, tornou-se necessária uma reavaliação dessa figura autoral no cinema, em que ela se configura como apenas mais um dos elementos – e não o principal – através dos quais a análise fílmica deveria ser feita. A relação do filme, enquanto veículo narrativo, com toda uma série de fatores extrafilmicos, era condição necessária para o bom embasamento de qualquer estudo cinematográfico.
O processo industrial, em que muitos profissionais assumem a responsabilidade por diferentes setores da produção dos filmes, coloca em xeque a possibilidade de apenas uma única pessoa ser apontada como “autora” da obra cinematográfica. Diferente das acepções clássicas de obra de arte, o suporte material passa a ser secundário na fruição do filme, dado que, uma vez gasta, a película poderia ser substituída por outra, sem prejuízo para a narrativa. Questiona-se a “aura” do objeto artístico, na medida em que, como descreve Benjamin (1994), o processo de duplicação mediado tecnologicamente retira da obra sua unicidade.
Mais do que a marca do autor, que ainda é mantida a título de legitimação, mesmo em produções hollywoodianas de caráter mais comercial, a questão do suporte como secundário e, às vezes, desnecessário ao consumo da produção cinematográfica (como se torna cada vez mais comum) veio fortalecer as linhas de estudo que tinham no “conteúdo” seu principal objeto de análise.
Muitas das teorias contemporâneas do cinema valem-se dessa ideia de que este deve refletir um contexto do qual tanto o realizador quanto o espectador fazem parte. Esse contexto não pode ser abstraído na experiência ou na análise do filme e independe, muitas vezes, da vontade consciente tanto de quem faz como de quem vê. Cabe ao teórico, ao crítico, investido de uma bagagem que o permita identificar quaisquer relações políticas, econômicas, sociais, ideológicas etc. associadas ao filme, trazê-las à frente, em um exercício de interpretação da obra de arte. A obra, desta forma, é “lida” como um texto, ao qual podem ser reduzidas as mais diferentes espécies de criações: imagens, sons, textos escritos etc.
Vivian Sobchack (1992) faz uso da metáfora lacaniana do espelho para descrever esse tipo de relação que se dá entre a obra e o espectador. Por sobressair-se à liberdade subjetiva tanto do autor quanto do “leitor”, o cinema é encarado, nessa concepção, como uma mediação-em-si-mesma. Ele “reflete” quem o faz e quem o vê.
É também útil destacar a diferença que Sobchack faz entre essa abordagem das teorias contemporâneas e os dois polos da teoria clássica do cinema: uma concepção realista e uma concepção formalista.
Por realismo podemos entender uma visão de que o cinema nos apresentaria – ou deveria apresentar – a realidade como ela é. O caráter de mimese das tecnologias do final do século XIX e início do XX, sendo o cinema, nesse sentido, um herdeiro da fotografia, crê em uma reprodução imparcial do mundo à nossa volta. Teóricos como André Bazin (2005), além de apostar no cinema como obra de arte única e autoral, também o consideram como mais adequado a reproduzir fielmente o mundo que nos cerca. Tudo o que for da esfera da representação, tudo o que não for exclusivamente imanente no ato de captura pela câmera, deve ser descartado ou levado em menor consideração. O cinema é dotado, assim, de uma objetividade tal que o ato de perceber o filme equipara-se ao ato de perceber o mundo. O filme, associado aqui à metáfora da janela, é tratado como uma percepção-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992).
Na outra ponta dessa conceituação clássica da experiência cinematográfica tratamos o cinema não mais como uma janela para o mundo, como no caso da concepção realista, e sim como um quadro deste. Nele o autor vai retratar o que vê não de forma inocente ou direta, mas mediado por uma instância subjetiva. Nessa linha de pensamento destacaram-se realizadores e teóricos como Eisenstein e Kuleshov, defendendo a montagem como principal produtora de sentidos do filme. A subjetividade do autor toma conta e ultrapassa a simples descrição do mundo objetivo. O filme passa a ser uma expressão-em-si-mesma (SOBCHACK, 1992).
Entretanto, tanto em um polo como em outro, podemos perceber uma ascendência do texto em relação a outras dimensões da experiência cinematográfica. Do lado realista, o filme deveria ser percebido como real para que pudéssemos mais facilmente entrar na história. A crença de Bazin era a de que quanto mais próximo de nossa percepção natural, mais o cinema se apresentaria como um prolongamento da experiência imediata. Mas ainda estaríamos atrelados a uma história sendo contada. A diferença que é defendida pela concepção formalista é a de que a linguagem, e não a percepção natural, seria a principal ferramenta para desenvolver a narrativa. Os significados possíveis são mais complexos do que aquilo que uma imagem sozinha pode mostrar.
A passagem para um modelo de análise estruturalista implicou uma radicalização da ideia de texto presente no filme. Como já dissemos, a noção de que este não está submetido apenas ao autor, diferentemente do que era proposto pelos dois polos da teoria clássica, torna-se base para análises calcadas em discursos tão distintos quanto o marxismo, a psicanálise ou a semiologia.
Mesmo no caso do som, como veremos adiante, Metz afirma que toda forma de apreensão sonora deve também passar por instâncias linguísticas. O foco seria desviado do fenômeno perceptivo e se concentraria em formas de classificação e atribuição de papéis, mais do que simplesmente na descrição. “‘Entender’ um evento perceptual não é descrevê-lo exaustivamente, mas ser capaz de classificá-lo e categorizá-lo: do qual designar seu objeto seria um exemplo” (METZ, 1980, p. 27).
Antes de aprofundarmos essas premissas sobre o som (e sobre a imagem) enquanto fenômenos linguísticos vamos descrever, um pouco mais detalhadamente, o conceito davidsoniano de linguagem.
CINEMA COMO LINGUAGEM
Para iniciarmos uma crítica a essa espécie de engessamento resultante de uma perspectiva estruturalista quanto à produção de sentidos do filme, tomemos uma definição proposta pela filosofia analítica de Donald Davidson a respeito da linguagem.
Davidson parte do princípio não de questionar o pressuposto estabelecido entre muitos filósofos da linguagem ou linguístas de que uma teoria da linguagem deveria levar em conta como os sentidos das frases são construídos a partir do sentido das palavras. Contudo, esse sentido deve ser tomado como algo abrangente, inerente ao conjunto de todas as frases de uma língua.
Se frases dependem para o seu sentido da estrutura e nós entendemos o sentido de cada item na estrutura apenas como uma abstração da totalidade das frases em que ele consta, então nós podemos dar o sentido de cada frase (ou palavra) apenas dando o sentido de toda frase (e palavra) na linguagem (DAVIDSON, 2006, p. 159).
A estrutura composicional da linguagem, em que as palavras só seriam passíveis de possuir significado a partir de sua inserção em frases, nos leva a pensar uma teoria que seria um cômputo de um conjunto finito capaz de produzir uma infinidade de frases com uma infinidade de sentidos. As frases, não as palavras, seriam as verdadeiras possuidoras de sentido. Contudo, esse sentido não pode ser único, definido apenas através dessas regras mais gerais.
Esse caráter holístico que Davidson propõe para a atribuição de significados a qualquer frase construída caracteriza-se também, e justamente por sua abrangência, por uma natureza de indeterminação. Essa indeterminação na interpretação, que geraria possibilidades múltiplas de tradução de uma linguagem para outra, seria fruto de uma fragilidade na própria ideia de sentido como objetivo último de qualquer análise. Para Davidson, mais adequado que a opacidade do conceito de sentido seria trabalhar com o conceito de verdade. Especificar as condições sob as quais cada frase é verdadeira seria uma maneira mais eficiente de alcançar seu(s) sentido(s).
Assim, qualquer teoria baseada na ideia de verdade deve levar em conta as predisposições mentais de quem fala e de quem ouve. As diferentes expressões, comportamentos e atitudes podem criar uma profusão de significados que nem sempre são atingidos através apenas de uma teoria da linguagem. Esses significados, por outro lado, só serão alcançados através da confrontação e de uma negociação entre as diversas posturas de ambos os lados. Para que uma linguagem seja compreendida é necessário um eterno ajuste das pressuposições interpretativas de acordo com o que deve ser interpretado. Nem sempre essas pressuposições são explícitas e, muitas vezes, exigem habilidades e conhecimentos (a respeito do outro, a respeito do mundo, atenção, imaginação etc.) que não são especificamente linguísticos. Essas são habilidades que não se encaixam em nenhuma explicação formal e fazem parte de um existir no mundo.
Davidson propõe que, muito embora sejam facilitadoras, convenções linguísticas não podem ser a base única para o entendimento de qualquer linguagem.
Essa postura, muito embora ainda centrada em uma possibilidade de interpretação através das estruturas da linguagem, pode nos ajudar a desconstruir o mito da “linguagem cinematográfica” como proposto pelas correntes estruturalistas, pelo menos naquilo que toma como molde as linguagens naturais, ou seja, aquelas com propriedades gramaticais específicas, mantidas e usadas por grupos ou populações, valendo-se de um repertório lexical, relações sintáticas e semânticas. Esse projeto, visível na obra Metz, sofre também a crítica de parte dos teóricos contemporâneos ligados à filosofia do cinema.
A tendência a focar nas características representacionais do filme provém, em parte, da grande ênfase colocada em sua suposta capacidade de mostrar o real, como já mencionamos. Berys Gaut parte dessa proposição para perguntar como se estabelecem essas características. De que modo o cinema (ou as teorias cinematográficas) se define (ou é definido) diante dessa questão?
Primeiramente, devemos notar que Gaut não se sente confortável com a ideia de uma linguagem cinematográfica. Descreve o modelo tradicionalmente vinculado a essa perspectiva, admitindo que algumas similaridades podem ser apontadas entre uma forma e outra. Em seguida, afirma que a imagem cinematográfica, exatamente por seu caráter de imagem, não é passível de ser reduzida às estruturas clássicas das teorias da linguagem. É pelo caráter de transparência atribuído às imagens, como uma espécie de chancela do realismo nelas presente, que o cinema guardaria uma dimensão para além do textual ou do linguístico.
Analisando o modelo do cinema enquanto linguagem, Gaut descreve alguns argumentos usados para enquadrá-lo dessa maneira. Seriam eles: como meio de comunicação o cinema é portador de sentidos. Os sentidos são frutos dos planos que são postos juntos e de suas relações, assim como no caso de palavras formando frases. Essa organização dos planos pode apresentar erros, segundo determinadas convenções, como, por exemplo, a quebra de eixo ao se filmar sequências em campo e contracampo. Esses erros teriam o status de erros gramaticais.
E aqui terminariam as semelhanças. Começam a surgir algumas diferenças em relação ao modelo tradicional das linguagens naturais. Entre elas: nós não podemos falar de um número finito de imagens possíveis, como nas diversas línguas possuímos um número limitado de palavras. A virtual infinidade de frases possíveis de serem construídas se dá pela combinação desses elementos finitos e desprovidos de significação per se fora de um contexto, o que não acontece no caso das imagens.
Além disso, as relações que se apresentam entre objeto/palavra e objeto/imagem não são as mesmas. Enquanto na primeira temos uma atribuição de significados arbitrários, no tocante à imagem, temos uma relação causal. O registro do objeto no filme se deu porque os raios de luz, refletidos nele, atingiram a lente da câmera e sensibilizaram a emulsão na película (ou inscreveram-se eletronicamente na fita de vídeo ou foram convertidos em 0s e 1s em formatos digitais).
Gaut critica a tentativa de Metz de aproximar forçadamente um modo de significação característico do cinema de um modelo que ele considera limitado, utilizando, para isso, a montagem como seu principal recurso. Para contornar a ausência de um léxico definido ou a relação entre imagens e objetos feita por analogia e não por convenção, Metz define a sequência (frase) como unidade de sentido do filme, ou seja, fruto das infinitas combinações entre unidades de linguagem (planos). Esta seria a base de significação do cinema. “A palavra, que é a unidade da linguagem, está ausente; a frase, que é a unidade do discurso é suprema. O cinema só pode falar por neologismos. Cada imagem é um hápax” (METZ apud GAUT, 2010, p. 54).
Encontramos uma contradição nessa argumentação ao tentar forçar essa relação entre linguagem natural e cinema. Mesmo admitindo que palavras não sejam análogas a planos, e que uma gramática é uma relação entre palavras, Metz ainda quer estabelecer uma espécie de gramática entre planos. Mesmo a possibilidade de frases (sequências) não constituídas de palavras (uma vez que planos seriam, por definição, diferentes de palavras) soa forçada. A necessidade de encontrar relações entre os dois universos, em uma tentativa de estabelecer regras para a produção de sentidos, acaba por colocar em xeque a própria noção de sentido. Se é verdade que cada sequência (frase) é um hápax, ou seja, uma ocorrência única desvinculada de uma estruturação interna, como seria possível que terceiros compreendessem o significado das imagens?
Mesmo estruturas mais sofisticadas, como a montagem paralela, não seriam ainda uma prova cabal dessa paridade entre cinema e linguagem natural. E aqui Gaut se aproxima da postura de Davidson: existem elementos, ou convenções, no processo de comunicação, que não são linguísticos.
Visto como meio de comunicação, o cinema deve, forçosamente, admitir a existência de outras formas de produção de sentido que não apenas as textuais. Ao empreender uma análise fenomenológica da experiência cinematográfica, Vivian Sobchack (2004; 1992) dá destaque às relações entre o corpo do espectador e do realizador e o corpo do filme. Este compreendido como envolvendo todo o aparato tecnológico que possibilita sua existência. Para Sobchack, o cinema é um exemplo de nossa inerência ao mundo e sua tecnologia faz parte de nossa consciência intencional. A participação do corpo é condição necessária para a experiência, e a relação entre corpo e tecnologia tornam essa experiência mais complexa. Seria muito redutor tentar explicar todos os processos envolvidos no ato de assistir a um filme apenas através de questões linguísticas. Estaríamos desconsiderando todo um conjunto de informações que não podem ser traduzidas nesses termos.
Se há algum aspecto de texto nessas considerações da autora a respeito do aparato cinematográfico, estes se apresentam na relação do homem com a tecnologia. Ao realizar a tradução de uma experiência imediata (que pode pertencer a mais de uma pessoa: fotógrafo, diretor etc.) para uma percepção corporificada (que ocorre quando assistimos ao filme projetado), o aparato funciona como um texto. Devemos aprender a “ler” a máquina. Seguindo uma definição de Don Ihde, Sobchack apresenta a tela como terminus dessa relação, como ponto em que se dá o contato entre percepção e mundo. Os diversos pontos de junção, onde os objetos são sentidos pelo realizador e por suas extensões no mundo (lente, microfone etc.), modificam nossa experiência e necessitam de um treinamento específico para que possam produzir sentidos, sentidos que também são específicos daquela experiência.
Mesmo isolando-se a questão das materialidades do aparato e como elas podem interferir em nossa apreensão do filme, a própria natureza da imagem fotográfica (e aqui Gaut se refere mais especificamente à imagem analógica) impõe limites a essa redução dos planos a unidades mínimas de significação nos mesmos moldes que a palavra. Uma imagem fotográfica, nos diz Gaut, não pode ser considerada como algo finito. Ela pode ser subdividida em inúmeras partes de significação, dependendo do tipo de “leitura” que se faz dela. Um pedaço de imagem pode significar isoladamente (e possuir uma relação com o todo), o que não acontece com um “pedaço” de palavra (uma ou mais letras, combinadas ou não). Entendendo essa significação como algo contextualizado, que possua um mínimo de precisão e que partilhe da mesma realidade que o todo da frase ou da palavra original da qual as partes foram retiradas.
No caso das tecnologias digitais, mais especificamente aquelas em que não há relação causal entre objeto e imagem – na computação gráfica, por exemplo –, a questão da linguagem pode se tornar um pouco mais complexa. Quando modelamos, através de softwares, os objetos que vemos projetados, podemos argumentar que estes objetos não precisaram da preexistência de outro real para se tornar imagem. Assim como o caráter arbitrário das palavras, as imagens também podem basear-se em construções independentes.
Isso seria uma explicação bastante simplificadora da questão pelo fato de não levar em consideração que mesmo as imagens geradas por computação têm um apelo ao objeto empírico. Grande parte de sua significação vem através das relações que estabelecemos com a matéria que, supostamente, deu vida ou inspiração ao que vemos na tela. Mesmo as imagens estilizadas ou caricaturais de alguns filmes de animação têm, como ponto de partida, entes do mundo real. O que dizer, então, da constante preocupação com mecanismos de renderização cada vez mais sofisticados, em que o objetivo principal é o de criar a ilusão de texturas e movimentos cada vez mais realistas? O objeto modelado pode escapar, à primeira vista, de uma semelhança com a coisa real, mas, ao mesmo tempo, busca uma proximidade de instâncias sutis e que apelam para dimensões profundas de nossa apreensão do mundo que são os nossos sentidos. A suspensão da descrença, fator decisivo para a ilusão cinematográfica, dá-se, nesses casos, não por uma semelhança imediata entre objeto projetado e objeto filmado, mas por uma coincidência sinestésica. A forma do objeto passa a ser secundária, importando sua maneira de habitar o mundo. As regras físicas de funcionamento do universo impõem uma gestalt, um modo de existir que é inconsciente e apreendido por mecanismos corpóreos, pela semelhança de movimentos, pela sensação de peso etc. Há uma inteligência corporal em ação que condiciona nossa interpretação (se é que esta é uma palavra adequada neste caso) do filme.
Quanto ao tipo de imagem digital que guarda essa relação causal entre objeto e plano filmado, também poderíamos aventar a possibilidade de uma dimensão linguística. Ao reduzirmos as imagens às suas mínimas partes, chegando aos pixels, não encontraríamos unidades de significação, mas elementos que só fazem sentido se vistos em conjunto.
Poderíamos supor, então, que, diferentemente das fotografias tradicionais, as fotografias digitais têm unidades discretas, e em um nível mais profundo de subdivisão, o pixel, elas não denotam. Da mesma forma que “Sócrates” denota, mas nem individualmente as letras que formam a palavra, nem suas várias combinações, como “rato”, denotam nada (GAUT, 2010, p. 57).
É certo que há uma dimensão de linguagem muito forte envolvendo tanto as imagens como qualquer outro elemento de comunicação hoje em dia sob o domínio do digital. A codificação binária é um modelo linguístico dos mais rigorosos que reduz elementos materiais, como intensidade de luz, cor, contraste, frequências, amplitude etc. a processos de numerização. O processamento pela máquina de objetos empíricos, transformando-os em informação, não deve dar margem a dúvidas, deve ser preciso fugir à inexatidão. É uma linguagem para máquinas e as máquinas não comportam metáforas ou associações livres como o faz a linguagem humana. Tão complexa é a tarefa de codificar e processar os mínimos detalhes envolvidos em processos de digitalização que não há possibilidade de interpretação por seres humanos dos códigos utilizados. Não há experiência na linguagem da máquina, apenas código. Só isso já seria suficiente para abandonarmos essa perspectiva como abonadora da imagem digital enquanto linguagem natural. O digital só se configura como experiência quando tornado analógico. Não há percepção digital. Tais tecnologias só podem ser “lidas” pelas próprias máquinas, ainda que a programação dessas máquinas tenha sido idealizada, primordialmente, pelo ser humano.
O SOM COMO LINGUAGEM
A questão de fidelidade ao original sempre foi uma das principais preocupações com as tecnologias de registro na passagem do século XIX para o XX. A fotografia, o fonógrafo e, posteriormente, o cinema eram reconhecidos por sua proximidade com o real. “Iniciando-se após meados do século XIX, os produtos tornaram-se particularmente valorizados se eles pudessem ser caracterizados como ‘reais’, ‘genuínos’ ou ‘naturais’” (GITELMAN, 1999, p. 153).
O som aparentemente apresentava uma maior resistência a classificações de caráter textual, em parte por desvincular a voz, um fenômeno invisível, de seu corpo visível. Várias foram as declarações da imprensa e mesmo do próprio Edison de que o registro sonoro seria uma forma de ressuscitar, de ouvir novamente os mortos. Essa dimensão metafísica pode ter colaborado na dificuldade de se enquadrar o registro sonoro como algo diferente de um contato muito próximo com o mundo real, apesar da mediação tecnológica. Nesse sentido, talvez, o som fosse mais avesso a uma estruturação em termos de linguagem.
Mas, na medida em que a codificação de convenções de montagem cinematográfica se dava, ao som cabia um papel de conferir realismo a essa construção ainda em seus alicerces. Muitas das práticas que se seguiram, ainda no processo de junção entre som e imagens, e que culminaram com o que nós entendemos como cinema clássico-narrativo, foram tentativas de dar vida a uma projeção bidimensional que pouco a pouco causava menos espanto. O engajamento por meios físicos ou pela identificação subjetiva entre cada espectador e o que se via na tela, como no caso do cinema de atrações (GUNNING, 2006a; 2006b), foi cedendo terreno a uma narrativa lógica e autocentrada. O que era mostrado no filme deveria fazer sentido independente do que havia para além da projeção. Ao som, como nos diz Rick Altman (2004), cabia o papel de indicar os caminhos, de estabelecer esse caráter de verossimilhança, do que a imagem sozinha não era capaz. O som também dirigia o olhar, nos informava a que prestar atenção e a que não. Atores se posicionavam atrás das telas, bem na direção de seus personagens para que a voz e a imagem procedessem do mesmo lugar. O acompanhamento musical era substituído ou complementado por efeitos sonoros mecânicos ou pela reprodução do próprio som do objeto gravado em discos ou cilindros. O acompanhamento musical não era mais suficiente – muito embora atuasse em esferas de sugestão emocional – para descrever o universo que o som, junto com a imagem, descortinava. Mais do que um estruturação discursiva, o que o som procurava, nos primórdios do cinema, era fornecer elementos impossíveis para a imagem enquanto estrutura formal.
Não podemos negar que também as imagens pudessem fornecer uma série de informações que não seriam da ordem apenas da construção linguística, dessa “gramática” cinematográfica. Há um bom número de estudos que se preocuparam em compreender como elementos resistentes a essa codificação estruturalista – como é o caso do “olhar” e seu endereçamento – poderiam produzir efeitos de ordem não apenas textual, mas também física, psíquica etc. O que se pode dizer é que essa classificação torna-se ainda mais complicada quando entramos no universo sonoro, seja pela metafísica descrita anteriormente, seja pelo caráter envolvente da propagação sonora, ou seja, por seu funcionamento distante de uma esfera visual e, em consequência, sendo comumente menos associado a aspectos racionais ou conscientes. Mas é claro que, como a imagem, o som também seria alvo dessa sistematização estrutural.
Metz afirma que não há diferença funcional entre um tiro de revólver ouvido em uma sala de projeção de filme e o som do tiro original. Ou ainda, não haveria diferenças entre sons distintos de tiros em filmes, por maiores que sejam suas singularidades acústicas, uma vez que todos atendam à mesma função dentro da narrativa. Todos serão compreendidos como tiro. Toda e qualquer distorção imposta pelos mecanismos de gravação e reprodução será desconsiderada na experiência de quem ouve o som acompanhado das imagens. Para Metz, a linguagem seria um metacódigo dos sons, em que, para que haja uma completa identificação do que se ouve, é necessário especificar não apenas o som, mas também sua fonte. Assim, quando dizemos o “estrondo do trovão” é pelo termo “trovão” que conferimos um significado mais preciso ao objeto, sendo que “estrondo” é uma qualidade pouco precisa e que pode atender a vários outros objetos. A atenção às propriedades acústicas, estritamente falando, não seria o mais importante. “Ideologicamente, a fonte aural é o objeto, o som em si é uma ‘característica’. Como qualquer ‘característica’, ele está ligado ao objeto, e é por isso que a identificação deste é suficiente para evocar o som, enquanto o inverso não é verdade” (METZ, 1980, p. 26-27).
Metz opõe a audição, que para ele designaria qualidades secundárias dos objetos, a sentidos como a visão e o tato, capazes de captar qualidades primárias, essencialmente materiais, das coisas. O tato poderia ser considerado, seguindo essa linha de raciocínio, como árbitro supremo da realidade, o critério principal para a definição da materialidade do mundo. O som funcionaria, nessa perspectiva, pelo estabelecimento de convenções e pelo acúmulo de qualidades secundárias. O som seria construído socialmente e devemos aprender as regras pelas quais os sentidos são conferidos a ele.
Paradoxalmente, Metz não vê uma discrepância entre sua postura e uma abordagem fenomenológica da experiência cinematográfica. Ele busca uma descrição da apreensão das coisas, sendo que essa apreensão não é espontânea ou natural, e sim profundamente contaminada por instâncias culturais. Ela pode se dar de formas diferentes dependendo do grupo social em que estamos inseridos. Sem o conhecimento prévio desse corpo de relações, não há sentido possível. É como se Metz tentasse trazer a fenomenologia transcendental, defendida por Bazin (na verdade uma leitura precária da proposta husserliana), para uma esfera cultural. A cultura, e não os dados perceptuais (como nos sugere Sobchack), seria o parâmetro definitivo para o entendimento do filme.
Quando penso em meu próprio campo de pesquisa, a análise cinematográfica, como eu poderia esconder de mim mesmo – e porque deveria – o fato de que todo um corpo de experiência cultural prévia, sem a qual uma “primeira visão” do filme não seria sequer visão [...] – que todo um corpo de conhecimento já presente em minha percepção imediata é necessariamente mobilizado para tornar possível que eu trabalhe? E como eu poderia esquecer o fato de que esse corpo de conhecimento é – que ele é e não é – o “cogito perceptual” da fenomenologia? O conteúdo é o mesmo, o status que atribuímos, não (METZ, 1980, p. 31).
É claro que essa posição encontra diversas vozes discordantes. Tom Levin, por exemplo, nos diz a respeito das tecnologias de gravação e reprodução: “que um tiro de revólver pareça soar da mesma forma nos diferentes espaços acústicos da rua e dentro do cinema é um engano [...] a familiaridade entorpeceu a capacidade de reconhecer a violência feita ao som pela gravação” (LEVIN apud LASTRA, 1992, p. 66). Cada som é um som único, portador de significados próprios.
Ao propor um “cinema de evento”, Rick Altman (2004) igualmente atenta para dimensões não categorizáveis dentro da experiência do cinema. Assistir a um filme é também estar sujeito a diferentes condições físicas que modificam nossa apreensão do que é mostrado na tela. O filme funciona dessa ou daquela maneira muito em função do seu entorno. Cada exibição, em que suporte for, é um evento único.
Já Metz não encara o som como um evento único e não passível de repetição, mas como estrutura inteligível. O que parece contraditório quando ele afirma serem as sequências de imagens “neologismos”, eventos únicos.
Metz, com efeito, rejeita a corrente versão da representação-como-estímulo-sensorial em favor de uma nova versão da representação-como-inscrição-(legível). Metz, assim, enfatiza menos a unicidade perceptual do que a capacidade de gerar sentidos em um contexto particular, definido neste caso por parâmetros econômicos, institucionais e formais (LASTRA, 2000, p. 126).
Mecanismos de mobilização física e de imersão do espectador dentro da narrativa, como tem se tornado bastante comum no atual cinema comercial, aparentemente funcionam segundo outra lógica. O caráter espetacular das grandes produções, repletas de efeitos especiais e que demonstram, particularmente, uma preocupação bastante grande em fornecer um contexto sonoro que envolva e convença o espectador, parece apontar para um nível de produção de sentidos que não exatamente o proposto pelo modelo estruturalista.
CONCLUSÃO
Ao encaminhar a discussão do papel do cinema (e não apenas do cinema, mas também de diversas outras mídias) no atual ambiente comunicacional, Joachim Paech indica algumas das críticas sofridas atualmente por essa perspectiva estruturalista de análise textual. Uma epistemologia neo-formalista, segundo Peach, defendida por teóricos como David Bordwell (1996), traria o sujeito mais uma vez à frente da relação com o filme. Agora, em vez de considerar o filme como um “texto” que constrói o seu sujeito, definindo de onde espectador e realizador partem para compreender ou filmar, essa nova concepção advoga a existência de conhecimentos prévios que aqueles que vêm (e fazem) o filme devem possuir. Sem isso, sem essa experiência prévia, não há sentido possível. O filme passa a ser uma construção de quem o faz e também de quem o vê.
Nós entendemos filmes tão bem (e mais facilmente do que textos literários) porque os esquemas que eles utilizam são, até certo ponto, homomórficos em comparação com aqueles usados em nossa percepção cotidiana, isto é, não precisamos aprender a entender filmes porque nós já sabemos nosso caminho no mundo (PEACH, 2000, não paginado).
O estudo do cinema enquanto mídia possibilitaria, para Peach, uma atenção às diferentes relações que o discurso cinematográfico tem estabelecido com outros discursos, como a literatura, a música ou as artes plásticas, de modo a permitir uma “intermidialidade”, uma complementaridade entre as ideias de mídia e de forma. Uma relação em que os dois aspectos são lados de uma mesma moeda. Toda mídia só é observável enquanto forma. Ao mesmo tempo, é a mídia que dá as condições para a existência da forma. Essa “medialidade” da linguagem, da escrita ou das imagens designaria uma função, mas também uma forma de exercer essa função. De modo um tanto mcluhaniano, Peach nos diz ainda que uma forma pode se tornar a mídia de uma nova forma.
Tal análise nos levaria a encarar o meio cinema como uma condição de perceber (e entender) o filme enquanto forma que não se baseia em uma linguagem natural, mas em uma eterna tradução e adaptação de repertórios. A forma material é também parte desses repertórios e é passível de ser cooptada pelo repertório de novas mídias.
Os processos de mutação, transformação, tradução, adaptação, hibridação etc. entre as diferentes mídias é um campo atual e bastante promissor. Mas não é exatamente desconhecido. O primeiro cinema utilizava técnicas oriundas de diversos meios de expressão. Talvez, justamente por não estar ainda atrelado à ideia de linguagem cinematográfica.
O cinema, como meio de imagens, sons e outras possíveis afetações sensoriais, não deve descartar nenhuma dessas possibilidades de se fazer compreender. Seja através de um exercício de interpretação ou simplesmente pelo acolhimento e pela identificação mais íntima entre espectador e filme.
AUTOR
* José Cláudio S. Castanheira — Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor e coordenador do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador na área de Estudos do Som, Cinema e Música. É um dos autores do livro Reverberations: The Philosophy, Aesthe-tics and Politics of Noise (2012), editado por Michael Goddard, Benjamin Halligan e Paul Hegarty e do livro Small Cinemas in Global Markets: Genres, Identities, Narratives (2015), editado por Lenuta Giukin, Janina Falkowska e David Nasser. José Cláudio atua também como compositor de trilhas sonoras e sound designer para filmes.
Referências bibliográficas:
ALTMAN, Rick. Silent film sound. NewYork: Columbia University Press, 2004.
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FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 2 | Ano 2015
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