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Depois da chuva

Filme de Cláudio Marques e Marília Hughes

Yves São Paulo*


       Existem alguns planos muito curiosos em Depois da chuva, que parecem se repetir ao longo do filme. A câmera permanece estática e no interior da imagem quase não há movimento. Os personagens ficam sentados ou de pé, fazendo ou esperando alguma coisa acontecer, o que não necessariamente pede a eles a sua mobilidade. A duração dos planos é razoavelmente longa, permanecem em tela quase que o mesmo tempo que as discussões dos adolescentes na escola. Mas nelas há algo de diferente. Um sentimento que se escoa por entre cada frame projetado na tela. Ao longo da cena soa uma música, um punk, gênero facilmente associado aos anarquistas oitentistas que se tornou hino graças a algumas bandas bem lembradas no filme - os álbuns dos Sex Pistols aparece com certa constância nos diálogos e nas paredes.

      O típico a se fazer quando há na trilha sonora de um filme uma canção punk ou heavy metal é acelerar o ritmo do filme. Colocar as imagens numa agilidade semelhante àquela da canção. Isso se faz pelo movimento de câmera, pelo movimento no interior das imagens ou mesmo pela montagem acelerada em que os planos duram segundos ou menos que um segundo em tela. Com algumas exceções (como as cenas dos encontros de Caio com sua namorada), Depois da chuva não segue este padrão de construção fílmica. As imagens são estáticas - em algo que me lembrou especialmente o cinema de fluxo oriental de Tsai Ming-liang, apesar de serem propostas radicalmente diferentes - enquanto a música é posta demandando a agilidade, a velocidade. A música é explosão enquanto a imagem é calma.

     Este dualismo é muito sensível ao trabalho realizado pela dupla de diretores em seu debute em longa-metragem. O que demonstra que os cineastas pensaram muito bem em como compor seu filme antes de transformá-lo em realidade. Isto porque estas cenas em que se dá o dualismo desenvolvem uma emoção no espectador que pode não ter seu significado bem compreendido, mas que será sentida. A proposta do filme é de realizar um registro em primeira pessoa de um momento histórico. Mais do que falar do Brasil em seu momento de abertura política, o filme busca o impacto da história sobre o indivíduo. Ao tratar do indivíduo ele encontra os indivíduos que flutuam ao seu redor: os colegas de escola, os professores, a mãe, os amigos anarquistas.

     Os personagens em geral parecem atirados numa inércia que os planos fixos captam bem. Porque, apesar de "inércia" evocar a movimentação - necessária à feitura de um filme -, aqui ele surge como um descontrole (continuo me movimentando mesmo depois de ter tentado parar). A câmera é fixa como se esperasse a ação dos personagens (os anarquistas dizem que tem que agir por conta própria, mas por que não agem?), mas eles em poucos momentos fazem alguma coisa. Quando a câmera se põe em cena como provocadora é porque encontra no mundo quem esteja disposto à ação. E a ação somente surge quando seus personagens resolvem tomar as rédeas de suas próprias vidas. A ação surge no relacionamento de Caio com a colega de escola, que vira sua namorada. E na performance de sua banda num festival na escola.

      O papel da câmera aqui passa a ser mais que observar os jovens, mas buscar o sentimento que os guia. Quando o anarquista amigo de Caio descobre-se sozinho em meio à sua batalha política, perde as forças para fazer um pronunciamento em sua rádio de frequência roubada, como ele orgulhosamente pontua. Microfone em mão, sozinho no prédio onde fica o equipamento, ele pergunta se há alguém o ouvindo. Enquanto isso a câmera recua como se sentisse a necessidade de libertá-lo. Mais que isso, registra a sua solidão.

      Depois da chuva é um daqueles filmes em que os significados não serão dados ao espectador, que terá que procurá-los em cada quadro. Comecei este texto falando das imagens de pouco movimento ao som de canções punk. Ao ser posta estática, a câmera não somente filma o fato, mas espera que algo se desvele de debaixo daquele envoltório que são as coisas que ela capta. Tal como o Cézanne de Ponty pinta o que há no interior das coisas, a câmera da dupla Marília Hughes e Cláudio Marques capta o que há por trás daquele envoltório chamado corpo. Há uma raiva em Caio contra todo o mundo, mas o que pode ele fazer para apaziguá-la? Entrar para o grêmio estudantil ou pular para a morte de um prédio abandonado?

     O filme busca este desvelar do sentimento do jovem que se descobre enquanto ser social. Cria uma trama com tudo aquilo que uma narrativa normalmente pede: um conflito, um romance, uma moral. Mas esta moral de Depois da chuva está muito mais próxima de uma ética política do que a moral de conto de fadas. É uma moral de esquerda desiludida, de uma juventude que já cresceu vendo (e entendendo) as coisas perdendo seu rumo. Depois da chuva se resolve muito melhor no que diz respeito ao desenvolvimento do subjetivo do jovem do que enquanto narrativa para solucionar um conflito originalmente posto. O que poderia surgir como defeito, aparece enquanto provocação. O filme salta para fora da tela para questionar o espectador sobre seu próprio momento político numa análise histórica - e os dados históricos do momento narrado nos são dados pelo filme. Cabe a nós, espectadores, fazermos nosso dever de casa.


***

Uma breve nota sobre o ritmo cinematográfico

Costumeiramente pensado como sendo própria à montagem, o ritmo cinematográfico se desenvolve, também, no interior do quadro. É noção que Andrei Tarkovski já tinha bem desenvolvida em seu cinema e que expõe em Esculpir o tempo, livro em que apresenta seu pensamento. Diz o cineasta: “O fator dominante e todo-poderoso da imagem cinematográfica é o ritmo, que expressa o fluxo de tempo no interior do fotograma” (p. 134).

Em Depois da chuva, a cena que me chamou particular atenção e que talvez pudesse resumir o filme – o que seria uma heresia – se desenvolve em um plano, onde o grupo anarquista que orbita em torno do protagonista (ou em torno do qual o protagonista orbita) se encontra em um prédio abandonado. Câmera fixa, personagens sentados no chão sem alterar seus posicionamentos em momento algum, cantam uma canção repetitiva, tocada com instrumentos aparentemente improvisados: nunca conheci quem tivesse levado porrada, nunca conheci quem tivesse levado porrada, nunca conheci quem tivesse levado porrada..., repete à exaustão a cantora, seguida por seus parceiros, numa rapidez que concede à letra a sonoridade de golpes sendo desferidos no interior de quem canta.

Pensamos aqui numa noção de ritmo não tanto ligada à de Tarkovski, como sendo conectada ao interior do plano, somente, mas também à coisa cinematográfica, ao filme e a sua moldagem – uma montagem eisensteiniana, por exemplo. Mas neste caso, o ritmo da montagem é deixado de lado. A música cantada pelo grupo possui um grande apelo à aceleração, seus golpes que clamam pelo corte, pela aceleração da montagem – e os diretores o percebem e a recuperam, desta vez somente enquanto trilha sonora, numa cena mais “dinâmica”, rápida.

O tempo do plano passa a ser ditado não pelo movimento quase nulo dos personagens para ser tomado pela música. O som – o que poderia nos lembrar o além-quadro de Fritz Lang em M, o vampiro de Dusseldorf – passa a ser este tempo interno aos sujeitos filmados, àquilo que a câmera, a princípio, não seria capaz de filmar. E eis mais uma das facetas das quais é capaz a câmera de filmar: desvela-nos a temporalidade interna ao sujeito.

AUTOR 
* Yves São Paulo — graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e editor da Revista Sísifo.

Referências bibliográficas:

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 2 | Ano 2015

Um comentário:

  1. O filme realmente é muito bom. No entanto, por se passar na Bahia, achei um erro grave a ausência de negrxs no filme. Visto que 78% da população da Bahia é negra.
    Mas isso não anula a magistralidade do filme. ;)

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