Se a vida do filósofo grego Sócrates demonstrou que para existir filosofia lhe
bastaram as ideias, o poeta francês Stephane Mallarmé, por sua vez, nos aponta
que para que exista poesia, além das ideias, é preciso ainda a palavra[1]. Seguindo este raciocínio, Antônio
Cícero conclui – acrescentando a etimologia dos termos (Filosofia: amor à
sabedoria; Poesia: feitura, produção): “enquanto a finalidade da obra
filosófica é a manifestação – na vida e na obra do filósofo – de uma proposição, tese ou
doutrina filosófica, a finalidade da poesia é a obra poética, isto é, o poema” [PF, 49][2].
Lançado em 2012, assim como seu mais recente livro de poesias[3], Poesia e Filosofia de Antônio Cícero é o primeiro
esforço do autor em um livro inteiro de registrar reflexões sobre a relação
mesma entre ambas as atividades. Segundo o próprio Cícero, em matéria da Revista da Livraria Cultura na edição de setembro do mesmo
ano (nº 62), o livro foi todo escrito “para tentar provar que elas são
coisas inteiramente diferentes”. Entretanto, a despeito dessa
construção que realmente percorre toda a obra, alguns dos mais interessantes
desdobramentos dela são, justamente, os pontos em que universos tão distintos
se tocam e se comunicam. Em entrevista ao site G1, de 13 de agosto de 2012, o autor explica algumas
dessas distinções e diálogos: “Um poema consiste numa síntese concreta de múltiplas
determinações; um texto filosófico é abstrato. Por outro lado, penso que a
filosofia intrinsecamente afirma a razão e a liberdade, e isso significa também
defender o espaço da poesia no mundo”.
Antônio Cícero é graduado em
filosofia pela Universidade de Londres, com pós-graduação na Georgetown University (EUA), professor de Filosofia,
Lógica, Estética e Teoria da Arte em faculdades do Rio de Janeiro; reconhecido
poeta brasileiro, consagrado nesse âmbito com os livros Guardar (1997) e A cidade e os livros (2002); compositor letrista – parceiro de João Bosco, Waly Salomão, José Miguel Wisnik, Adriana Calcanhoto, entre
outros –, autor de grandes sucessos da MPB, como O último romântico (com Lulu Santos), À Francesa (com Cláudio Zoli) e Fullgás (com sua irmã, Marina Lima), através das quais se tornou
definitivamente conhecido por um grande público.
De 1993 a 1995 promoveu os ciclos
de debates do projeto Banco Nacional de Ideias, com intelectuais e
artistas, como Richard Rorty, João Cabral de Melo Neto, Caetano Veloso, Tzvetan Todorov, Darcy Ribeiro, Bento
Prado Júnior e Haroldo de Campos. Em seu último livro de ensaios filosóficos, Finalidades sem fim (2005), o autor discute as criações artísticas em torno da
(pós) modernidade e do fim das vanguardas – caso este que, para o autor,
realizou plenamente a modernidade, mais do que a encerrou.
Agora, em Poesia e Filosofia, nosso poeta-filósofo põe em diálogo direto dois ambientes
que lhe são muito íntimos, ora lidando com relações mais conceituais, ora com
formas mais práticas, num desenvolvimento didático, rico em referências e inteiramente
fiel às suas bases literárias em ambas as áreas. Tanto os seus estudos de
filosofia como os de poesia têm um pé na antiguidade clássica e outro na
contemporaneidade: vão dos clássicos greco-latinos aos artistas modernistas,
concretistas, tropicalistas e filósofos analíticos. O autor passa de Manoel Bandeira a Horácio, de Wittgenstein a Ungaretti, de João Cabral a Agamben, caminhando entre Lucrécio, Ovídio, Nietzsche e
Whitman.
Segundo Antônio Cícero, os
enunciados filosóficos são proposicionais, enquanto os enunciados poéticos não
são. Essa seria uma das diferenças principais e mais básicas entre os dois, implicando, por exemplo, que a um
enunciado filosófico, então, podemos atribuir valor-verdade, do que decorre considerarmos um texto filosófico
como um conjunto de proposições, ou uma proposição complexa [PF, 51]; o que, por sua vez, nos
leva a concluir, entre outras coisas, que “uma doutrina filosófica
autocontraditória invalida a si própria”, já que uma proposição é incompatível
com uma proposição que lhe é contraditória [PF, 52-53]. Ora, com um poema é completamente
diferente: numa construção poética os versos, absolutamente, “não são nem pretendem ser
proposições de verdade” [PF, 57] e a poesia, então, não mantém qualquer relação
formal com uma proposição complexa ou um argumento. Uma poesia
autocontraditória, por exemplo, não se invalidaria por isso (malmente por
qualquer outro motivo). O exemplo de Cícero para o caso dos enunciados poéticos é No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, formado por versos que,
mesmo às vezes parecendo proposições às quais se pode atribuir
valor-verdade, são pseudoproposições, uma vez que nem permitem verificação, nem sequer
pretendem tal análise; e o arremate dessa relação com filosofia é feito com o seguinte trecho das Considerações Extemporâneas de Nietzsche:
(...) o homem teórico entende do propriamente poético, do mito, precisamente tanto quanto um surdo de música, isto é, ambos veem um movimento que lhes parece sem sentido. A partir de uma dessas esferas disparatadas não se pode ver a outra: enquanto se está sob o encanto do poeta, pensa-se com ele, como quem é somente um ser que sente, vê e ouve; as conclusões a que se chega são as articulações dos acontecimentos que se veem, logo, causalidades factuais, não lógicas[4].
No entanto, em Cícero é
interessante notar como não há uma diferenciação valorativa entre poesia e
filosofia. Lendo Poesia e Filosofia,
veremos um esforço de descrições de duas atividades humanas diferentes,
explicados ao longo do livro em posições independentes, por vezes contrárias.
Mas no decorrer da leitura também vemos essas descrições se tocando a todo
instante, para, ao fim, completando seu objetivo inicial de diferenciá-las, o
autor concluir: “não apenas tenho tomado a filosofia como diferente da poesia,
mas, basicamente, como seu oposto complementar” [PF, 125]. Entendo que essa
relação tão próxima entre ambas se dá pela leitura de Antônio Cícero dessas
atividades como tipos de discurso (entre outros, poderíamos acrescentar), como formulações
humanas que têm a ver com relações humanas também. Ou seja, são comunicativos e
dialógicos. Ainda que sejam eminentemente expressões, também comunicam, o que as torna em medidas diferentes
(mas complementares) discursos ativos. Na citada matéria da Revista da Livraria Cultura, ele ainda exemplifica a distinção do seguinte modo: “lemos um livro de filosofia para
aprender algumas coisas ou para refletir sobre elas. Um poema, porém, lemos
pela mesma razão pela qual apreciamos um quadro, uma escultura, uma peça
musical: pelo prazer estético que ele nos dá”.
Partindo dos conceitos de metadiscurso (o discurso que fala sobre um
discurso) e discurso-objeto (o discurso sobre o qual o outro
discurso fala), Antônio Cícero nos lembra que um metadiscurso pode ainda ser discurso-objeto em
relação a outros discursos que falem dele, o que o leva a formular a
noção de discurso-objeto terminal, “aquele
cuja função primordial não é falar sobre discurso algum nem falar sobre coisa
alguma”. E conclui: “Assim é o objeto da língua que é o poema enquanto
poema” [PF, 125]. Em contrapartida, um metadiscurso terminal seria “aquele que pode ter por objeto
outros discursos e outras coisas, mas que não pode, ele mesmo, ser objeto de
nenhum discurso fora de si, pois o único discurso que o tem por objeto é ele
mesmo” [PF, 125-126]; e a filosofia é um
discurso desse tipo.
No último parágrafo do livro,
Cícero formula uma das mais interessantes relações e aproximações
(direta-indireta) entre poesia e filosofia, que conheço – ao menos de modo tão explícito – na recente produção teórica brasileira sobre isso:
Se esta [a poesia] constitui a afirmação radical e imanente do mundo fenomenal, imediato, aleatório, finito, aquela [a filosofia] é o núcleo do empreendimento moderno de crítica radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou cercear a vida e, consequentemente, congelar e cercear a própria poesia [PF, 129].
Numa
direção um pouco diversa da de Cícero, ao compreendermos a poesia como
comunicação, para além da pura expressão, acompanhando autores como João Cabral
de Melo Neto e Mário de Andrade[5], e a filosofia como crítica da
cultura, ou seja, como esforços de interpretação e modificação da vida das
pessoas, acompanhando, por exemplo, John Dewey ou Richard Rorty[6], ambos os discursos (poesia e filosofia) serão maneiras de
relações culturais, sejam interpessoais ou ambientais (políticas, sociais,
históricas, etc). Assim, gêneros que comumente são tratados distintamente
podem nos parecer mais com ferramentas importantes e cujo uso dialógico
acrescenta (mais do que atrapalha) numa construção individual e
cultural, onde também será política. E, ainda que não estejam no livro – e que me pareçam, por vezes,
conclusões às quais Antônio Cícero não pretende chegar, nem em filosofia, nem em
poesia –, esses são alguns desdobramentos
possíveis da leitura de Poesia e Filosofia. Claro que, aqui, não num estudo
estruturalista da obra, mas como referência instrumental, para a uma construção
própria que me parece mesmo o modo mais
interessante de se fazer tanto poesia como filosofia.
Para um leitor mais desconfiado,
essa apropriação digressiva do livro pode parecer até incompatível com a
diferenciação entre ambas atividades dada no primeiro parágrafo deste texto. E,
de fato, o é. Esse uso que, por fim, faço do ponto de toque que Cícero propõe
entre filosofia e poesia deixa de lado os pontos extremos – seu entendimento
isolado de poesia e de filosofia –, uma vez que a noção socrática de filosofia
como pura ideia me parece participar de um vocabulário menos interessante para
uma construção filosófica contemporânea – destrancendentalizada, pós-metafísica
(e também pragmatista); ao passo que, para uma ideia de poesia comunicativa, ou
seja, que supõe o interlocutor, também não nos basta sua aparição pura e
simples (seu estar-aí). Nos dois casos, creio que são discursos no mundo, mas
no mundo humano-sociopolítico e, assim, discursos ativos. Há, então, um lugar
onde me parece haver espaço tanto para os pontos de contato entre poesia e
filosofia proposto por Antônio Cícero, como pela compreensão prático-ativa
dessas atividades: o ambiente cultural.
AUTOR
*Professor de Filosofia da UEFS; doutorando em Filosofia pela UFBA.
NOTA
Este texto foi escrito quando do lançamento do livro, mas permaneceu sem publicação
até então – de modo que o deixei quase intacto, com pequenas e necessárias
atualizações apenas. Na época, após conversar sobre ele e compartilhá-lo com o
próprio Antônio Cícero, tive a felicidade de receber um entusiasmado elogio do
próprio autor, junto com a disposição de ver em Antônio Cícero um pensador mais
interessado no debate mesmo, uma vez que faço, lá pelas tantas, minhas críticas
a suas posições.
REFERÊNCIAS
[1] VALÉRY,
Paul, “Degas danse dessin”. In: Œuvres,
v.2. Paris: Gallimard,
1960, p. 1208.
[2] CÍCERO, Antônio, Poesia e Filosofia. Rio de janeiro:
Civilização Brasileira, 2012. [Doravante citado como PF, seguido pelo número da
página].
[3] Idem, Porventura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.
[4] NIETZSCHE,
Friedrich, Unzeitgemäße Betrachtungen,
apud CÍCERO, Antônio, Poesia e Filosofia. Rio de janeiro:
Civilização Brasileira, 2012, p. 58-59.
[5] Cf., p. ex., MELO NETO,
João Cabral de, “Poesia e Composição”. In: _____. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; e ANDRADE, Mário de,
“A Escrava que não é Isaura”. In: _____. Obra Imatura. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
[6] Cf., p. ex., DEWEY, John, “Philosophy and democracy”. In:
_____. The middle works. Carbondale: Southern Illinois University
Press, 1982; e RORTY, Richrd, Filosofia
como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 1 | Ano 2015
Excelente texto.
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