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Muros, Monumentos e Placas: inscrições urbanas em cidades fugidias

Rodrigo Araújo*


Para Nani Castro, Theo Barreto e Alan Sampaio.


“Restituta, (nome da mulher) tire sua túnica e mostre os seus pentelhos.”

“Theophilus, não faça sexo oral nas mulheres igual um cachorro.”

“Alfidius esteve aqui.”

“O agente de finanças do imperador Nero disse que a comida aqui é um lixo.”

“Chorem, mulheres. Meu pênis desistiu de vocês. Agora penetra homens por trás. Adeus, maravilhas femininas.”

 “Epaphra, você é careca.”

Pichações em Pompeia

Aquilo que refugamos é também aquilo que consideramos inútil ou imprestável, o que separamos do bom, o que repelimos. Os dicionários nos apresentam a definição do refugo como a porção inferior, do impuro, do que não presta, do que há de mais abjeto num grupo qualquer, o estragado, o degradado.  Na literatura, a figura do refugo aparece frequentemente na obra do Marquês de Sade, de Antonin Artaud e de Carl Solomon por meio do sexo, do excremento e da doença mental. Postulam sobre aquilo que impede o feixe luminoso e harmônico do círculo do pensamento e do sistema social que dele se pode se acreditar derivar. Referem-se àquilo que resiste e, portanto, apresentam gestos de resistência diante das ambições descritivas e das tentativas de traduções transparentes do mundo; dos anseios de tomar o mundo pelas mãos como que o domesticando pela força do pensamento, controlando-o pela nossa ratio. A despeito das nossas crenças de que podemos objetivamente justapor regularmente certos aspectos do real, aqueles autores nos lembram o que nos desfigura e que, ao mesmo tempo, nos constitui, o que define o arranjo do que somos. Ensinam-nos que são os nossos refugos que, enquanto despojos do real, podem, paradoxalmente, ampliar nosso “estoque de realidade” e, portanto, de vida. Dentre as diversas expressões da figura do refugo, gostaria de tratar a pichação como um tipo de literatura desta natureza. 


Em 2014 houve um caso envolvendo a pichação na Universidade Federal da Bahia, um segurança foi acusado de atirar em um estudante, que, supostamente, pichava o patrimônio público. Por sorte, o disparo o atingiu de raspão. As argumentações sobre o fato transitaram em duas vias: 1) o amplo e, diga-se, justíssimo ataque ao gesto truculento do segurança; 2) a reivindicação para que o dito infrator fosse punido, sob a alegação, aparentemente não menos justa, de que houve ali um atentado à coisa pública à res pública. Proponho que, por ora, se desloque a abordagem do fato do âmbito jurídico e moral para uma espécie de “politização estética” do tema, considerando-o como um refugo. São inúmeros os casos de pichação que culminam em tragédia e derramamento de sangue pelo país. Ainda em agosto de 2014, dois famosos pichadores paulistanos foram mortos por policiais numa emboscada enquanto tentavam realizar mais uma de suas façanhas em um altíssimo edifício da cidade; em 2013, numa viagem à Curitiba, ouvi de um taxista, que me narrava entre um laivo e outro de satisfação no canto dos lábios, sobre um brutal assassinato, precedido de tortura, a dois pichadores paranaenses menores de dezoito anos; e eu poderia me alongar numa enorme lista de truculências perpetradas em torno desta prática que só corroborariam a tese de que este caso não pode ser visto de uma maneira trivial e localizada.


Existe uma ideia difundida no imaginário brasileiro contemporâneo de que a pichação rivaliza com o grafite. Não há dúvidas de que a politização do debate sobre o grafite trouxe não somente um certo “embelezamento” aos espaços públicos, mas também uma maior visibilidade às expressões e aos artistas que realizam a arte. Mas é preciso dizer também que as políticas de socialização do grafite trouxeram, involuntariamente, um efeito colateral sobre a pichação, inaugurando aí um tipo de maniqueísmo no qual quem grafita é civilizado e criativo e quem picha é bárbaro e vândalo. Durante a década de oitenta, houve em São Paulo quem pretendesse, inclusive, realizar uma espécie de “formação de grafiteiros”, por meio de cursos e oficinas, com garotos que pichavam os muros. A justificativa era de que estes últimos eram “despreparados artisticamente” e se oferecia aí uma espécie de reciclagem, uma reutilização ou repaginação de certo estrago social, uma depuração do refugo. Os indícios confessos de tal soberba “cultural” podem ser conferidos no pequeno livro O que é o graffiti, de Celso Gitahy, editado pela editora brasiliense no final dos anos noventa.  Etimologicamente o grafite se confunde com a pichação, já que o termo originário provém do grego graphein, que remete à grafia e, portanto, à escrita. Entretanto, ao menos aqui no Brasil, é possível diferenciar as duas práticas. De saída, proponho que tenhamos em mente a genealogia e filiação do grafite e da pichação. A primeira, da família das artes plásticas, existe desde os primórdios e, provavelmente, tem em Altamira a sua mais antiga e marcante manifestação. No século XX, a ascensão dos muralistas mexicanos parece ter garantido de uma vez por todas um lugar ao sol às pinturas nos muros. Na Nova York “setentista”, a cultura Hip Hop eleva o grafite ao mais alto patamar e, sob a batuta de Andy Warhol, Basquiat parece ter se encarregado do restante do serviço a favor do mercado internacional da arte. Hoje, San Miguel, no Chile, abriga o “Museu a céu aberto”, com incríveis murais gigantes que atraem grafiteiros e turistas do mundo inteiro. Ademais, não faltariam referências a serem enumeradas pelas diversas metrópoles contemporâneas.  


A pichação, por outro lado, provém de outra família, por assim dizer, a da literatura, e nos remete ao neolítico e aos ideogramas. Em Pompeia já havia pichações que evocavam discursos mais próximos dos que encontramos nos muros de nossas atuais metrópoles, tais como provocações eróticas, reivindicações políticas e meros desabafos dos mais prosaicos. Apollinaire, em seu Lembrança de Auteuil, nos conta sobre algumas inscrições da rua Berton, em Paris, datadas mais ou menos de 1909, onde ficamos sabendo que Lili de Auteuil ama Totor de Point du Jour; sabemos também de declarações trágicas como Maldito seja o 4 de junho de 1903 e aquele que o fezalém de nos manter informados sobre a existência de outros escritos mais “sinistros ou alegres” que seguem até uma construção antiga. Sophie Scholl, uma das fundadoras do grupo antinazista “Rosa Branca”, fez da pichação um dos principais mecanismos de resistência ao regime, até que Hitler a sentenciasse à guilhotina, em 1943. O filme estadunidense The Warriors, 1979, dirigido por Walter Hill, narra o conflito de gangues na Big Apple e mostra a proliferação do piche entre as ruas e metrôs novaiorquinos daquele período. Naturalmente, a produção deste filme está fortemente atrelada à incisiva e expressiva cena do Hip Hop entre os norte-americanos e isso pode ser facilmente verificado em toda ambientação da película. A sua recepção no Brasil tem uma influência determinante na cena underground que por aqui se amplificava, especialmente entre os punks de São Paulo, e isto pode ser conferido no documentário Botinada: A Origem do Punk no Brasil, de 2006, dirigido por Gastão Moreira. Mas é preciso salientar que mais do que o caldeirão de informações que, pouco a pouco, chegava do norte, uma engenhosidade técnica é determinante na evolução da prática da pichação tal como a concebemos hoje, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, quanto em algumas regiões do Brasil: a invenção do spray (o aerossol). A emissão atomizada da tinta, impulsionada a partir da Segunda Guerra e desenvolvida e difundida, definitivamente, na década de 70, permitiu não só mais versatilidade técnica e estética diante dos efeitos almejados, como também maior desembaraço para os pichadores diante dos aparelhos de repressão policial. O spray inseriu a pichação, de uma vez por todas, na paisagem veloz e em permanente transformação dos grandes centros urbanos. A despeito desta inserção, a pichação poderia constar, de uma maneira muito proveitosa, entre os recentes estudos dromológicos propostos por alguns intelectuais franceses.



Naturalmente, nem sempre os limiares entre uma linguagem e outra são tão nítidos assim, como nos mostram os poetas concretistas. Com o grafite e a pichação não é diferente, mas não é o caso aqui de entrar nestes meandros. Por ora, talvez seja suficiente dizer que a Lei brasileira 12. 408, de 2011, ao insistir em esquadrinhar o que seja um e outro não faz outra coisa senão adensar uma suposta rivalidade entre as duas práticas – muito embora, tal rivalidade não possa ser acomodada entre aqueles que grafitam ou picham, mas somente, em geral, entre os leigos no tema, ou seja, o grande público. A pichação ocorre como um tipo de literatura e esta, como tal, em seu estágio primitivo, manifesta-se de pé, ereta, nas paredes das cavernas e posteriormente nos muros das cidades. Pouco a pouco, a civilização deitou a literatura nos papiros e livros e, ao mesmo tempo, produziu, no decorrer dos tempos, um sistema periférico que, tomado de irrestrito estado de excitação, reergueu-a. Outdoors, letreiros, placas de neon e vitrines foram alguns dos estímulos nervosos que colocaram o escritor dos muros das grandes cidades lado a lado dos seus ancestrais literatos. Neste sentido, o pichador é uma espécie de insurgente da literatura “mais originária” e, paradoxalmente, o literato menos desejado entre nós. A pichação é uma expressão literária que só tem sentido sobre um fundo específico, do mesmo modo que para o pintor ou qualquer artista gráfico o fundo co-determina o destino da aparição visual. Há ainda o fato das ruas acomodarem o campo de recepção estética típico dos citadinos dos grandes centros urbanos, que é onde ocorre a maximização do tempo de exposição do que quer que seja, ainda que, paradoxalmente, num tempo extremamente veloz, já que a rua é o lugar de passagem por excelência, como nos ensina o ensaísta Walter Benjamin (muito embora já se possa argumentar contra a predominância das ruas em favor dos ciberespaços). Daí o sentido dos muros, monumentos ou das placas metálicas para o pichador, pois eles conferem sentido específico àquela expressão. Esperar que um pichador abandone a sua prática e passe a grafitar porque aí encontra respaldo social, é um desatino tão grande quanto esperar que um músico deixe de musicar para pintar quadros pela simples razão de ter descoberto que a música não é uma atividade lucrativa. Um pensamento simplório como este parece nunca ter sobrevoado as cabeças dos “oficineiros” paulistanos dos anos oitenta, tão cheios de boa índole.


Não há no gesto do pichador um claro propósito de se cometer o vandalismo, ao menos não no sentido corrente, como algo absolutamente irracional e desinteressado. Talvez ocorra, isto sim, certo vandalismo no sentido estrito do termo, daquele empregado para o medievo como revide épico ao patrimonialismo perpetrado por uma determinada organização política e social consolidada, como foi o caso dos povos Vândalos diante dos romanos e como é o caso da tensa construção histórica entre os grupos sociais no Brasil. A pichação é um contradiscurso, não porque se supõe que está fora das esferas de poder, não porque não é institucionalizada, não porque se pensa excluída do quase predominante regime discursivo, mas porque habita os limiares, porque se insurge estritamente por meio discursivo como que de assalto e se impõe para além e aquém dos pretensos conchavos consensuais. Os binômios clássicos que fazem rivalizar poder e violência, bem como cultura e barbárie lhes são inteiramente estranhos, assim como são estranhos a toda forma de refugo. De algum modo, o pichador intui a máxima benjaminiana de que “nunca há um documento que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”. Entre os documentos, o pichador privilegia os muros e monumentos, seus alvos prediletos. A pichação é um libelo anticolonial no mesmo sentido em que ela mesma é um libelo patrimonialista no Brasil. Se há, entre nós, uma crença enraizada de que o estado é uma “ampliação do círculo familiar”, uma confusão e mesmo uma zona de indiferença entre o público e o privado, como nos descreve Sérgio Buarque de Holanda, vale notar que esta crença não se espraia e mesmo se manifesta inteiramente entre todos nós, ou ao menos devemos admitir que haja alguma idiossincrasia na sua recepção. A reação ao patrimônio público, expressa, por exemplo, nas Jornadas de Junho de 2013, deixa muito clara a maneira com que muitos de nós ainda lidamos com ele no país. Há aí um sentimento de não pertencimento, um sentimento de que o que é público não é meu, que é sempre do outro, do outro que me determina, que me controla, que se exerce sobre mim nas mais variadas instâncias. Não foram apenas bancos privados que entraram na mira dos manifestantes mais radicais, daqueles que foram, fisicamente, na raiz dos problemas sociais postos a olho nu, mas também edifícios pertencentes ao EstadoSe, por um lado, abundaram pichações que postulavam “Fifa, go home”, por outro, sobraram reações que nos faziam crer que esta casa de cá também não nos pertencia de todo, ao menos não a todos. O que vimos foi uma espécie de desvario, até então latente, expresso quase em conformidade com as práticas de exorcismo descritas por Frantz Fanon. São estes limiares que devem auxiliar na compreensão da pichação como uma figura do refugo.

O vandalismo surge como desvio, por assim dizer, de uma ação que visa qualquer outro fim. Os fins podem ser dos mais variados e provavelmente a psicologia social ou a sociologia da arte poderiam favorecer na elucidação destes fins. Ou talvez fosse o caso de se elaborar uma espécie de sociologia da pichação no interior da sociologia da arte, incluindo aí toda a diversidade desta expressão, seja política (na esteira de Pompeia a maio de 68); romântica (a exemplo dos citadinos franceses oitocentistas com seus corações dilacerados); do tipo de autoajuda (tendo na figura de Gentileza o maior fenômeno recente, na cidade do Rio de Janeiro); de viés religioso (como os tradicionais ditos de que “Jesus vai voltar”), poético-filosóficas (como as do refinado Faustino, de Miguel Cordeiro da Salvador “oitentista”); ou mesmo formalista (encontrada principalmente nos pichadores pertencentes às gangues urbanas, os mais populares no Brasil, de cunho quase inelegível a um não pichador e com predominância mundial na cidade de São Paulo). Em alguns casos, como entre os citados acima, pode-se haver uma recepção mais branda ou mesmo positiva ante a pichação. A pichação engajada, por exemplo, ganhou fôlego durante as manifestações de maio 68 e se fixou no imaginário rebelde daquela juventude. Muitas daquelas frases ainda ecoam nas gerações que se seguiu, muito embora se possa dizer que a rebeldia ali contida só mui raramente dure muito além do tempo de uma passeata. Já a autoajuda suplicante de Gentileza, na cidade do Rio de Janeiro, teve boa acolhida em grifes da moda, ao mesmo tempo em que contribuiu para consolidar articuladas campanhas às minorias sociais.


A arte plástica que hoje se expressa nas ruas das grandes cidades padece de um deteriorado senso moralizante e dificilmente pode existir desprovida de uma aprovação pública. O grafite de hoje está nas galerias, é estimulado pelos editais de cultura financiados pelo estado e Banksy parece ser a amálgama simbólica desta proeza. Já a pichação margeia os redutos, provisoriamente livre de quase toda forma de convenção moralizante, em sua maioria, redutora, mas isto a um custo de manter-se permanentemente sob a mira de algumas pistolas, mantém-se como refugo. Como não há nenhuma forma de enquadramento, vem o embaraço, a dificuldade em nomear o gesto da pichação, gerando um imenso desconforto e uma pronta reação em classificá-la como “anormal”, para lembrarmos aqui a terminologia utilizada pelo filósofo francês Michel Foucault ao se referir àquilo que está ausente das estruturas normativas da cultura. Institucionalizada em parte alguma, inominável por excelência, resta o reduto daquilo que não se consegue dizer, que é a nomeação do vandalismo em forma de um barbarismo linguístico. Na falta do como nomear, recorre-se arbitrariamente a uma palavra como tentativa de abolição do ato. Nota-se então que há um fortíssimo discurso pretensamente verdadeiro sobre a pichação, naturalmente negativo. A questão é que a verdade tem mesmo pouca relação com os fatos, ela é sempre produzida em conformidade com algum interesse que está em jogo, e quase sempre há mais de um interesse em jogo. Em geral, é necessário que uma determinada parte entre as interessadas seja revestida de uma trama de triunfos ao seu favor, e esta quase sempre surge vestida sob o manto institucional, ou de uma maioria constituída sobre uma minoria abafada. Neste sentido, talvez nos seja muito útil pensar qual ou quais os tipos de interesses que norteiam a reflexão e os discursos sobre a pichação.

Na atual sociedade em que vivemos, a nossa lógica da aceitação é lastreada pela lógica do consumo e, portanto, algumas formas de expressão são de difícil assimilação de mercado, onde a poesia pode ser tomada como um excelente exemplo. Muito embora de uma maneira quase mendicante, o mercado editorial encontrou formas de lucrar com a poesia, ainda que muitíssimo raramente o poeta possa viver do seu poetar pura e simplesmente, o que, muitas vezes, o arrasta à atividade da tradução, revisão, edição, ensaísmo e afins – a apoteótica e recente avalanche de vendas das obras completas de Paulo Leminski serve apenas para provar que a exceção confirma a regra, sobretudo após o seu (inexplicável?!) êxito nas redes sociais. Por outro lado, a conversão da pichação em mercadoria parece ser um desafio em aberto, de difícil contorno, e o fato é que ainda não se entendeu como cooptá-la. Tudo indica que enquanto não se entender como domesticar esta escrita, ela continuará à margem, pelos muros e monumentos das cidades como uma rota de fuga inapreensível pelas leis de mercado que, não episodicamente, determinam as leis morais e jurídicas, o que causa grande desconforto no seu trato. Sem dúvida, é neste aspecto, por assim dizer, indomável que reside o potencial das inscrições urbanas que, de alguma maneira, não se deixam encaixar naquela natureza mercantil descrita pelos economistas do século XIX. Em outras palavras, a pichação recusa-se a se configurar como ornamento da cultura, embora o seja na estrutura de seu desacordo.


Haverá sempre a perniciosa pergunta sobre o fato da pichação ser ou não ser arte. A esta, proponho que se pense na subversão de Duchamp e se opere um deslocamento retórico em busca de uma avaliação sobre o que a pichação exerce sobre o citadino. O filósofo baiano Haroldo Cajazeiras propõe uma forma bastante singular para se elaborar esta pergunta sobre os objetos ditos artísticos: eles instigam, mobilizam minha percepção/concepção da realidade? Se a resposta for positiva, temos aí uma área de interesse e isto nos basta, independente do assentimento institucional desta ou daquela casa de arte. Há tempos que, em diversas linguagens, se desafia a estipulação estatutária do que seja ou não arte a partir de moldes formais institucionalmente constituídos. O que se pensar, por exemplo, de 4’33”de John Cage, ou do já lendário Metal Machine Music, de Lou Reed, se tais obras não pertencessem a John Cage e a Lou Reed, respectivamente, e estivessem circunscritas no derradeiro panorama da Pop Art?    

As políticas voltadas para a produção, circulação e consumo de arte contemporânea no Brasil se esbarram nos arranjos institucionais que elas mesmas recolhem e retroalimentam. Ao determinar, por meio dos editais de cultura, a necessidade de leitura, decodificação de planilhas e predisposição divinatória diante do aspecto humoral dos avaliadores das bancas que selecionam o que deve e o que não deve ser financiado com as verbas voltadas para a produção de arte, as expressões contemporâneas deslizam no perigo de recalcar aquilo que poderiam trazer como anseio do seu próprio tempo. E é esta a razão que grande parte delas se mostra insignificante não somente para se pensar o presente, mas, sobretudo, para viabilizar algum gesto de ação sobre ele (e embora isto ocorra com enorme frequência, não podemos cair na enorme e traiçoeira tentação de acreditar que já houve melhores formas de lidar com tal questão). A ideia de uma sociedade de controle, proposta por W. Burroughs como uma noção adequada para ler a nossa própria sociedade, parece fazer jus a uma parcela significativa do que temos da criação atual. A maneira como a produção circula se encontra amplamente controlada. O fato de haver metrô em minha cidade, por exemplo, e mesmo maior número de linhas de metrô no decorrer dos anos futuros, não pode me fazer acreditar que um artesão possa fazer sua mercadoria circular por qualquer região da cidade com a frequência que ele deseje. As rotas industriais e comerciais sempre determinaram e determinam não somente quais as linhas de escoamento, mas também quais os bens que devem escoar. A liberdade para produzir o que quer que seja está dada de antemão e a tecnologia emergente inibe qualquer palavra que contrarie a esta lógica, no entanto, o grau de circulação, visibilidade e, sobretudo, impacto, permanece sob controle, tal como preconizou Burroughs.


Enquanto refugo, a pichação compõe um campo de forças que se encarrega de frustrar a expectativa de se estar em um mundo que, em vias de desertificação mercantil, seja capaz de ser reduzido ao absoluto controle, em plena segurança. Coloca-se como resistência e, em termos estéticos, isto não significa, no entanto, que toda pichação instigue nem tampouco mobilize minha percepção e concepção da realidade. Existe pichação boa e pichação ruim, a que mobiliza e aquela que não mobiliza e, provavelmente, isto seja tudo que seja possível ser dito axiologicamente sobre a pichação. Como qualquer refugo, a pichação expressa uma urgência, comum a todos nós, e, como tal, nos convida a tomar posições.

[imagens: Leidiane Coimbra]


AUTOR 
* Professor de filosofia do IFBA e doutorando em filosofia pela UFBA. E-mail: roaraujo7@gmail.com

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 1 | Ano 2015

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