O presente artigo tem como finalidade a descrição dos aspectos mais relevantes da estrutura da língua do povo Dròisem. Através da descrição linguística e entendendo um pouco da sua cultura é possível demonstrar o quanto o “Espírito” desse povo tem muito a contribuir à cultura descartável dos nossos tempos. A razão do título ficará clara após a leitura do artigo na íntegra.
Depois de alguns meses de convivência com os Dròisems na tentativa de entender o falante real de uma língua através da imersão – dever de todo linguista que se preza – devo confessar que há nas entrelinhas do texto muito do Espírito Dròisem. Até hoje, mesmo não tendo mais contato direto com esse povo, me pego muitas vezes recordando pequenos aforismos que aprendi nessa língua ao me deparar com algumas situações da minha vida ordinária na sociedade ocidental judaico-cristã. É como se, mesmo tendo voltado à minha rotina, ainda sinto estar-com (ere-ko) o que pude viver naqueles meses que se dilataram em anos de experiência como linguista e ser humano.
Boa
parte do que está descrito aqui só foi possível através da ajuda que tive do
jovem C.F., 26 anos, um conhecedor profundo da cultura do seu povo e também da
língua portuguesa, o que me ajudou bastante em vários momentos em que precisei
de tradução durante meu período de imersão. Esse jovem, com uma vivacidade
sempre contagiante mas que nunca debanda para a leviandade, é um excelente
exemplo do que os próprios habitantes chamam de “Espírito Dròisem”.
O ESPÍRITO DRÒISEM
Devo
explicar a razão da letra maiúscula em Espírito Dròisem. É mais que necessário
o uso a fim de diferenciar o espírito desse povo dos demais espíritos tortos
que ora vivem nas sombras, ora vivem sob os holofotes: o Espírito Dròisem vive
nas entrelinhas. Ser Dròisem é ser sempre igual e sempre diferente; é uma
superação do próprio espírito, ainda que esse Espírito já seja superior o
suficiente e não possa ser superado. O Espírito Dròisem sabe da nobreza de sua
estirpe e das suas raízes Pyrim. O Dròisem
afirma que a sua existência em meio à aridez das sociedades líquidas é motivo
de contradição pois pode acabar por formar uma inteira casta composta de
espíritos que oscilam como um pêndulo entre a inferioridade de não ser um Dròisem
e a vaidade de mesmo não o sendo, conseguir entendê-lo perfeitamente. Ainda assim, o Espírito Dròisem afirma não
querer limitar a sabedoria dos outros espíritos. No entanto esse discurso corrobora
o que foi afirmado há poucos instantes: a sua existência é um sinal de
contradição.
Sabe-se
que em tempos bastante remotos, há quase um milênio, a terra teve o privilégio
de assistir à glória do povo Pyrim. Com sua tecnologia avançada e cultura
letrada bastante difundida dentro da sua sociedade, esse povo possuía relações
sociais bastante complexas e uma língua também bastante complexa. Pouco se sabe
da razão do esfacelamento daquela sociedade tão próspera, mas seu legado pôde
ser transmitido ao povo Dròisem que ainda nos dias atuais fala uma língua que
se assemelha à antiga língua dos Pyrim e guarda grande semelhança estrutural
com a língua-mãe. Nas linhas que seguem, serão brevemente descritas as principais
características que fazem da língua Dròisem o que há de mais próximo dos áureos
tempos do povo Pyrim.
CLASSES DE PALAVRAS
A
língua Dròisem compreende palavras que podem ser divididas nos grandes grupos:
verbos, nomes, pronomes, qualificadores, partículas, preposições e posposições.
Há uma grande variedade de partículas
que podem ser afixadas aos verbos, lhes conferindo noções de tempo, modo, aspecto,
etc. No entanto, com o criativo Espírito Dròisem, essas mesmas partículas, em
textos variados, podem ser aglutinadas em nomes e criar neologismos bastante
interessantes. Mais do que qualquer outra língua existente no mundo atual, o Dròisem
tem essa importante propriedade que pode ser relacionada à cultura do antigo
povo Pyrim. Uma propriedade que o Espírito Dròisem faz questão de atribuir
somente para si.
A EXPRESSÃO DE POSSE
Nas línguas naturais há várias
formas de se indicar posse. Seja através de preposições ou pronomes (como é o
caso das línguas românicas) ou através de morfemas que indicam o genitivo (como
no inglês ou alemão). Na língua Dròisem existe uma diferenciação entre posse
“alienável” e “não-alienável”, ou seja, há sufixos que são inseridos após as
palavras e que fazem a distinção se a relação possuidor/possuído é permanente
ou transitória. Vejamos a seguir:
Ywyrapo-er “arma minha” = minha arma (relação
transitória)
Piire-et “pele minha”= minha
pele (relação permanente)
Dentro do folclore Dròisem há
diversas cantigas tradicionais que fazem aglutinações com substantivos que não
são comumente utilizados como “objetos” possuíveis:
Uhpia-er
min praeis wāt ok-herged in piire duloin-et
“A
minha verdade que habita o coração reina na pele dos tolos”
Temos
acima um trecho de complexa tradução, visto que o substantivo uhpia pode ser traduzido por “verdade”
ou “essência” de algo, mas ao receber o sufixo –er que se refere às relações de
posse transitórias, acaba por gerar propositadamente um certo paradoxo. Isso
fica mais evidente no contraponto ao sufixo de posse transitória –et que foi fixado à palavra duloin para evidenciar que essa mesma “verdade”
(correferida pelo sufixo ok-) reina na pele dos tolos, mas de forma permanente.
DECLINAÇÕES: MORFEMAS DE CASOS
Pode-se classificar a língua Dròisem
como uma língua “de caso”, ou seja, há flexões específicas que os substantivos
podem sofrer para indicar um papel sintático-semântico que esse termo
desempenha em uma sentença. Os três principais tipos de casos em Dròisem e seus
respectivos sufixos são:
-
Caso atributivo = -ham
-
Caso locativo = -ĕ (1)
-
Caso nucleativo = -it
-
O caso atributivo não possui paralelo com nenhum outro caso gramatical
existente nas línguas indo-européias. É uma marcação usada para indicar no
substantivo uma mudança de estado vista como contingente, não temporária ou
ainda para indicar a matéria da qual algo é feito. Vejamos exemplos a seguir:
Gate-ni
ranemore larawa-ham
“O
ovo se transformará em galinha”
Miter
coder agydekeis gire-ham
“Esta
faca é feita de pedra”
Wok
erel ajur-ham imawe
“Ele
está doente há muito tempo”
Wol
eremo potat-ham ida
“Ele
será um herói um dia”
(1) Usamos aqui o sinal
diacrítico da bráquia para indicar que a vogal (ĕ) deve ser realizada com
uma pequena elevação do seu tom. A língua Dròisem, por ser uma língua
tonal, utiliza desse recurso fonético como traço distintivo.
|
-
O caso locativo diz respeito não só à localização espacial, mas também de forma
mais abstrata, a uma localização no tempo e também uma direção.
João
ereleis kunu-ĕ
“João
está nas montanhas”
Wel
steir Machamba-ĕ
“Ela
foi ao Machamba”
Orel
retam kaĩrti-ĕ
“Há
sentido nessas suas palavras”
-
O caso nucleativo tem a função de marcar um nome que esteja comandando um
acontecimento, ou um nome que esteja sendo o alvo do mesmo.
Wok
tsarun mano-it
“Ele
caçou o elefante”
Goorin
mokued fihik-it
“O
rapaz lê um livro”
INCORPORAÇÕES NOMINAIS
Assim como a língua Pyrim, a língua
Dròisem possui a propriedade de incorporação nominal. Esse é um fenômeno no
qual nomes (substantivos) podem ser incorporados a verbos, abrindo
possibilidades semânticas bastante ricas. Contrariando também um princípio que a
tradição lingüística indo-européia julgava universal, o novo verbo resultante
da incorporação nominal consegue manter sua valência original, em outras
palavras, se o verbo original pede um complemento, o verbo originado da
incorporação nominal também não perde essa característica. Nas outras línguas
em que isso ocorre, o novo verbo perde essa propriedade após a incorporação.
Vejamos exemplos:
Wok vossun specte ap paku mohute-ham
“Ele
matou a esperança com as linhas de um poema”
Wok vossunspecte paku mohute-ham
“Ele
esperança-matou às linhas de um poema”
Houve
a criação de um novo verbo “esperança-matar” (vossunspecter) que, como visto, será flexionado como o verbo
original “matar” e mantém sua valência mantida, sendo que “linhas de um poema”
que antes era uma espécie de elemento circunstancial adjungido ao verbo, agora
se tornou o próprio objeto do neoverbo “esperança-matar”. O mesmo pode acontecer com verbos que oscilam
entre a transitividade e a intransitividade.
Uco ekuata porahe ni duut nigur-ĕ
“Eu
vivo a tristeza em cada amanhecer”
Uco
ekuataporahe duut nigur-ĕ
“Eu
tristeza-vivo cada amanhecer”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de finalizar não posso deixar de comentar a respeito de um fato que me ocorreu durante o tempo de imersão. Em uma das noites em que C.F. se comprometeu a me contar mais uma das várias histórias tradicionais para que eu a registrasse com o gravador, suas falas acabavam por diversas vezes por migrar para assuntos que variavam entre reflexões que tendiam aos devaneios e afirmações um tanto pesadas que deixariam um não Dròisem desconsertado, da forma como me senti por diversas vezes durante a imersão.
C.F. me contava a respeito da suposta origem de algumas canções folclóricas e seu discurso se deixou levar por algumas elucubrações a respeito do “Espírito”. Segundo o jovem Dròisem o “Espírito” já tendo visto a solidez se desmanchando no ar e a volatilização das relações líquidas, já sublimou a si mesmo: tudo para eles era feito de um quarto estado da matéria. “Você se lembra da terceira margem do rio? É exatamente isso do que nosso espírito é feito. Conhece?” perguntou o jovem. Ao ouvir, afirmei com bastante segurança ainda que estivesse envergonhado de já ter orgulhosamente transcrito vários aforismos dos Dròisems na língua original e nunca ter lido esse conto escrito por um brasileiro.
Já com os olhos notadamente cheios de cansaço e bocejando a cada dois minutos, C.F. me pediu que parasse aquela sessão naquele instante e, antes de me cumprimentar com um beijo no rosto (como é comum entre os Dròisems), o jovem me disse que eu poderia permanecer “o tempo que quiser na nossa comunidade, pois é um prazer conversar contigo em Dròisem! É a melhor língua para se fazer devaneios.” Ao ouvir isso, confirmei com a cabeça, mas por dentro me diverti com a ironia causada pelo fato dele ter usado há poucos instantes como exemplo (e falando em Dròisem) um texto escrito por um autor brasileiro. Mas, poderia eu culpá-lo? Devaneio é simplesmente devanear, e nada além disso. De todas as certezas que tive naquele dia de imersão a mais certa é que, de fato, a existência desse “Espírito” era um sinal de contradição. Uma característica não de espíritos elevados, mas humana, ironicamente humana.
Estas foram algumas características
que fazem com que a língua Dròisem seja, a partir de agora, uma das línguas
mais complexas e desafiadoras para muitas teorias lingüísticas, visto que
alguns postulados aceitos como universais lingüísticos são contrariados pela
estrutura dessa língua. Estudos mais aprofundados a serem realizados a posteriori poderão comprovar inclusive
que algumas sentenças com certos verbos monoargumentais da língua Dròisem
parecem contrariar também a generalização de Burzio.
Antes de finalizar não posso deixar de comentar a respeito de um fato que me ocorreu durante o tempo de imersão. Em uma das noites em que C.F. se comprometeu a me contar mais uma das várias histórias tradicionais para que eu a registrasse com o gravador, suas falas acabavam por diversas vezes por migrar para assuntos que variavam entre reflexões que tendiam aos devaneios e afirmações um tanto pesadas que deixariam um não Dròisem desconsertado, da forma como me senti por diversas vezes durante a imersão.
C.F. me contava a respeito da suposta origem de algumas canções folclóricas e seu discurso se deixou levar por algumas elucubrações a respeito do “Espírito”. Segundo o jovem Dròisem o “Espírito” já tendo visto a solidez se desmanchando no ar e a volatilização das relações líquidas, já sublimou a si mesmo: tudo para eles era feito de um quarto estado da matéria. “Você se lembra da terceira margem do rio? É exatamente isso do que nosso espírito é feito. Conhece?” perguntou o jovem. Ao ouvir, afirmei com bastante segurança ainda que estivesse envergonhado de já ter orgulhosamente transcrito vários aforismos dos Dròisems na língua original e nunca ter lido esse conto escrito por um brasileiro.
Já com os olhos notadamente cheios de cansaço e bocejando a cada dois minutos, C.F. me pediu que parasse aquela sessão naquele instante e, antes de me cumprimentar com um beijo no rosto (como é comum entre os Dròisems), o jovem me disse que eu poderia permanecer “o tempo que quiser na nossa comunidade, pois é um prazer conversar contigo em Dròisem! É a melhor língua para se fazer devaneios.” Ao ouvir isso, confirmei com a cabeça, mas por dentro me diverti com a ironia causada pelo fato dele ter usado há poucos instantes como exemplo (e falando em Dròisem) um texto escrito por um autor brasileiro. Mas, poderia eu culpá-lo? Devaneio é simplesmente devanear, e nada além disso. De todas as certezas que tive naquele dia de imersão a mais certa é que, de fato, a existência desse “Espírito” era um sinal de contradição. Uma característica não de espíritos elevados, mas humana, ironicamente humana.
AUTOR
* Mestrando em Linguística na Unicamp na área de Sintaxe Gerativa. Graduado em Farmácia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2009). Músico de formação erudita pelo Centro Universitário de Cultura e Arte (CUCA - UEFS), é um dos idealizadores do grupo "Melancolia: piano e poesia" no qual atua como pianista, dedicando-se ao estudo e à interpretação de obras dos séculos XIX e XX.
NOTA:
a língua Dròisem foi criada a partir da estrutura de línguas indígenas
brasileiras faladas por grupos que habitam a região do alto Xingu, no norte do
país. Essas línguas pertencentes ao numeroso tronco Tupi-Guarani compartilham
dessas características citadas com muitas outras línguas ameríndias faladas em
terras da América meridional. Por motivos mais que óbvios – ou talvez não tão
óbvios – os nomes dessas línguas serão mantidos no anonimato para que os
“golpes de tacape” não atinjam um alvo distinto do que esse artigo-conto se
propôs. Talvez o alvo não se deixe revelar em uma primeira leitura, mas de
forma alguma é um alvo arbitrário, ainda que possa parecer bastante amplo.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 1 | Ano 2015
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