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Identidade dos sujeitos: linguagem, constituição de sentido e valor

Laurenio Sombra*

“I’ve had enough, I’m sick of seeing and touching both side of things, sick of being the damn bridge for everybody” – Donna Kate Ruskin – the bridge poem.

Obra "Operários", da artista plástica Tarsila do Amaral

A questão da identidade ganhou importância redobrada nas últimas décadas. Nos anos 60, testemunhamos lutas identitárias cada vez mais prementes – lutas pelos direitos civis dos negros e ascensão, de um modo geral, do movimento negro, uma “nova onda” de movimentos feministas, lutas anticolonialistas, movimento gay, questões multiculturais[1]. Essas discussões não cessaram de se renovar nas décadas posteriores. Em todos os casos citados, falamos de questões muito concretas que ensejaram lutas políticas, eventualmente embasaram discussões em torno de políticas públicas e, ao mesmo tempo, promoveram reações contrárias que buscavam desqualificar os movimentos. Para estas últimas, com diversos argumentos e intenções. Acompanhamos, por exemplo, reações racistas, sexistas e homofóbicas. Acompanhamos, também, reações anti-imigração, eventualmente em nome de uma “identidade nacional”, o recrudescimento de movimentos religiosos e/ou nacionalistas e certa reação “ocidental” a esses movimentos.

Se no âmbito da prática política, as questões se multiplicaram, elas exigiram diversas abordagens teóricas, com múltiplas diferenciações e intersecções em torno de identidades coletivas. Discussões em torno de gênero, “raça”, cultura, etnia, sexualidade, religiosidade, classe social, entre outras, ganharam diversas abordagens no âmbito da sociologia, da antropologia, dos estudos culturais e da filosofia. Autores abordaram, também, a correlação de alguns desses aspectos, visto que, naturalmente, abrigamos diversas identidades coletivas – eu posso ser, digamos, homem, branco, nordestino, heterossexual, católico e de classe média – numa composição que reivindica uma complexidade cada vez maior à compreensão de grupos sociais[2]. Ainda no âmbito teórico, há, também, uma trajetória de reflexão em torno da identidade pessoal, com ênfase à identidade individual[3].

Este artigo visa discutir, filosoficamente, a questão da identidade dos sujeitos[4]. Ele terá, necessariamente, uma perspectiva incompleta, porque está inserido no início de um processo de pesquisa mais amplo, em torno da constituição dos sujeitos e dos sentidos. No âmbito do artigo, o problema colocado é: o que unifica as diversas formulações em torno da identidade? Que aspectos conceituais podem iluminar essa discussão que perpassa tantas categorias, há “algo” que permita enxergá-las em um mesmo horizonte, mesmo ressalvadas as óbvias diferenciações? Por fim, que implicações, especialmente no âmbito político, podemos reivindicar a partir dessas formulações? Todas as questões, ainda mais a última, terão respostas ainda excessivamente breves, que deverão ser mais bem desenvolvidas em outra oportunidade.

Esse questionamento, antes de tudo, precisa lidar com duas possibilidades extremas. Parafraseando a famosa querela medieval em torno dos universais, poderíamos esperar duas atitudes opostas. Os “realistas” aceitariam a efetividade das identidades, ou pelo menos de algumas delas. Nesse sentido, poderiam dizer que, sim, negros e brancos, brasileiros e estrangeiros, homens e mulheres. Os “nominalistas” tenderiam a colocar estas afirmações sob suspeita. Por mais que admitam a efetivação prática dessas nomeações na vida social e política, pensam a identidade como processos de constituição, talvez impulsionados por relações de poder, que devem, frequentemente, colocar entre aspas a “substância” dessas nomeações.[5]

Da nossa parte, antecipo, tentaremos certo “caminho do meio” em relação a essas abordagens. De um lado, assumimos que os sujeitos são constituídos e são históricos, e o são a partir da nossa imbricação singular na linguagem. Nesse contexto, estão inseridos em diversas relações pragmáticas de negociação e conflito entre eles – o que os insere fortemente em relações de poder. De outro lado, esta percepção não deve obnubilar o fato de que dialogamos com uma série de condicionamentos (não determinações) básicos que herdamos: a nossa tradição cultural e intelectual, nossa herança genético-biológica, nossa relação com a natureza e, nela, com a própria corporeidade, sem falar nas injunções econômicas, que talvez representem um amálgama de vários dos aspectos anteriores. É no contexto dessa relação complexa, que pretendemos apresentar nossa proposição conceitual. Antes de entrarmos, contudo, diretamente na questão dos sujeitos, precisamos apresentar tema preparatório fundamental para nossa abordagem: como se dá a constituição de sentidos no âmbito da linguagem.

A REDE DE SENTIDOS

Somos “animais linguísticos” – se quisermos ser ainda mais precisos, somos “primatas linguísticos”. Frequentemente, a filosofia e as ciências humanas atenuam este fato, apesar do zoon politikon de Aristóteles. A nossa condição animal nos deixa, antes de tudo, envoltos num mundo “natural” e, como tal, afetados física e biologicamente por esse mundo. Nesse contexto, somos dotados de certa protointencionalidade[6], de um conjunto de emoções primárias, nos estabelecemos em um habitat, sentimos dor e prazer, formamos grupos, estabelecemos relações de parceria, dominação e submissão com outros animais da nossa espécie e de fora dela etc. Temos, por fim, um corpo, e nos movemos a partir dele. Em hipótese alguma é trivial a importância da nossa condição. Se quisermos compreender, minimamente, essa importância, podemos pensar na diferença de um animal linguístico como nós de uma máquina linguística, como um computador.

Mas se somos animais, o somos de um modo especial, em função da linguagem. Não é nosso objeto de investigação discutir o quanto outros animais também são “linguísticos”. Mas esta relação humana, até prova em contrário, apresenta traços muito peculiares. Pensamos, aqui, a linguagem como um sistema articulado de signos capazes de perpetuar no tempo e multiplicar quase indefinidamente as nossas possibilidades de experiência em novos habitat que são construídos e forjados a partir dela. Os signos devem ser pensados, genericamente, como diretamente associados a significantes, “instrumentos” captáveis pela percepção, capazes de serem identificados de forma singular no decorrer do tempo e associados a determinados significados, aparentemente duradouros no tempo – muito embora, também transformáveis historicamente[7]. Nessa acepção ampla, o signo pode ser uma palavra ou um sintagma, um símbolo, uma imagem específica, uma narrativa; enfim, qualquer recurso da linguagem que pode ser identificado, abstraído e produzir uma significação. Como os signos são elaborados tendo em vista o compartilhamento entre indivíduos, eles são de natureza eminentemente social.

No casamento da protointencionalidade animal com a linguagem, formamos um processo de construção linguística que é fundamentalmente intencionado, isto é, valorado. Falar em valor ou valoração significa dizer que organizamos os signos em certa perspectiva hierárquica, valorizamos mais alguns, subordinamos outros, criamos relações de dependência entre eles. Mesmo processos gnosiológicos que permitem, por exemplo, a atribuição de noções como verdadeiro e falso são embasados em estruturas valorativas. Nesse sentido, a linguagem que forjamos é, antes de tudo, axiológica. O valor se dá numa ordem intermediária, ele é apreendido linguisticamente, mas não é completamente linguístico, já que incorpora em sua dimensão a protointencionalidade animal. A questão do valor, por sua vez, dá outro caráter de profundidade e compreensão às emoções humanas, frequentemente relevadas em parte do pensamento filosófico. Estas devem ser pensadas como apreensões “encarnadas” dos processos humanos de valoração.[8]

Outro aspecto fundamental: primariamente, os sentidos desenvolvidos têm fortíssima carga temporal, derivada, originariamente, da própria natureza do signo. A permanência do signo no tempo potencializa e amplifica a relação do animal linguístico com o futuro e o passado, já que estes podem, doravante, ser mediados pelos signos. O próprio fluxo do tempo pode ser pensado como signo, seja ao modo de uma sequência, seja como um tempo cíclico, ou em outra forma. Uma vez que os signos nos permitem lidar com o tempo, de forma muito mais ampla, e uma vez que são embebidos de valor, os sentidos são carregados de perspectiva de futuro em curto, médio e longo prazo; são, por sua vez, carregados de memórias significativas do passado, que atualizam as possibilidades futuras. É só por isso que podemos falar tão fortemente de memória e de promessa, só por isso que podemos dar a diversos signos a aparente impressão de permanência no tempo, dar-lhe certo ar de eternidade. É pelo tempo que as expressões do animal linguístico podem ter mais amplitude. Ele pode falar em planejamento, pode dar significação ao seu passado, pode sentir culpa, pode imputar erros ao outro... é fundamental, aqui, se compreender que toda essa relação com o tempo nunca é neutra, sempre é valorada. As expectativas futuras são expectativas acerca de possibilidades desejadas ou temidas. O passado também é resgatado de acordo com seu grau de importância na vida presente.[9]

Os signos não se desenvolvem isoladamente, mas são criados, aplicados e desenvolvidos numa rede de intencionalidades e valorações que lhes são pertinentes. Chamemos essa rede de rede de sentidos. Usamos o termo sentido, aqui, para abordar certa compreensão abrangente, não totalmente explicitável e com algum grau de coerência, basilar para uma série de operações parciais, como a ação dos sujeitos, mas também a significação de uma palavra ou de um enunciado. O grau mínimo de coerência necessário para a articulação de uma rede de sentidos lhe traz certo caráter de normatividade, alimentada pela própria estrutura valorativa que possibilita a rede, e condição de possibilidade para esquemas complexos como relações de moralidade ou mesmo avaliações estéticas.

O termo rede é utilizado para denotar a complexidade da produção de sentido: ela é articulada a partir de diversos elementos conjugados e encarnados na relação complexa do animal linguístico com os signos. Esta articulação, previamente, não pode ser sequer considerada totalmente coerente, podendo caber nela diversas relações equívocas sob o ponto de vista da linguagem. Mas é fundamental a ela certa direcionalidade que orienta a ação e a significação, direcionalidade que deve exigir, minimamente, algum grau, embora imperfeito, de coerência na rede que se forma. Uma rede de sentidos, para ser constituída como tal, deve ter natureza intersubjetiva e social, mas deve, necessariamente, ser absorvida subjetivamente por cada indivíduo.  Numa comunidade que compartilha a mesma rede de sentidos, este, provavelmente, ganhará certo caráter de evidência, que o torna praticamente transparente para os sujeitos que o compartilham.[10]

Dada a noção aqui apresentada, reservamos o termo significado, apesar da equivocidade, para compreensões pontuais (uma palavra, um enunciado, um verso), em contraponto à noção mais abrangente de sentido. A ideia de rede de sentidos é constituída e complexificada numa transformação da ambiência “compreendida” pelo animal linguístico, mas potencializada pelo contato com os signos. Há uma relação de mútua pertinência: de um lado, a rede de sentidos precisa dos signos para se potencializar. É só em função dos signos que ela pode ter seu grau de amplitude, sua temporalidade amplificada. De outro, o próprio significado de cada um dos signos só pode ser compreendido no contexto dessa rede. É só em função da ambiência de uma rede de sentidos que o signo pode ser completamente valorado e, em última instância, ganhar significação prática.  Um signo não pode ser identificado meramente pela sua posição diferencial na “língua” (SAUSSURE, 2012), embora esta seja um componente importante da sua significação. Como a rede de sentidos se dá no contexto de uma temporalidade, e como as contingências práticas transformam essa temporalidade, os signos também podem ser transformados e ganham novos significados, podendo mesmo perder totalmente sua função em determinado contexto histórico.

O processo de significação e compreensão dos signos decorre de dois aspectos complementares e indissociáveis: das relações de equivalência (identidade e diferença) entre os signos na rede de sentidos e da ação prática que se utiliza desses signos. Podemos falar, aqui, em semântica e pragmática, desde que compreendamos que estes elementos frequentemente imiscuem-se. Da compreensão da rede de sentidos decorre uma consequência importante: se ela tem natureza essencialmente prática, isso nos leva a concluir que o campo de enunciados discursivos que podemos construir nunca é capaz de abarcá-la, em sua totalidade. Há sempre uma “diferença ontológica” essencial que impossibilita essa pretensão de totalidade. A própria natureza do campo prático, basilar para a rede de sentidos, é, por definição, diferente da natureza discursiva dos enunciados. O campo signico é sempre uma tentativa “imperfeita” de captar o processo de emergência de sentidos que decorre da produção de linguagem. Os enunciados, e o campo discursivo em geral (inclusive, a produção imagética e sonora, por exemplo) têm uma condição sempre limitada, eles não têm capacidade de abarcar completamente a riqueza dos sentidos, muito embora é fundamental para a constituição da linguagem humana que sempre exerçamos este diálogo.[11]

A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS
            
Para a compreensão aqui destacada, os sujeitos são, a princípio, indivíduos ou coletivos de indivíduos que podem ser identificados de modo singular e, como tal, ser capazes de receber atributos que os qualificam, que tenham associados a eles uma narrativa e um determinado grau de valoração, frequentemente em comparação com outros sujeitos. Se pensarmos esta definição no contexto da linguagem acima delineado, devemos constatar, antes de tudo, que todo sujeito se materializa como um signo. Em geral, há no campo da linguagem palavras que designam sujeitos individuais e coletivos. Cada pessoa/indivíduo ganha, desde seu nascimento, um nome. Sujeitos coletivos também são nomeados – isso pode acontecer com povos, nações, grupos étnicos, gêneros, orientações sexuais, grupos religiosos, entre outros. É possível mesmo se associar outras categorias de signos linguísticos a esses sujeitos – como uma imagem ou um som que os identifique.

Mas, se os sujeitos são signo, de algum modo, não se pode esquecer que representam, a princípio, sujeitos reais, seres humanos “de carne e osso”, sujeitos encarnados: são dotados de uma corporeidade[12], afetados física e biologicamente em sua relação com o mundo, sentem dor e prazer, sentem emoções primárias, lidam com um ambiente etc. Esta condição é fundamental para uma compreensão prática e objetiva quanto à materialidade dos sujeitos. Ela coloca limites, por outro lado, a leituras “nominalistas” da sua constituição dos sujeitos, como dito no início desse artigo.

Se os sujeitos são nomeados e qualificados como signo, o nome próprio de um sujeito representa, justamente, o significante por excelência que permite que ele seja identificado como tal[13]. A este signo que ele se torna são, progressivamente, associados diversos atributos, alguns deles com maior grau de permanência. Digamos, como exemplo: homem/mulher, negro/branco, brasileiro/estrangeiro, rico/pobre, católico/evangélico, heterossexual/homossexual. Aqui, eles foram, por um processo de simplificação, descritos aos pares, mas cada um deles pode formar, naturalmente, relações bem mais complexas. O que vale ressaltar é que esses atributos também são signos e, como tal, conformam uma rede de equivalências que ajuda a compor determinada rede de sentido. Nessa composição, vão consubstanciando determinada valoração e, nela, determinada significação enquanto signos coletivos.

Cada um desses signos coletivos (homem, negro, brasileiro, pobre etc...) só obtêm, assim, sua “identidade” a partir, a princípio, da compreensão de sua significação no contexto da rede de sentido ao qual ele pertence. Como estamos exemplificando essa discussão com relações tão diferentes como de gênero, “raça”, nacionalidade, classe social, religiosidade e sexualidade, é claro que cada uma dessas categorias terá fundamentações e exigências que as diferenciam, diferenciações que provavelmente serão mais bem estudadas no âmbito de ciências empíricas (antropologia, sociologia, psicologia...) que as abordarem. Mas o nosso desafio é, à luz do modelo aqui proposto, elencar aspectos fundamentais que devem ser considerados para a questão da identidade. Tentemos pensar alguns deles.

Em primeiro lugar, a “materialidade” citada antes, o fato de estarmos falando em sujeitos encarnados, não deve ser desconsiderada. Em detrimento das visões “nominalistas”, não podemos desprezar aspectos basilares que, de algum modo, participam da constituição de determinada identidade. Essa condição de sujeitos encarnados é materializada, embora não de modo totalmente explicitável, pelo fato de que nós, sujeitos individuais que recebemos atribuições coletivas, sabemos vivencialmente que somos “alguém”, e sabemos vivencialmente que os outros também o são. À medida em que somos inseridos em uma rede de sentidos, ela nos encarna de um modo prévio que nos permite, em alguma medida, situarmos a nós, aos outros e ao mundo de modo interdependente, condição que ainda não nos garante enunciados adequados a respeito de nós mesmos, do outro ou do mundo, e não permite que definamos quem somos, mas permite que saibamos, em alguma medida, que há “alguém” que não se dá como mera constituição nominal de sujeitos.[14]

Apesar dessa condição prévia de sujeitos encarnados, e aqui entra o segundo aspecto, a identidade é conformada no contexto de um sistema de diferenças, a partir da posição que cada signo ocupa dentro desse sistema. Esta posição, já ressaltamos, não se dá meramente pela comparação lógica do signo com os outros, mas pela relação de valor atribuída a cada signo em comparação com os outros numa determinada rede de sentido.[15] É em torno dessas relações que se conformam, também, os signos coletivos. Cada nomeação, como os exemplos citados acima, representa, conjuntamente, um determinado grau de atribuição e de valoração. Se os signos coletivos já representam atributos dos sujeitos individuais, eles mesmos são qualificados a partir de outros atributos que os designam e, assim fazendo, os valoram. São com esses atributos que vamos, progressivamente, caracterizando homens e mulheres, negros e brancos, brasileiros e estrangeiros, ricos e pobres, católicos e evangélicos, homo e heterossexuais.

Esses atributos não são isolados e independentes. Inseridos em um sistema de diferenças, eles são atributos diferenciais. Assim, os homens provavelmente receberão atribuições em contraposição às mulheres, os negros aos brancos, os brasileiros aos estrangeiros etc. E essas diferenças são diferenças valorativas, elas implicam em práticas diferenciais e, frequentemente, preferências hierárquicas que vão diferenciando os sujeitos atribuídos. E aqui já nos encaminhamos para o terceiro aspecto: as diversas atribuições dos sujeitos coletivos formam, progressivamente, um sistema de classificações que os posicionam de modo, frequentemente, hierárquico. Não fica, previamente, excluída a possibilidade de que diferentes signos coletivos em uma mesma categoria (digamos: americanos e ingleses na categoria nacionalidade) possam receber valorações semelhantes, mas o processo básico, inclusive nesses casos, enseja diferenciação e estas, frequentemente, implicam em diferenciações em campos opostos. Esse sistema de classificações pode ter resultados cada vez mais complexos se cruzamos as categorias. Se considerarmos apenas os exemplos que apresentamos, podemos imaginar a riqueza de possibilidades no cruzamento de gênero, raça, nação, classe social, religiosidade e sexualidade. Em todos eles, teremos resultados com diferentes classificações valorativas, e todas elas dependente da rede de sentidos da qual fazemos parte. [16]

Um quarto aspecto: o sistema de classificações sugerido depende, em grande intensidade, de fatores ligados à temporalidade e à historicidade. Os signos coletivos, eles mesmos, são constituídos historicamente. Os processos históricos não apenas mudam os atributos, como exigem a criação de novos signos coletivos e, até mesmo, de novas categorias. Os exemplos são muitos. Antes da chegada dos povos europeus na África e na América não fazia sentido falarmos em “negros” ou “indígenas”. Ideias como nacionalidade e religiosidade têm sentidos muito diferentes nos últimos séculos. A própria definição de uma “orientação sexual” ganha conteúdos novos de acordo com processos culturais. Por fim, até mesmo definições que pareciam incrustadas no campo biológico como sexo deixaram de ser suficientes, exigindo uma categoria como gênero, ela mesma cada vez menos dual em suas possibilidades.[17]

Para além dessa condição móvel premida pela historicidade, cada signo coletivo tem uma temporalidade que o acompanha. Ou seja, ele é constituído a partir de uma relação específica com seu passado e seu futuro. Aqui, se fala em grande parte da rede de narrativas, míticas ou históricas, que o alimentam. Os grandes heróis ou violões, Os fatos marcantes e as trajetórias contadas a respeito de cada um desses signos ajudam a forjar os atributos e mesmo os estereótipos a ele associados. Todos esses aspectos também forjam as expectativas futuras, as “promessas” que lhes são atribuídas.[18]

Um quinto aspecto: se a rede de sentidos que comporta esse sistema de classificações é, em última instância, de natureza prática, o próprio sistema também o é. Assim, o que diferencia os diversos signos coletivos não é, naturalmente, uma rede semântica estável passível de ser inscrita em algum dicionário. Eles são, cotidianamente, confirmados ou infirmados pela ação dos próprios sujeitos e/ou pelos acontecimentos a que estes são submetidos. São as descrições com pretensões científicas, os discursos políticos, as narrativas, os rituais e mesmo as práticas comezinhas que alimentam, cotidianamente, esses processos de valoração/identificação. São, por outro lado, processos como esses, mas em sentido inverso, que desativam identificações/valorações já estabelecidas e promovem outras – esses últimos, por exemplo, são os que identificam lutas feministas, de combate ao racismo, movimentos gay, lutas populares e movimentos anticoloniais. Estas inserções práticas, em última instância, constituem processos cotidianos de reconhecimento e/ou desconhecimento dos signos coletivos e seus atributos, em determinado sistema de classificações. É no bojo dessas relações mútuas, intersubjetivas, que os diversos sujeitos podem ser afirmados ou negados em sua constituição identitária.[19]

Para além dos pontos acima ressaltados, temos que destacar um sexto aspecto que torna ainda mais complexas as relações descritas. Até aqui, pensamos em sujeitos coletivos com diferentes classificações inseridos numa mesma rede de sentidos, isto é, numa mesma estrutura abrangente de valor, ainda que cada sujeito ocupe posições diferentes nessa estrutura. No entanto, as sociedades complexas têm, cada vez mais, posto em contato sujeitos que não compartilham a mesma rede de sentidos, seja porque foram formados em culturas diferentes, seja porque não assimilaram determinadas transformações na própria sociedade, seja porque disputam, politicamente, valorações diferentes no mesmo espaço público. Nestas sociedades, os sujeitos ocupam posições antagônicas, uma vez que, ao não conjugarem a mesma rede de sentidos, disputam valorações e posições hierárquicas não totalmente aceitas pelos outros sujeitos.[20]

Tentemos dar um exemplo: podemos imaginar que uma comunidade tradicional tenha consolidado uma rede de sentidos que atribua valor diferenciado a homens e mulheres. Nesta comunidade, a própria atribuição de homem e de mulher é interdependente, e cada um dos gêneros ocupa uma determinada posição no sistema de classificações, posição, como já dito, confirmada e exercida cotidianamente por diversas narrativas, rituais e modos de reconhecimento. Poderíamos pensar, num sentido semelhante, que a mesma sociedade também estabelecesse diferenciações fundamentais entre sujeitos de distintos estamentos: os nobres e os plebeus, digamos, que também seriam posições que se alimentam de modo interdependente. Em ambos os casos, o compartilhamento da rede de sentidos faz com que haja certa aceitação dos sujeitos em relação à sua condição.

No entanto, essa situação pode ser modificada.  Transformações sociais ou o afluxo de sujeitos de outras comunidades podem afetar a estabilidade dessas classificações, e os sujeitos, ou parte deles, não aceitarem mais sua condição. No primeiro exemplo, as mulheres, ou parte delas, podem não aceitar mais a classificação que outrora lhes era atribuída. No segundo exemplo, a própria classificação entre nobres e plebeus pode ser posta em cheque, exigindo outro sistema de classificações. Em ambos os casos, a inflexão provavelmente suscitará reações conservadoras e lutas pela manutenção da velha ordem. Esse é o quadro das relações antagônicas. No âmbito dessas relações, intensificam-se cada vez mais diversos modos de negociação ou enfrentamentos de sentido, ou seja, os sujeitos precisam encontrar modos diversos de conformação de uma prática de acordo com as redes de sentido em disputa. Não será incomum imaginar, inclusive, um indivíduo tendo que fazer “negociações internas” com redes de sentidos antagônicas que o assediam – tentemos imaginar, por exemplo, um pesquisador numa comunidade de pesquisa tipicamente agnóstica, que faz parte, simultaneamente, de uma comunidade profundamente religiosa; ou uma militante feminista que convive com realidades familiares tipicamente machistas. Em todos os casos, falamos de complexas relações de poder, sejam elas prioritariamente entre sujeitos, sejam elas introjetadas em um indivíduo específico, certamente como resultante dessas relações.

Estes diversos modos de relação transformam a própria linguagem e a instabilidade dos sistemas de classificação. Em ambientes de negociação de sentidos, os enunciados, frequentemente, incorporam, mesmo que de forma crítica ou depreciativa, elementos das redes de sentido adversárias. Os sujeitos passam, frequentemente, a compor sistemas de classificação instáveis, numa valoração que também está em disputa. Nesse processo, o caráter de evidência da rede de sentidos é cada vez menor. A alteridade permanente de sentidos exige processos cada vez mais reflexivos, e de defesas ideológicas de campos valorativos.[21]

IMPLICAÇÕES POLÍTICAS

Como já deve estar claro até este momento, especialmente no âmbito de negociações ou disputas de sentido tende a haver fortes disputas de poder, e essas lutas sempre estão situadas no âmbito do valor. Poderíamos dizer, quase que genericamente, que os sujeitos em relações antagônicas disputam a manutenção ou transformação de sua condição no sistema de classificações em que estão inseridos, ou seja, disputam valor. É claro que muitas das disputas envolvidas não são apenas em torno do “reconhecimento”, mas são disputas “materiais”, em questões como posse da terra, distribuição de renda, melhores salários etc. Mas os filósofos-economistas clássicos, especialmente Marx, já sabiam que as disputas materiais são disputas por valor, consolidado em moeda, mercadoria ou bens de capital.[22] Nesse sentido, as disputas de poder podem abarcar um amplo espectro, desde disputas materiais, passando por disputas políticas (como o sufrágio universal ou o direito de manifestação), outras disputas no campo jurídico, até disputas por “reconhecimento” no âmbito da estima social – quebras de estereótipos de grupos minoritários, maior visibilidade etc.

Historicamente, com todos os limites dessas determinações, poderíamos estabelecer o século XVIII, especialmente a Revolução Francesa e a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, como um marco simbólico e material fundamental para essas disputas. Diretamente, rompeu-se a legitimidade da diferenciação estamental entre nobreza, clero e o povo, em geral. Mas o signo da igualdade, aqui estabelecido, abriu a possibilidade de diversas outras lutas: a luta de classes do período capitalista, direitos das mulheres, lutas anticoloniais, lutas contra o racismo, lutas pelo direito dos homossexuais, entre outras.[23] Todas elas ensejando, simultaneamente, diversas reações conservadoras. Como estamos falando de lutas que abordam os sistemas de classificação e, em última instância, a rede de sentidos, elas se dão, ao mesmo tempo, no campo dos enunciados e sua veiculação, mas também nas diversas práticas que confirmam ou infirmam os sentidos em disputa: argumentações científicas ou pretensamente científicas, narrativas, rituais e práticas cotidianas, além naturalmente das disputas diretamente “materiais” e no âmbito político.[24]

Num sentido amplo, podemos dizer que as lutas políticas progressistas buscaram desenvolver e consolidar os valores de igualdade potencializados no século XVIII. Isso, naturalmente, com todas as nuances necessárias a um conceito que não pode ser pensado como uma igualdade matemática. A igualdade deve ser pensada negativamente, em seus fundamentos, como um combate à desigualdade abusiva, nos diversos campos. As recentes lutas pelo direito à diferença não podem ser pensadas, nesse contexto, como uma oposição a essas lutas originárias, mas como uma sofisticação e problematização delas, impedindo, inclusive, que as diversas nomeações identitárias sejam cristalizadas, elas mesmas, em formas ilegítimas de dominação.

Se as proposições apresentadas por esse artigo fazem sentido, elas buscam fornecer certa gramática conceitual que permitam uma compreensão mais precisa e unificada dessas lutas no emaranhado de possibilidades e diferenciações que elas apresentam.


AUTOR
* Laurenio Leite Sombra é professor Assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (UNB). Particularmente interessado na constituição humana de sentidos e sujeitos, e nas relações de poder e aliança entre os sujeitos no seio da constituição de sentido. E-mail: lausombra@hotmail.com


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ZIZEK, Zizek. “Beyound Discourse-Analysis”. In: LACLAU, Ernesto. New reflections on the revolution of our time. London: Verso, 1990.


NOTAS
[1] A bibliografia é vasta. Citemos, como exemplo, a excelente narrativa do historiador inglês Geoff Elley sobre as lutas de esquerda (2005), concluindo sua trajetória com as transformações a partir dos anos 60.
[2] Linda Alcoff e Eduardo Mendieta (2009) publicaram interessante compêndio com diversos textos, alguns deles já clássicos, acerca da identidade, perpassando aspectos como raça, etnicidade, classe social, gênero, sexualidade, nacionalidade e questões transversais. O final dos anos 80 viu o surgimento de debate sobre o conceito de interseccionalidade, especialmente entre gênero e raça, a partir de artigo da teórica americana Kimberlé Crenshaw (1989).
[3] Podemos citar uma longa trajetória, que perpassa Locke (2012) e chega em Paul Ricoeur (2014), por exemplo.
[4] Falo “identidade dos sujeitos” porque a questão da identidade, a rigor, poderia ser a respeito de qualquer coisa: a identidade de uma cidade, de um objeto etc. Aqui, falamos especificamente dos “sujeitos”, isto é, de seres humanos que se identificam individual ou coletivamente. Não pretendo, nesse texto, problematizar o termo sujeito, ele mesmo alvo de longas disputas filosóficas.
[5] Certamente, Foucault (1987 e 1988) é fundamental para pensar o processo de constituição dos sujeitos nessa perspectiva, assim como autores que dialogaram com ela, como Hall (2006) e Butler (2010). Apesar da importância dessa abordagem, tendo a considerar essa perspectiva excessivamente “nominalista”, em função de aspectos que tentarão ser ressaltados aqui. Nesse sentido, considero que somos mais do que “posições de sujeito”. Numa perspectiva diferente e a partir da obra de Lacan, Zizek (1990) também critica, parcialmente, essa perspectiva, a partir de um debate com Ernesto Laclau.
[6] Adoto esse termo para diferenciá-lo de uma intencionalidade já tipicamente humana, mediada pelos sentidos e pela linguagem.
[7] Alguns aspectos importantes da visão de signo partem da formulação de Saussure (2012), especialmente a sua visão da língua como um sistema de diferenças, noção fundamental para boa parte do pensamento estruturalista e pós-estruturalista. Aqui, contudo, esta visão é “temperada” por diversas abordagens e questionamentos que já dialogam com outras tradições.
[8] A questão dos valores é profundamente ampla em sua biografia, nem toda ela nomeando o tema como tal. Nietzsche disse que “por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações” (2005, p. 11). Connor fala no sentido imperativo do valor, ou seja, “a orientação irredutível ao melhor e a repulsa ao pior” e, associado a isso, “a pressão inevitável de identificar e de identificar-se com o que quer que tenha valor” (1994, p. 12). Esse embasamento irredutível no valor vai frontalmente de encontro a abordagens essencialmente epistemológicas do pensamento, que buscam isolar substancialmente os valores das questões epistêmicas e, eventualmente, metafísicas. Como afirma Julio Cabrera, a filosofia moderna buscou, por diversas vezes, suprimir os valores ou colocá-los num mundo à parte, como no “mundo da liberdade” kantiana. “Em ambos os casos, se declara que não há valores neste mundo” (1987, p. 1). Esta abordagem, entretanto, enfrenta, também, longa resistência. Boa parte do pensamento hermenêutico pode ser melhor compreendida a partir da ideia de valores. O mesmo acontece com o pensamento pragmatista. Hilary Putnam mostra que pragmatistas clássicos, como Peirce, James, Dewey e Mead defendiam que “o valor e a normatividade permeiam toda experiência” e, afinal de contas, mesmo valores epistêmicos continuam a ser valores (PUTNAM, 2004, p. 30). O conceito de valor, aqui desenvolvido, já não pode ser confundido com a ideia de valor como pura relação diferencial, como na obra de Saussure (2012).
[9] É fundamental, para esta abordagem, o conceito de temporalidade em Heidegger (2009). Minha tese de doutorado (SOMBRA, 2015) discutiu esta formulação, problematizando um modo peculiar e prolífico de ver a temporalidade que, cada vez mais, afasta-se de uma perspectiva idealista e imbrica-se com a espacialidade. Para esta abordagem, também é fundamental a pesquisa de Ricoeur (2007) sobre memória e esquecimento.
[10] Não é fácil percorrer a trilha filosófica do conceito de sentido, ainda mais pela equivocidade do termo e sua vinculação semântica, em português, com noções tão diferentes como sensação e direção. No contexto aqui descrito, é fundamental a diferenciação, nem sempre perfeitamente estabelecida pela língua, entre sentido e significado, diferenciação relativamente equivalente à que se faz entre Sinn e Bedeutung, na língua alemã – na língua inglesa, frequentemente ambos as acepções são nomeadas como meaning, indistinção que pode suscitar interessantes reflexões hermenêuticas. Em Ser e Tempo (2009, p. 212-213), Heidegger desenvolve o conceito de sentido [Sinn] numa perspectiva abrangente que influencia este artigo, como uma abertura prévia da compreensibilidade, “anterior”, em certa medida, ao processo objetivo de produção de enunciados. Nesta obra, contudo, a subordinação quase plena à temporalidade ainda deixa a noção de sentido perigosamente próxima da “condição de possibilidade” kantiana, perigo que é afastado, progressivamente, em suas obras posteriores, segundo minha leitura (SOMBRA, 2015). Há, contudo, diversas outras possibilidades não heideggerianas, ou mesmo não ocidentais, de se pensar o sentido do ser. É o que ensaia Juan Cepeda, por exemplo, ao investigar a possibilidade de uma ontologia latinoamericana, ao modo da “América profunda” de Rodolfo Kusch (CEPEDA, 2011). Considero, também, que a gramática do Wittgenstein tardio, especialmente se pensarmos nela como uma “gramática profunda” (2005) é um conceito que tem grande conexão com a ideia de rede de sentidos, já que é esta gramática, em correlação com a ação prática, que permite os processos de significação. Em trabalho anterior (SOMBRA, 2012) fiz uma tentativa de diálogo entre as visões “holísticas” de Wittgenstein, de um lado, e Heidegger e Gadamer, de outro, a partir do conceito de background, emprestado de Charles Taylor (2000). Podemos pensar a noção de sentido como uma espécie de background (pano de fundo, se se quiser) que possibilita o processo de significação. A ideia de evidência desse background está próxima da certeza do último Wittgenstein, que afirma que “é o quadro de referências [Hintergrund] herdado que faz distinguir o verdadeiro do falso” (1969, p. 41), só ressalvando a inadequada tradução de Hintergrund (background) por “quadro de referências”. O filósofo francês Jean-Luc Nancy (2001) desenvolve, por sua vez, uma interessante reflexão sobre a ideia heideggeriana de sentido do mundo, resgatando sua materialidade e proximidade da nossa condição de seres sencientes. Como afirma Cangi, “para Nancy ‘há mundo’ quando há matéria singular exibindo-se como realidade individual. Realidade constitutiva de um ser que é sujeito e por isso formado de matéria sensível que faz corpo enquanto extensão que se expõe” (2014, p. 85-86). Não poderia, também, deixar de mencionar a “descoberta” husserliana do conceito de mundo da vida [Lebenswelt], descoberta que traz uma nova luz à sua filosofia madura, e se aproxima da nossa abordagem. Husserl afirma que “cada fenômeno alcançado neste desdobramento de sentido, dado, em primeiro lugar, como sendo no mundo da vida e como óbvio – cada fenômeno assim alcançado traz, em si mesmo, já implicações de sentido e de validade cuja explicitação conduz, por sua vez, a novos fenômenos, etc.” (HUSSERL, 2012, p. 90) e admite que este domínio “está em toda parte indelevelmente presente sem, contudo, ser jamais apreendido pelo olhar, jamais apreendido e compreendido” (Idem, P. 91). Por último, vale a pena ressaltar a discussão sociológica empreendida por Peter Berger e Thomas Luckmann (2004) sobre o conceito de sentido e a produção de “reservatórios sociais de sentido”, fundamentais para a sociabilidade.
[11] O conceito de “diferença ontológica” parte, naturalmente, da obra de Heidegger, que a define como a diferença entre ser e ente. Em Ser e Tempo, ele afirma: “de fato, ‘ser’ não pode ser concebido como ente [..]: o ‘ser’ não pode ser determinado, atribuindo-lhe um ente. Não se pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir de conceitos superiores e nem explicá-lo através de conceitos inferiores” (HEIDEGGER, 2009, p. 39). No entanto, e isso é essencial, “a indefinibilidade de ser [aspecto fundamental da diferença ontológica] não dispensa a questão de seu sentido; ao contrário, justamente por isso a exige” (Idem, Ibid.). Esta necessidade hermenêutica, defendi (SOMBRA, 2012), diferencia fundamentalmente a perspectiva de Heidegger em relação a Wittgenstein. Por outro lado, é fundamental que o termo diferença, aqui utilizado, não tenha natureza meramente negativa. A diferença entre ser e ente deve mantê-los num vínculo indissociável, como Heráclito estabeleceu no polemos entre o arco e a lira, que produzem uma harmonia (SOMBRA, 2015). Aqui, abdicamos de termos como ser e ente. Mas se abordamos, igualmente, uma “diferença ontológica” entre rede de sentidos e possibilidade de “representá-la” totalmente no campo discursivo, também devemos pensar a relação indissociável entre esses campos. Se os enunciados discursivos dependem da rede de sentidos, esta também só é possível a partir do sistema de signos. Merleau-Ponty, sem nomear como tal, aborda a “diferença ontológica”, de um modo que compartilhamos, ao considerar que o âmbito dos sentidos não é previamente gnosiológico. “Minhas palavras surpreendem a mim mesmo e me ensinam meu pensamento. Os signos organizados têm seu sentido imanente, e este não depende do ‘eu penso’, mas do ‘eu posso’” (1984, p. 133). É em função da diferença ontológica que já não é possível aceitar a língua meramente como um sistema de diferenças, à la Saussure. Pêcheux, ainda em sua fase mais “estruturalista”, afirma do linguista suíço: “a partir do momento em que a língua deve ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido: ela torna-se um objeto no qual a ciência pode descrever o funcionamento” (1997, p. 62). É tal redução que já não é admitida a partir da diferença ontológica.
[12] Aqui é fundamental a obra de Merleau-Ponty, para quem o corpo é “horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar” (1994, p. 136-137) e a própria consciência é “o ser para a coisa, por intermédio do corpo. Um movimento é apreendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu ‘mundo’, e mover seu corpo é visar as coisas através dele” (1996, p. 193), concepção que só se aprofundou na sua obra madura (MERLEAU-PONTY, 2000), embora, infelizmente, não tenhamos tido possibilidade de acompanhar todo o seu desenvolvimento, dado o seu falecimento prematuro.
[13] É possível se pensar uma curiosa fenomenologia dos nomes próprios. Em geral, as pessoas individuais são nomeadas – todos temos nomes que nos identificam. Os animais de estimação merecem, também, essa nomeação, o que não ocorre com a maior parte de um coletivo de animais, como o gado de uma fazenda, que provavelmente só merecerá um número de identificação. Cidades, coletivos e instituições merecem um nome e, junto com ele, passam a ganhar uma história e uma “personalidade”. Inversamente, em campos de concentração ou locais semelhantes, frequentemente as pessoas eram destituídas de seu nome, eventualmente tornando-se, apenas, um número de identificação. Naturalmente, nada desse processo é arbitrário.
[14] Aqui, dialogamos com o que Ricoeur passou a chamar de ipseidade, em oposição à mesmidade (RICOEUR, 2014). Ricoeur sempre apresenta uma dificuldade de definir a ipseidade, ao contrário da mesmidade, conceito mais próximo do que historicamente entendemos como a identidade nomeável de algo, no sentido de permanência no tempo. Mas não é mera dificuldade do autor, e sim do próprio conceito. No sentido aqui tratato, a ipseidade revela certa consciência prévia dos sujeitos ainda no âmbito da rede de sentidos, portanto, ainda não estabilizados pelos signos e pelas suas atribuições, em relação indissociável com os outros e com o mundo que os cercam. A dificuldade de conceituá-la decorre da própria diferença ontológica, é no mesmo sentido que Heidegger não consegue, por definição, enunciar e nomear o ser. Assim, temos que nos contentar com os efeitos da ipseidade, o que não é pouco: é em função dela que podemos, mesmo no auge da perda dos nossos atributos, ainda perguntar: quem é este que perdeu, no limite, qualquer possibilidade de nomeação? Ricoeur compreende, também, que é na ipseidade que nos tornamos agentes e podemos receber imputações morais. Mas seria melhor considerar que estes efeitos (agência dos sujeitos, imputação) decorrem do que Ricoeur chama de “dialética entre ipseidade e mesmidade”, que representa, no nosso modelo, a relação diferencial, no sujeito, da rede de sentidos com o campo sígnico. É fundamental para esta abordagem a rejeição de um “sujeito desancorado” cartesiano (RICOEUR, 2014, p. XVI), rejeição que o aproxima da noção de ser-no-mundo heideggeriana (2009).
[15] Considerando-se que o nosso conceito de valor não segue a tradição de Saussure, o sistema de diferenças também não pode ser pensado como meramente lógico, já incorporando a diferença ontológica antes abordada. Nesse sentido, não se pode, a princípio, defini-lo completamente.
[16] Bourdieu, em diversas obras, fala dos “princípios de classificação” em uma perspectiva sociológica. Segundo ele, esses esquemas classificatórios “são essencialmente o produto da incorporação de estruturas das distribuições fundamentais que organizam a ordem social (estruturas estruturadas)” e “viabilizam o acordo em meio ao desacordo de agentes situados em posições opostas (altas/baixas, visíveis/obscuras, raras/comuns, ricas/pobre etc.)” (2007, p. 119). Estas definições são muito importantes para nossa formulação, mas ressaltamos: 1) que a escala de diferenciações nem sempre é de posições opostas, embora estas sejam frequentes e muito relevantes; 2) que o conceito de antagonismo, que importamos de Ernesto Laclau, e que será abordado em seguida, faz com que as diversas relações nem sempre “viabilizam o acordo em meio ao desacordo”, o que torna ainda mais complexas as diferenciações.
[17] É nessa discussão em torno de gênero que se inscreve a obra de Butler (2010), por exemplo.
[18] Esta discussão foi fortemente potencializada pelo conceito de “identidade narrativa” (1999) desenvolvido por Paul Ricoeur, em decorrência quase natural da sua obra anterior Tempo e Narrativa.
[19] A questão do reconhecimento foi inicialmente estruturada a partir do pensamento de Hegel (1984 e 2000), mas rediscutida contemporaneamente por Honneth (2009) e Ricoeur (2006), por exemplo.
[20] O conceito de antagonismo é influenciado por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004), mas já com alguma independência da formulação daqueles autores. Foi fundamental, para a pesquisa aqui iniciada, a distinção estabelecida, por esses autores, entre os conceitos de antagonismo e diferença. Ernesto Laclau, especialmente, continuou a desenvolver o conceito em obras posteriores.  Dentro de uma perspectiva sociológica, a discussão de Peter Berger e Thomas Luckmann (2004) sobre pluralismo apresenta interessantes aproximações práticas com o conceito.
[21] Os teóricos do discurso descobriram, nesse contexto, o interessante fenômeno da intertextualidade. Fairchlough a define como “a propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos, que podem ser delimitados explicitamente ou mesclados e que o texto pode assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante” (2001, p. 114). Segundo a nossa perspectiva, quanto mais acentuadas forem as relações antagônicas, mais necessária será a intertextualidade, visto que os discursos (não apenas textos escritos) apresentarão necessidade crescente de referência externa a discursos antagônicos, seja para rechaçá-los, seja para incorporar valores de autoridade, seja para convocar alguma possível parceria. Numa perspectiva mais ampla, podemos pensar os diversos modos de relação que temos com o estrangeiro, ameaça e fascínio permanente à nossa identidade. Segundo Julia Kristeva, “estranhamente o estrangeiro nos habita: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína nosso lar [..], o estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e se encerra quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades” (1988, p. 9). Como bem mostra Kristeva, esta relação é histórica e os confrontos com o “estrangeiro” são ancestrais. Mas talvez tenhamos chegado ao paroxismo desse contato, na modernidade.
[22] O primeiro volume do Capital (MARX, 1999) faz uma discussão fundamental sobre formas de valor, a diferenciação entre valor de uso e valor de troca e, por fim, o dinheiro, como materialização abstrata do valor.
[23] Ernesto Laclau e Chantal Mouffe mostram, a partir da sofisticada formulação conceitual que desenvolvem, que princípios democráticos como os da liberdade e igualdade representaram “um ponto nodal fundamental na constituição do político” (2004, p. 197), que permitiram outras lutas políticas, não pensadas inicialmente. Eles citam, como exemplo, o texto Vindication of the rights of women, publicado em 1793 por Mary Wollstonecroft, pouco depois, portanto, da famosa declaração dos revolucionários franceses, num desdobramento possibilitado pela abertura desse “ponto nodal”.
[24] Se somarmos as obras dos historiadores Arthur Rosenberg (1986) e Geoff Elley (2005), temos um amplo espectro de lutas sociais desde a Revolução Francesa, acompanhadas, naturalmente, pelas reações conservadoras.

FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 1 | Ano 2015

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