Este ensaio não é sobre torneios de Futebol, e peço desculpas aos que carregam alguma mágoa desse assunto pela maneira como estou começando. Ocorre que desde o início dos jogos, no último ano, minha amiga Margret dizia que a Alemanha ganharia a Copa do Mundo. Seu palpite estava certo, mas ela não acompanhava o futebol de seu país nem dos times rivais. Na verdade, ela sequer tinha o hábito de assistir a jogos futebol e mal conhecia as regras. Quando ela me contou sua crença, nós evidentemente sabíamos que não se tratava de conhecimento. Faltava algo que justificasse, de modo que a verdade da crença dela, após o resultado final dos jogos, nos pareceu fruto do acaso. Margret não entendia de futebol, mas mesmo que a mesma crença pertencesse a um grande expert, nós não a tomaríamos por justificada, já que há vários elementos imprevisíveis em um torneio de futebol.
Minha amiga e eu praticamente não
temos mais pensado no resultado da Copa. A questão da justificação do
conhecimento, por outro lado, por vezes volta a nos intrigar. Como nos mostra a
crença de Margret, não basta termos uma crença verdadeira, é preciso que ela
seja justificada[1],
mas o que justificaria as nossas crenças? A cada instante, temos que tomar
decisões baseadas em nossas experiências. Em geral, nós tendemos a confiar
nessas decisões, mas se paramos para pensar sobre isso, ficamos com a dúvida: será
que as crenças que fundamentam nossas tomadas de decisões estão justificadas?
Se essa pergunta nos acompanhasse a todo instante, certamente não
conseguiríamos levantar os pés do chão para dar um passo.
Nossa vida segue, e a dúvida acerca da
justificação ronda apenas nossos momentos céticos e altamente filosóficos (e a
vida dos filósofos, assim como a do cético, também segue). Parece haver algo
que justifique, em geral, as nossas tomadas de decisão, afinal, continuamos
vivos. Porém, o cético não se satisfaz com essa resposta. Ele ousa duvidar até
de que estejamos vivos. Tentaremos, então, ensaiar uma resposta davidsoniana.
De início, tal resposta partiria da
necessidade de reconhecermos uma dependência mútua entre as noções de
justificação e verdade. A independência entre elas que nos intrigou no primeiro
parágrafo deste texto é algo apenas aparente. Um dos problemas, segundo
Davidson (2002), é que quando os filósofos se debruçam sobre um conceito, tomam
outros igualmente complicados como básicos. O autor considera que os conceitos
filosóficos, em geral, são fundamentais e propõe que sejam estudados não a
partir de definições isoladas, mas relacionando-os.
No geral, os conceitos para os quais os filósofos chamam atenção, como verdade, conhecimento, crença, ação, causa, o bom e o certo, são os mais elementares conceitos que temos, conceitos sem os quais (estou inclinado a dizer) não teríamos absolutamente quaisquer conceitos. Por que então deveríamos esperar ser capazes de reduzir estes conceitos deflacionariamente a outros conceitos que são mais simples, claros e básicos? (Davidson, 2002, p. 111).
Dentre esses conceitos básicos e
indefiníveis, de acordo com Davidson, está o de verdade. Para que algo
interessante possa ser dito sobre ele, é preciso que o relacionemos a outros
conceitos, de preferência que sejam igualmente básicos.
Davidson demonstra uma simpatia pela
caracterização aristotélica de verdade: “Dizer do que é que não é, ou o que não
é que é, é falso, enquanto dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é
verdade” (Davidson, 2002, p. 112). A vantagem dessa forma de caracterizar a
verdade é que não acrescenta a ela conceitos ulteriores como “correspondência à
realidade”; “estados de coisas”; “fatos” etc. A formulação aristotélica mostra
que a verdade depende da estrutura semântica das sentenças. Sendo assim, a
noção de verdade e a de significado andam juntas. Compreender um enunciado é
compreender as suas condições de verdade. Aparentemente, portanto, a noção de
significado poderia de alguma forma desfazer o abismo epistêmico entre sujeito
e objeto e ensaiar uma resposta ao desafio cético.
De acordo com Candel (1994),
Davidson se encontra em um ponto de equilíbrio instável entre sujeito e objeto.
Há, desde a formulação do cogito cartesiano, um movimento pendular em torno do
sujeito e do objeto onde paira a sombra do ceticismo. A fascinação moderna pelo
sujeito se justifica frente à necessidade de independência diante do
teocentrismo, mas lança desafios céticos profundos que geram a busca de uma
reafirmação do mundo objetivo. Por um lado, os racionalistas apresentam o
conhecimento como algo independente dos sentidos e, portanto, do mundo, sendo
levados ao solipsismo. Por outro lado, os empiristas não são capazes de superar
o problema, pois apresentam o sujeito como algo vazio e pronto a receber as
impressões externas, restringindo, mais uma vez, o espaço do sujeito à sua
mente, como se ela fosse um teatro. O mundo externo, assim como as outras
mentes, permanece algo sobre o que não há garantias, o que leva os empiristas
também ao solipsismo.
Em seu artigo “A externalização da
epistemologia” (2003a), Davidson critica dois tipos de posições acerca do
mental por ambas conduzirem ao ceticismo. Ele concorda que exista uma maior
autoridade da primeira pessoa acerca de seus estados mentais. Em função disso,
muitos são levados ao ceticismo acerca do mundo externo e das outras mentes, já
que seu conhecimento não parece ter o mesmo grau de fundamentação. Contudo, uma
atitude pragmatista de eliminação do sujeito acaba por levar a um ceticismo
simétrico. A semântica dos estados mentais passa a ser estudada externamente,
levando novamente a uma quebra entre sujeito e objeto que não permite a
autoridade de primeira pessoa para a atribuição de significado aos seus
próprios conteúdos mentais.
OCASO DO CETICISMO
Muitos filósofos acreditam que, se
qualquer uma de nossas crenças tomada isoladamente pode ser falsa, então é
possível que nossas crenças sejam todas falsas. Davidson não concorda com isso.
Do fato de que qualquer cidadão possa ser eleito presidente, não se conclui que
todos possam ser eleitos (2003a, p. 267). Conforme Davidson, para que tenhamos
uma crença verdadeira ou falsa, é necessário um pano de fundo no qual a maior
parte de nossas crenças sejam verdadeiras. Por exemplo, para que Margret tenha
uma crença - não importa se verdadeira ou falsa - sobre qual será o time
ganhador da Copa, ela precisa saber de antemão o que é um time de futebol, que
a Copa é disputada entre times que representam países, ter uma ideia do que
seja um país, que a Copa é um campeonato etc. Ainda que a Alemanha tivesse
perdido a Copa, e a crença de Margret fosse falsa, esse erro só poderia surgir
a partir de um corpo de crenças que fossem, em sua maioria, verdadeiras. Por
isso, não é possível verificar a verdade de uma crença isoladamente, mas apenas
na sua relação com diversas outras crenças.
Contudo, o cético ainda poderia
argumentar que esse pano de fundo de crenças possa ser composto apenas por
crenças falsas, o que conduziria a tese de Davidson à possibilidade de um
ceticismo global. Surge, então, o argumento do intérprete. De que forma minha
amiga Margret, que é alemã, começou a se comunicar comigo antes que ela tivesse
domínio da língua portuguesa? Foi necessário que ela interpretasse as minhas
palavras conforme a relação entre o que eu dizia e o mundo exterior. Apenas o
mundo objetivo é que poderia dar a ela um parâmetro para que interpretasse
minhas crenças e, a única maneira pela qual ela poderia fazer isso seria
considerando minhas crenças como majoritariamente verdadeiras. Assim, “nossa
linguagem incorpora e depende de uma visão majoritariamente correta de como são
as coisas” (Silva Filho, 2007, p. 116).
A individualização das crenças e pensamentos, mas também de significados, conceitos e outros estados mentais, só pode ser concebida a partir de conexões causais sistemáticas na triangulação entre o indivíduo, o outro falante com quem ele interage e objetos ou eventos no mundo (Silva Filho, 2007, p. 122).
A possibilidade de ter crenças envolve
essa relação com a realidade e com um interlocutor. No mais, não é possível
sequer pensar proposicionalmente se não houver, ao se aprender a linguagem, o
contexto ativo do diálogo para permitir essa relação de triangulação. A própria
Filosofia, com seu pendor para o ceticismo, só é possível no contexto da
comunicação e do debate (Silva Filho, 2002, p. 161). Para que se aprenda uma
linguagem, é necessário que haja relações envolvendo o intérprete, o falante e
o mundo.
Davidson (2003a, p. 269) argumenta
que “as palavras e pensamentos se referem àquilo que os causa”. Um intérprete
que está aprendendo uma língua não pode descobrir independentemente a que se referem
as palavras a não ser que, sistematicamente, relacione as palavras de seu
interlocutor aos eventos do mundo. Os significados de nossas primeiras orações
- quando estamos aprendendo a falar - é dado por haver um mundo. Esse mundo
provoca nossas crenças nas orações que aprendemos quando bebês. Portanto, aprendemos
a linguagem por meio dos vínculos entre ela, o mundo e o outro sujeito que
dialoga conosco.
Os conteúdos de nossos estados mentais
são aprendidos da seguinte maneira: o aprendiz é recompensado quando emite os
sons apropriados, isto é, quando classifica o mundo da maneira como o professor
considera adequado. Da mesma forma, quando não é capaz de classificar
adequadamente o mundo por meio de suas palavras, o aprendiz é repreendido. Assim,
o aprendiz responde ao mundo externo e às respostas do professor
simultaneamente. O professor, por sua vez, responde ao aprendiz e ao mundo
externo tendo, portanto, um papel fundamental na determinação dos conteúdos dos
pensamentos do aprendiz: estabelecer as relações causais entre mundo e
pensamento. Sem o professor, não haveria como determinar a causa dos conteúdos
mentais. A conclusão é: sem comunicação, não há pensamentos sobre o mundo.
Para que a comunicação seja
possível, é necessário atribuir racionalidade e coerência ao interlocutor. É
preciso que consideremos, além de que suas crenças sejam majoritariamente
verdadeiras, que elas constituam um corpo coerente, isto é, que um enunciado,
tomado isoladamente, emerja de um conjunto de crenças com alto grau de relações
internas de coerência. Isso só é possível se nosso interlocutor é, assim como
nós, uma criatura racional, capaz de produzir essas relações. Esse é o
princípio de caridade, sem o qual não podemos nos comunicar.
É interessante notar que, no mesmo
artigo, o autor argumenta que essa relação entre mente e mundo constitutiva da
linguagem faz parte daquilo que o ser humano é e, no fim das contas, faz parte
do que é estar vivo. É natural para nós classificarmos as palavras de nossos
interlocutores conforme a sua relação com o mundo objetivo, e isso tem a ver
com a evolução. Nossa habilidade para a comunicação e a capacidade de
relacionar linguagem e mundo provém de uma busca por classificações da
realidade que são o que permite o nosso sucesso evolutivo. Sem classificarmos,
não poderíamos sobreviver. “Talvez nem sequer as plantas pudessem sobreviver em
nosso mundo se não reagissem até certo ponto de maneiras que acharíamos
parecidas a acontecimentos e objetos que consideramos parecidos”. (p. 277).
AS PROPOSIÇÕES EM CONFRONTO COM O MUNDO: VERDADE E JUSTIFICAÇÃO
Davidson está de acordo com Quine (2010) de que não há uma distinção clara entre proposições analíticas e sintéticas (para que pudéssemos supostamente confrontar as sintéticas com os fatos) e de que nossos conhecimentos constituem um tecido, de modo que o conflito com a experiência não pode ser feito por meio de crenças isoladas. Nessa linha, também Elgin (2006) defende a inutilidade de se testar conhecimentos isoladamente[2]. Apenas como um corpo é que nossos conhecimentos sobre as mais diversas áreas pode ser confrontado com a realidade. Mais importante, porém, do que essa confrontação com a realidade são as relações internas que o corpo de conhecimento carrega. Dennett, por sua vez, (2013, p. 153) sugere que nós só podemos conhecer proposições isoladas se conhecemos uma linguagem e, ao aprender a linguagem, isso não pode ser feito por meio de fatos isolados. Por isso, a própria ideia de que aprendemos fatos isolados é uma ilusão à qual nos acostumamos devido a essa possibilidade de aprendermos uma ou outra proposição isoladamente depois de já termos formado um corpo de conhecimentos.
Assim, a justificação de nossas crenças é dada não por qualquer tipo de relação entre elas e a realidade objetiva, mas sim pelas relações internas que mantém entre si. Se, para Davidson (2003b), a verdade corresponde à realidade, isso não ocorre por se poder definir a verdade de cada crença de forma isolada, mas porque a relação interna de coerência entre nossas crenças conduz a uma relação de correspondência entre crença e mundo. Para que nossas crenças sejam justificadas, elas devem vir de uma totalidade de crenças e, dado que a maior parte de nossas crenças é verdadeira, isso produz razões suficientes.
De acordo com Sanches (2002), a teoria da verdade de Davidson deve ser interpretada à luz de suas normas de interpretação, que envolvem coerência e racionalidade. A noção de verdade como correspondência se ancora em uma coerência acerca da justificação. Para que a comunicação ocorra, a verdade deve ser pressuposta. Uma vez que a linguagem permeia o nosso pensar, ela deve ter sido aprendida, e essa aprendizagem se dá pelas conexões que o aprendiz faz entre as palavras do professor e o mundo. As nossas crenças não podem ser comparadas com o mundo, mas apenas com outras crenças. Ainda assim, há condições objetivas de verdade. O conhecimento está vinculado ao mundo e, segundo Davidson (2003b), não depende exclusivamente do nosso pensamento e da nossa linguagem.
Essa forma de relacionar coerência acerca da justificação com correspondência acerca da verdade evita, ainda, o relativismo. Ainda que tenhamos corpos de conhecimento diferentes e igualmente coerentes, não seríamos levados ao relativismo, pois ambos teriam uma relação de correspondência da maior parte de nossas crenças com a realidade, uma vez que ambos são produtos da comunicação humana e, por natureza, nossa comunicação se aprende por meio da triangulação entre crente, intérprete e mundo. A justificação de nossas crenças, portanto, é algo com o que não precisamos mais nos preocupar. Nossas crenças estão justificadas por serem racionais e coerentes entre si e por serem dadas por uma linguagem cuja aprendizagem só é possível por meio de relações causais com o ambiente externo.
Além disso, a comunicação só é possível porque atribuímos racionalidade, coerência e verdade à maior parte das crenças de nosso interlocutor. Em outras palavras, se consideramos nosso interlocutor como alguém irracional ou amplamente ignorante acerca da verdade, não poderemos atribuir significado às suas palavras. É preciso tomarmos como pressuposto que há um alto grau de concordância entre nós e nossos interlocutores. O princípio de caridade não é um pressuposto artificial ou pragmático, uma vez que, como vimos, nossas crenças e as de nossos interlocutores são de fato majoritariamente verdadeiras.
Em seu livro de introdução à epistemologia, contudo, Moser, Dwayne e Trout (2004), quando tratam do princípio de caridade, concluem que ele não é capaz de refutar o ceticismo, pois ainda que atribuamos verdade à maioria das crenças de uma pessoa, nada impede que estejamos ambos completamente enganados. Isto é, o princípio de caridade pode nos levar a tomar como verdadeiras crenças que, na realidade, são falsas.
De fato, talvez seja um pouco forte considerar essa argumentação como uma refutação definitiva do ceticismo. Porém, se de fato o ceticismo é fruto de um abismo entre sujeito e objeto, o que temos aqui é uma proposta de construção de pontes para que esse abismo seja atravessado. O ceticismo não é refutado a partir de seus próprios termos, mas ele sai de foco e deixa de ser algo com que de fato precisemos nos preocupar.
Da mesma forma como não é possível
reconhecermos a falsidade de uma proposição por meio de uma comparação entre
ela e os fatos, o próprio conceito de verdade não pode ser definido
isoladamente. Ainda assim, as nossas crenças estão em uma relação tal com o
mundo objetivo que a maior parte delas é verdadeira. Embora não seja possível
estabelecer uma relação de correspondência direta entre o mundo e os enunciados
isolados, há a correspondência. O problema da teoria da verdade como
correspondência, portanto, não é a falta de correspondência entre as crenças e
a realidade. Ao contrário, elas estão numa relação a tal ponto frutífera que a
maior parte de nossas crenças é, de fato, verdadeira. O problema, na realidade,
é a tentativa de verificar isoladamente e em confronto com os fatos se uma
crença é ou não verdadeira.
Davidson está de acordo com Quine (2010) de que não há uma distinção clara entre proposições analíticas e sintéticas (para que pudéssemos supostamente confrontar as sintéticas com os fatos) e de que nossos conhecimentos constituem um tecido, de modo que o conflito com a experiência não pode ser feito por meio de crenças isoladas. Nessa linha, também Elgin (2006) defende a inutilidade de se testar conhecimentos isoladamente[2]. Apenas como um corpo é que nossos conhecimentos sobre as mais diversas áreas pode ser confrontado com a realidade. Mais importante, porém, do que essa confrontação com a realidade são as relações internas que o corpo de conhecimento carrega. Dennett, por sua vez, (2013, p. 153) sugere que nós só podemos conhecer proposições isoladas se conhecemos uma linguagem e, ao aprender a linguagem, isso não pode ser feito por meio de fatos isolados. Por isso, a própria ideia de que aprendemos fatos isolados é uma ilusão à qual nos acostumamos devido a essa possibilidade de aprendermos uma ou outra proposição isoladamente depois de já termos formado um corpo de conhecimentos.
Assim, a justificação de nossas crenças é dada não por qualquer tipo de relação entre elas e a realidade objetiva, mas sim pelas relações internas que mantém entre si. Se, para Davidson (2003b), a verdade corresponde à realidade, isso não ocorre por se poder definir a verdade de cada crença de forma isolada, mas porque a relação interna de coerência entre nossas crenças conduz a uma relação de correspondência entre crença e mundo. Para que nossas crenças sejam justificadas, elas devem vir de uma totalidade de crenças e, dado que a maior parte de nossas crenças é verdadeira, isso produz razões suficientes.
De acordo com Sanches (2002), a teoria da verdade de Davidson deve ser interpretada à luz de suas normas de interpretação, que envolvem coerência e racionalidade. A noção de verdade como correspondência se ancora em uma coerência acerca da justificação. Para que a comunicação ocorra, a verdade deve ser pressuposta. Uma vez que a linguagem permeia o nosso pensar, ela deve ter sido aprendida, e essa aprendizagem se dá pelas conexões que o aprendiz faz entre as palavras do professor e o mundo. As nossas crenças não podem ser comparadas com o mundo, mas apenas com outras crenças. Ainda assim, há condições objetivas de verdade. O conhecimento está vinculado ao mundo e, segundo Davidson (2003b), não depende exclusivamente do nosso pensamento e da nossa linguagem.
Essa forma de relacionar coerência acerca da justificação com correspondência acerca da verdade evita, ainda, o relativismo. Ainda que tenhamos corpos de conhecimento diferentes e igualmente coerentes, não seríamos levados ao relativismo, pois ambos teriam uma relação de correspondência da maior parte de nossas crenças com a realidade, uma vez que ambos são produtos da comunicação humana e, por natureza, nossa comunicação se aprende por meio da triangulação entre crente, intérprete e mundo. A justificação de nossas crenças, portanto, é algo com o que não precisamos mais nos preocupar. Nossas crenças estão justificadas por serem racionais e coerentes entre si e por serem dadas por uma linguagem cuja aprendizagem só é possível por meio de relações causais com o ambiente externo.
Além disso, a comunicação só é possível porque atribuímos racionalidade, coerência e verdade à maior parte das crenças de nosso interlocutor. Em outras palavras, se consideramos nosso interlocutor como alguém irracional ou amplamente ignorante acerca da verdade, não poderemos atribuir significado às suas palavras. É preciso tomarmos como pressuposto que há um alto grau de concordância entre nós e nossos interlocutores. O princípio de caridade não é um pressuposto artificial ou pragmático, uma vez que, como vimos, nossas crenças e as de nossos interlocutores são de fato majoritariamente verdadeiras.
Em seu livro de introdução à epistemologia, contudo, Moser, Dwayne e Trout (2004), quando tratam do princípio de caridade, concluem que ele não é capaz de refutar o ceticismo, pois ainda que atribuamos verdade à maioria das crenças de uma pessoa, nada impede que estejamos ambos completamente enganados. Isto é, o princípio de caridade pode nos levar a tomar como verdadeiras crenças que, na realidade, são falsas.
De fato, talvez seja um pouco forte considerar essa argumentação como uma refutação definitiva do ceticismo. Porém, se de fato o ceticismo é fruto de um abismo entre sujeito e objeto, o que temos aqui é uma proposta de construção de pontes para que esse abismo seja atravessado. O ceticismo não é refutado a partir de seus próprios termos, mas ele sai de foco e deixa de ser algo com que de fato precisemos nos preocupar.
AUTOR
*Professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
CANDEL,
Miguel. Estudio Introductorio. In:
DAVIDSON, Donald. Filosofía de la
psicología. Barcelona: Anthropos,
1994. (Edición bilíngue. Introducción y traduccíon de Miguel Candel.)
DAVIDSON,
Donald. A tolice de tentar definir a verdade. In: _______. Ensaios sobre a
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de Pedro Fernando Bendassolli.)
_______.
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Acesso em 28 fev. 2015. Publicado em 21 dez. 2005.
MOSER,
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sobre a verdade. São Paulo: Unimarco Editora, 2002. (Organizado por Paulo
Ghiraldelli Jr., Pedro F. Bendassolli e Waldomiro José da Silva Filho. Tradução
de Pedro Fernando Bendassolli.)
[1] Com seus contraexemplos, Gettier (2005) argumenta que crença, verdade
e justificação não constituem condições necessárias e suficientes para o
conhecimento. Seu texto é de grande importância para a epistemologia
contemporânea. De fato, é possível que essas três condições não sejam
suficientes para o conhecimento. Em todo caso, esse debate não é objeto do
presente ensaio e não invalidará o argumento aqui exposto.
[2] Para ela, a própria noção de
conhecimento como crença, verdadeira e justificada (ainda que com mais algum
item acrescentado após os contra-exemplos de Gettier) é infrutífera. Ela propõe
que o conceito de entendimento é superior, pois engloba crenças falsas,
metáforas, analogias, modelos e uma ampla construção realizada por nós que é
capaz de desvelar importantes aspectos da realidade.
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