Carla Oliveira*
Hegel
Como enuncia o subtítulo, este texto trata de uma breve apresentação da concepção hegeliana de estética e de como a mesma incorpora uma crítica ao Romantismo. A crítica tem como alvo as consequências de “uma absoluta estetização da vida”, decorrente do Eu subjetivista romântico, cujo modus operandi é a ironia. Desse modo, a crítica à ironia romântica, em exposição, apresenta-se como parte constituinte da estética em Hegel e, também, como parte do escopo mais amplo do pensamento deste filósofo.
Em
seus cursos sobre a estética[1],
Hegel propõe considerar o conceito de
arte, objetivando desenvolver a consideração
pensante da bela arte[2],
não uma reflexão abstrata e universal de modo a construir um conceito vazio [de
conteúdo] sobre o que seria a bela arte, mas demostrar a ideia do belo artístico
a partir do seu próprio desenvolvimento espiritual: trata-se de expor o
conceito de arte a partir da questão
mesma[3].
O
tratamento da questão mesma é a
exposição (Darstellung) orgânica do
objeto considerado pelo pensamento, no caso, a consideração racional da arte a
partir da sua própria constituição efetiva, de modo a demonstrar, assim, o
conceito da bela arte, pois apenas com a exposição integral do objeto[4] é
possível realizar o seu conceito. Isto é o que se propôs Hegel em seus cursos
de estética: demonstrar o verdadeiro conceito da bela arte considerando as
particulares expressões artísticas, a exemplo das obras de arte simbólica,
clássica e romântica, tais como a escultura, a pintura, a música e a poesia. No
entanto, diante da brevidade que se propõe este texto, devemos assumir uma postura
um tanto delimitada no que se refere ao conceito de bela arte e, nesse sentido,
nos concentraremos nas reflexões preliminares do filósofo de modo a tomarmos o
conceito de bela arte em seu modo de
apresentação, na introdução da
questão mesma. Depois, apresentamos a crítica ao Romantismo.
Na
introdução ao conceito de bela arte, Hegel reflete acerca dos preconceitos
relativos ao que seja a arte, com a finalidade de depurar o caminho da consideração
pensante, bem como delimitar a estética de modo a assegurar o estatuto da
filosofia da arte. Hegel ainda retoma as opiniões usuais, como também o
percurso histórico-teórico, os quais buscam uma concepção do que seria o objeto
artístico. Nesse sentido, com tais observações preliminares, para Hegel, “nos
aproximamos, pois, de nosso autêntico objeto, a filosofia do belo artístico, e
uma vez que nossa empresa consiste em tratá-lo cientificamente, temos de
começar com o seu conceito”[5]. É
importante, portanto, começar com o conceito de bela arte[6], cuja
exposição se realiza no empreendimento estético de Hegel.
Em
Hegel, a arte tem como conteúdo a Ideia e, a sua Forma, é a configuração
sensível imagética[7]. A fim de compreender o conceito de arte em sua necessidade interna, Hegel busca
retomar a história do fundamento da arte na filosofia, pois neste domínio o
belo artístico foi reconhecido como um meio que concilia a contradição entre o
espírito em si abstrato e a natureza externa e ou interior, da esfera subjetiva
dos sentimentos[8].
Em
sua retrospectiva filosófica, Hegel considera que a filosofia kantiana “constitui
o ponto de partida para a verdadeira apreensão (Begreifen)”[9] da
arte, pois nela se concebe a inseparabilidade no belo artístico entre o particular
e o conceito[10].
Porém, esta reconciliação em Kant prossegue como algo subjetivo e não como algo
em si e para si, autônomo, verdadeiro e efetivo[11],
como deve expressar o verdadeiro conceito de arte. Nesse sentido, conforme
assevera Hegel, deve-se a Schiller, poeta e filósofo, “o mérito de ter rompido
com a subjetividade e abstração kantianas do pensamento e de ter ousado
ultrapassá-las, concebendo a unidade e a reconciliação como o verdadeiro, e de efetivá-las
artisticamente”[12].
Mas,
é nesse momento de reavivamento da Ideia filosófica, como coloca Hegel[13],
que surge um grupo cujo posicionamento, para este filósofo, é contrário aos
pontos de vista vigentes acerca da arte, engendrando, assim, “uma polêmica
cheia de espírito” e introduzindo na arte “um novo parâmetro de julgamento e
pontos de vista que se situavam acima dos que eram atacados”[14].
O referido grupo constitui o Romantismo Alemão, sendo Schlegel seu principal
representante.
A
despeito das notas depreciativas de Hegel e de seu tom sarcástico, a crítica
hegeliana ao fundamento e à forma da expressão artística do Romantismo nos interessa
aqui na medida que se dirige para a ironia,
estilo literário dos românticos, de modo a nos fazer refletir acerca da relação
entre o artista, sua criação e a comunicabilidade da sua obra, bem como sobre o
posicionamento subjacente da filosofia em um movimento que pretende a
estetização absoluta, fundamentalmente na esfera teórica, por não acreditar na
efetividade da esfera material.
O
Romantismo é um movimento estético surgido na Europa entre os séculos XVIII e
XIX. Reconhecidamente literário, tem expressão também na música e na pintura e
encontra na filosofia sua justificação teórica. Seu principal representante é o
poeta Friedrich Schlegel, responsável pela fundação da Athenäum, revista de difusão das ideias românticas na Alemanha.
Influenciados
por Fichte, identificam o princípio unitário no Eu, em seu viés total e
absoluto, determinante de toda a realidade, tanto do mundo natural como do eu
individual. O Eu tudo produz e tudo aniquila e, a validade das coisas, depende
unicamente da subjetividade do Eu. O Eu fichteano seria, para os românticos, a
absoluta liberdade subjetiva, a realização espiritual em contraponto ao
determinismo causal. O indivíduo protótipo da visão de mundo romântica é o
artista, o qual deve se expressar através da ironia.
Preferencialmente
por meio de fragmentos, a ironia se
manifesta como estilo literário, muito mais de natureza formal que retórica.
Dessa forma, a ironia atua desestabilizando o sentido do próprio texto,
impossibilitando, assim, a comunicação de sentido(s). Ao passo que a ironia assim
opera, também nega qualquer critério de verdade para a avaliação de seus
enunciados. Nesse sentido, tendo em vista o escopo artístico desse movimento, é
concluído que, “em suma, a ironia é o gesto pelo qual as obras de arte
desestabilizam seu sentido”[15].
Para
Schlegel, a ironia constitui a junção (não a superação) entre opostos, entre o
que é e o que não é: o elo entre a presença e a ausência de sentido, melhor
exposto quando a obra reflete a si mesma ironicamente. A “Ideia”, no Círculo
Romântico, acolhe o conflito inerente ao sentido, pois as antíteses, no mundo
irônico do Eu, engendrariam as alternâncias de modo absoluto[16].
Primeiro,
em concordância com Hegel, deve-se notar o caráter excessivamente subjetivo e
abstrato do Eu. O Eu fichteano, fundamento da estética romântica, é abstrato e
formal porque produz conhecimento sem sofrer influência deste. Ademais, toda
criação do Eu na concepção romântica, do Eu de uma subjetividade absoluta, não
possui interesse substancial, pois não importa ao indivíduo irônico estabelecer
um sentido para além de si próprio. Tudo fora do Eu pode ser espetáculo ou
ilusão[17]. Portanto,
podemos afirmar que a arte do romantismo é desprovida de conteúdo verdadeiro,
pois, conforme Hegel, “nada é considerado em si e para si e em si dotado de
valor, mas somente enquanto produzido pela subjetividade do eu”[18].
Segundo
Hegel, a virtuosidade de uma vida irônica e artística se concebe como
“genialidade divina”[19]. Para
o gênio artístico, o qual se comporta absolutamente livre, tudo e todos são
criações sem essência, pois ao passo que ele pode criá-las, pode também
destruí-las.
Aquele que se encontra em tal ponto de vista da genialidade divina observa do alto com distinção todos os outros homens, que são considerados limitados e rasos, na medida em que o direito, a eticidade etc, ainda valem para eles como algo de sólido, de obrigatório e de essencial[20].
O
artista irônico, portanto, zomba de qualquer tentativa de estabelecer sentido
em quaisquer esferas da criação humana. Zomba do estabelecimento de um laço
ético, substancial, nas relações sociais. Já
os escritos literários, como a mais adequada obra romântica, devido à ironia,
expressam um tipo de texto que é fechado em si, que se faz ininteligível, que
não se utiliza de linguagem referencial e, dessa forma, inútil do ponto de
vista da comunicação.
Porém,
a ironia, na concepção do Romantismo, não se limita à forma da obra de arte,
mas é propriamente o modus operandi do
Eu, este que é a subjetividade absoluta que determina toda a realidade. O
Romantismo pretende, pois, a estetização de toda a vida. Mas, um excurso, este
seria um modelo de vida viável?
De
acordo com as críticas construídas por Hegel, compreendemos que o modo de vida
irônico[21]
não pode ser um modo de vida viável, pois não seria possível, sequer,
estabelecer laços sociais, posto que cada indivíduo devesse ser uma
subjetividade encerrada em si para a qual aquilo que lhe é exterior tem apenas
existência aparente.
Ademais,
o texto literário irônico é, em absoluto, incomunicável, pois não objetiva o
estabelecimento de sentidos. Desse modo, a própria arte romântica,
isoladamente, parece também inviável, dentro do ponto de vista hegeliano, pois
não realiza a verdade da Ideia enquanto expressão do belo no sensível, conforme
conceitua Hegel; e, em si não possui seriedade[22],
posto que seja criação aparente de um Eu absoluto cuja relação criativa se dá a
partir do seu capricho. A obra de arte, na ironia romântica, não pode se
realizar, pois o sentido da sua própria existência lhe escapa.
Rocío Zambrana, da Universidade de Oregon, recentemente
nos ofereceu uma resenha do livro The
Anti-Romantic: Hegel Against Ironic Romanticism[23],
lançado em 2014, de autoria de Jeffrey Reid, destacando a abordagem do autor
sobre o sistema hegeliano e de como a ironia romântica, para Hegel, representa
uma ameaça às próprias noções de sistema e objetividade, ameaça que colocaria
em risco o “conteúdo objetivo da ciência hegeliana”. A ironia romântica, de
acordo com Reid, retrataria para Hegel um perigo cultural e filosófico. Do
ponto de vista filosófico, especialmente pela ironia literária desestabilizar a
apresentação de um discurso com vistas ao estabelecimento da objetividade. Mas, aqui, Zambrana
observa que, a leitura de Reid do conceito de objetividade em Hegel pode
projetar “uma imagem logocêntrica ou politicamente conservadora” do filósofo.
Nesse sentido, Zambrana nos propõe partir de uma leitura materialista (no
sentido de Marx) da objetividade em Hegel, segundo a qual a objetividade
compreenderia o “conteúdo do sistema estabelecido na Enciclopédia”, se referindo aos discursos filosóficos, científicos
e políticos, bem como às práticas e instituições, pois “the system lays out
objective truth insofar as it articulates the language of real, historically
specific practices and institutions”[24].
E, de fato, esta leitura nos parece mais apropriada. Ademais, Zambrana questiona:
Is the content of Hegel's system - the institutions of ethical life, for example - Hegel's rebuttal to romantic irony? Or is it the form of the system - the role of language in articulating the truth of real practices, institutions - Hegel's rebuttal to ironic romanticism? If the content of the system is itself historically variable, then it is the form of the system and its understanding of content that can effectively confront the threat of romanticism[25].
Posto
isso, ao término desta breve incursão hegeliana, interessa-nos salientar a
consideração da efetividade histórica efetuada por Hegel em seus estudos de
estética, quando este filósofo busca apreender as particulares expressões
artísticas tendo em conta a consciência do tempo. E, deste modo, de posse da
crítica hegeliana à ironia romântica, nos parece conveniente refletirmos acerca
dos traços românticos que podemos identificar nas artes contemporâneas a partir
de uma expressão artística demasiadamente subjetiva. Como também, nos parece
imperativo avaliarmos em que medida a referência do Romantismo deve se inserir em
nossas análises de práxis como parâmetro do agir do indivíduo, posto que nos
pareça evidente, conforme nos aponta Hegel, que o ser irônico não consiga
estabelecer, sequer, comunicação, pois só reconhece a si mesmo. Desse modo,
ressaltamos as críticas hegelianas à ironia romântica, especialmente ao seu
caráter demasiadamente subjetivista – afinal, “o sentido é sempre irônico”[26].
AUTORA
*Atualmente é Professora de Filosofia no Instituto Federal da Bahia (IFBA) e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Bahia (PPGF-UFBA)
REFERÊNCIAS
NOTAS
[1] Os escritos de Hegel sobre a estética nos foram legados a partir da compilação de seus textos de aula reunidos por seus alunos. A sistematização que aqui utilizamos, a obra “Cursos de Estética”, originalmente de 1835, fora realizada por Heinrich Gustav Hotho, seu aluno e amigo. (Cf. HOTHO, Prefácio, Cursos de Estética, p. 17-23).
REFERÊNCIAS
DUARTE,
Pedro. Estio do tempo: romantismo e
estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
_______.
Ironia Romântica na Arte e na Filosofia.
Revista Análogos, ISSN 1678-3468, Vol. X, 2009. p. 186-193.
HEGEL,
G. W. Cursos de Estética. Trad.
Marco Aurélio Werle. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001.
______.
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compendio (1830). Trad. Paulo
Meneses e José Nogueira Machado. São Paulo: Loyola, 1995-1997. 3v.
INWOOD,
Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
MASS, W. P. M. D. Ironia e Performance no Primeiro Romantismo Alemão: Os casos de Tieck e Friedrich Schlegel. Revista Artefilosofia, Ouro Preto, n. 4, p. 166-166-174, jan. 2008.
MASS, W. P. M. D. Ironia e Performance no Primeiro Romantismo Alemão: Os casos de Tieck e Friedrich Schlegel. Revista Artefilosofia, Ouro Preto, n. 4, p. 166-166-174, jan. 2008.
NOTAS
[1] Os escritos de Hegel sobre a estética nos foram legados a partir da compilação de seus textos de aula reunidos por seus alunos. A sistematização que aqui utilizamos, a obra “Cursos de Estética”, originalmente de 1835, fora realizada por Heinrich Gustav Hotho, seu aluno e amigo. (Cf. HOTHO, Prefácio, Cursos de Estética, p. 17-23).
[2] Hegel considera que o belo é
próprio da arte: a arte é a expressão sensível da Ideia de Belo. (Cf. HEGEL, Cursos de Estética).
[3] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 47.
[4] Objeto aqui não está concebido
em oposição ao sujeito. O tratamento da questão mesma significa a entrega ao
desenvolvimento da própria questão. Vide a noção hegeliana de exposição (Darstellung).
[5] HEGEL, Cursos de Estética, p. 45.
[6] Em seu modo de apresentação.
[7] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 86.
[8] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 74.
[9] HEGEL, Cursos de Estética, p. 78.
[10] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 77.
[11] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 75.
[12] HEGEL, Cursos de Estética, p. 78.
[13] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 80.
[14] HEGEL, Cursos de Estética, p. 80.
[15] DUARTE, Pedro. Ironia Romântica na Arte e na Filosofia,
p. 188.
[16] Cf. DUARTE, Pedro. Ironia Romântica na Arte e na Filosofia,
p. 191.
[17] Cf. INWOOD, Dicionário Hegel, p. 197.
[18] HEGEL, Cursos de Estética, p. 81.
[19] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 82.
[20] HEGEL, Cursos de Estética, p. 83.
[21] Na oportunidade, indicamos o
artigo “How to Live Without Irony” (2012), da professora Christy Wampole da
Princeton University. O artigo fora originalmente publicado no blog Opinator,
do The New York Times, e sua tradução
no Brasil fora disponibilizada, online, na Revista Serrote. Disponível em: http://www.revistaserrote.com.br/2013/01/como-viver-sem-ironia-por-christy-wampole/.
[22] Cf. HEGEL, Cursos de Estética, p. 82.
[23] Disponível em: http://ndpr.nd.edu/news/56315-the-anti-romantic-hegel-against-ironic-romanticism/.
[24] “O sistema estabelece a verdade
objetiva na medida em que articula a linguagem do real, as práticas
historicamente específicas e as instituições” (ZAMBRANA. Tradução livre.)
[25] “É o conteúdo do sistema
hegeliano – como no caso das instituições da vida ética – a refutação da ironia
romântica? Ou é a forma do sistema – o papel da linguagem de articular a
verdade das práticas reais e as instituições – a refutação de Hegel da ironia
romântica? Se o conteúdo do sistema é, ele próprio, historicamente variável,
segue-se que, é a forma do sistema e a compreensão do seu conteúdo que pode,
eficazmente, confrontar a ameaça do romantismo” (ZAMBRANA. Tradução livre).
[26] Cf. MERLEAU-PONTY, M. O homem e a comunicação: a prosa do mundo.
FEIRA DE SANTANA-BA | nº 1 | vol. 1 | Ano 2015
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